O bolo em camadas (TTIP, TCC, CPTPP, RCEP)

Tentamos ver o mundo como se fosse um bolo. Há a camada de base, constituída pela “realidade”, isso é, pelos “factos” que são relatados diariamente pelos órgãos de comunicação: guerra, diplomacia, etc. Esta é a camada que qualquer cidadão pode observar.

Por cima há uma segunda camada: esta é constituída pelos planos de médio e longo prazo. Por vezes são planos conhecidos mas, na maior parte dos casos, não saem dos escritórios governamentais ou empresariais até tornarem-se efectivos. E a razão é que muitas vezes não seriam “presentáveis” sem provocar uma certa irritação nos cidadãos.

A camada superior é a mais intrigante: aí é decidido o rumo do planeta. O cidadão ignora até a existência disso.

Vamos transformar esta teoria pasteleira num exemplo simplificado:

  1. a camada de base é o dinheiro que todos recebem como ordenado e utilizam diariamente nas despesas correntes (plano da actuação imediata).
  2. a camada intermédia é constituída por bancos, empresas e, em parte, pelos governos que decidem como o cidadão pode gastar o seu dinheiro e com quais meios, por exemplo com dinheiro digital em vez que físico (plano da actuação de médio prazo).
  3. a camada superior é aquela que traz o verdadeiro benefício do poder monetário e, de facto, concentra em si a autêntica capacidade de gestão e decisão (plano da actuação de longo prazo).

O esquema do bolo recorre também no caso da guerra na Ucrânia. Além dos confrontos no terreno e da visão com o alcance maior (que vimos no artigo anterior), há também uma camada  intermédia composta por várias estratégias de médio prazo. É destas que vamos a falar.

Esta camada intermédia vê os EUA como vencedores apesar da guerra ainda não ter acabado. Washington, de facto, atingiu rapidamente o objectivo de separar a Europa da Rússia, de uma forma profunda e irreversível (pelo menos durante muito tempo). A Rússia tornou-se o “intocável” do sistema ocidental e isso aplica-se tanto a ela como a qualquer outro País ou instituição que mantenha relações orgânicas com Moscovo. O que convenceu a liderança europeia a passar da habitual confusão para o envio de armas para a guerra, tornado a Europa parte envolvida directamente nos combates?

Embora os factos nos pareçam numa sequência de novidades diárias, existem longas estratégias ponderadas (a tal camada intermédia) por parte de pelo menos os dois principais jogadores, os EUA e a Rússia. E são as estratégias que ordenam a sequência dos factos, não o contrário.

TTIP

A previsão relativamente fácil é que os EUA serão agora capazes de retirar da gaveta uma velha ferramenta que surgiu tempo atrás com o nome de TTIP, Transatlantic Trade and Investment Partnership (“Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”). Biden prometeu sem dúvida aos mentecaptos de Bruxelas um novo tratado comercial para compensar as perdas objectivas e desestabilizadoras que o pacote de sanções infligirá à Rússia e que afectará os europeus talvez até mais do que os próprios russos.

Lembramos: o TTIP foi promovido por Obama, tal como o seu homólogo TPP (Parceria Transpacífica) na zona do Pacífico, e encontrou perplexidade em casa e uma silenciosa ambiguidade por parte dos europeus, o que prolongou as negociações até os Democratas perderem as eleições a favor do Trump. Trump atirou TTIP e TPP para o caixote do lixo. O Japão promoveu o substituto do TPP com o nome de CPTPP (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership) em 2018 entre 11 Países da área: Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietnam. A China há muito que procura a admissão no CPTPP, mas o processo é lento e parece destino ao insucesso (o Japão não apoiará o pedido chinês nas circunstâncias actuais e o mesmo acontece com a Austrália).

[nota: na área do Pacífico está assim criada uma curiosa situação na qual há a sobreposição de duas organizações com objectivos similares: o CPTPP proposto pelo Japão e o RCEP proposto pela China. Japão, Austrália, Nova Zelândia, Brunei, Malásia, Singapura e Vietnam fazem parte de ambas]

Desta vez a nova versão do TTIP será aceite em tempos rápidos: apesar de apresentar a mesma estratégia elaborada na altura pela elite que apoiava Obama, o novo acordo será redigido de uma forma menos problemática para os americanos; mas, sobretudo, agora a Europa não tem alternativas, ao mesmo tempo que tem pressa em compensar o desastre económico causado pelos acontecimentos e a sua gestão.

TCC

É nesta óptica que deve ser visto também o novo TTC (Trade and Technology Council, “Concelho do Comércio de da Tecnologia”),fruto do acordo assinado em 2021 entre o Presidente Biden e a homologa Ursula von der Leyen: por enquanto, o TCC está centrado nos campos da tecnologia, conversão digital e ecológica, mas as suas dez comissões de trabalho parecem prontas para alargar o campo. Na primeira reunião em Pittsburgh (Setembro de 2021), foram estabelecidos os assuntos acerca dos quais o TCC irá concentrar-se: padrões tecnológicos, clima e tecnologia “limpa”, cadeias de abastecimento seguras, serviços de informação e comunicação, segurança e competitividade, plataformas de tecnologia e gestão de dados, uso indevido de tecnologia que ameaça a segurança e os direitos humanos, controlos das exportações, rastreio dos investimentos, promoção de pequenas e médias empresas, acesso e utilização de ferramentas digitais, desafios do comércio global.

Pelo que, um pacote muito abrangente e necessário pois a Europa, para conformar-se ao sistema TTIP, será impedida de continuar as suas relações ambíguas com a China (isso sem esquecer as possíveis sanções contra a Pequim, que hoje anunciou a vontade de continuar a cooperar no comércio com a Rússia): haverá cláusulas apropriadas para vedar a Europa dentro dos limites do novo tratado. Com o tempo, o novo TTIP será integrado no novo tratado de livre comércio NAFTA, cujo nome é USMCA (“Acordo Estados Unidos-México-Canadá”), também porque o USMCA assim como está agora é praticamente inútil.

Todos estes acrónimos e tratados devolvem um quadro geral no qual o planeta fica dominado por duas grandes áreas comerciais, uma Ocidental e outra Oriental. O que, de facto, significa mais um passo no caminho da de-dolarização: no palco oriental será o Yuan (ou um substituto dele) a constituir a base das trocas, enquanto no Ocidente iremos ficar agarrados ao Dólar.

CPTPP, RCEP, AUKUS

A situação, na verdade, é um pouco mais complexa. Por exemplo: no Pacífico, como lembrado, há a sobreposição de duas entidades, o CPTPP do Japão e o RCEP da China. Destes, o RCEP é aquele que já agora constitui o maior bloco económico (e populacional) do planeta e, apesar de incluir no interior dois “Cavalos de Troia” ocidentais (a Austrália, que faz parte do AUKUS, a aliança militar com EUA e Reino Unido, e a Nova Zelândia), o seu papel “anti-CPTPP” parece bem estabelecido, sobretudo porque consegue juntar a maior economia global (a China) com outros protagonistas (quais a Coreia do Sul ou Indonésia) e actores emergentes (Tailândia).

O RCEP tem também uma outra vantagem fundamental: a energia. Com a China que pretende continuar as trocas comercias com a Rússia (e sem esquecer o Irão), o gás não será um problema no interior do RCEP. Portanto, é fácil imaginar o forte impulso que isto trará ao plano de conversão “verde”. Mas aquela energética é uma questão complexa que não vamos tratar aqui.

Só uma nota importante: é obrigatório realçar como de ambos os tratados do Pacífico fique de fora a Índia, o que quer que isso signifique.

Portanto: a guerra na Ucrânia veio também para fazer limpeza e esclarecer um pouco a situação. De fora deste discurso fica mais uma vez a África (que ninguém convida, tendo o papel de prateleira self-service), enquanto a América do Sul é, como sempre, um caso especial: qual será o seu rumo?

Por aqui, os mentecaptos de Bruxelas não terão dificuldades em apresentar a escravidão do TTIP como o “sucesso das democracias”, o “triunfo dos nossos valores” e, afinal, como a melhor coisa que poderia ter acontecido. É normal que assim seja: é este o trabalho dos pasteleiros que não podem ir além da camada intermédia.

 

Ipse dixit.

Imagem: Max Pixel Creative Commons Zero – CC0.

2 Replies to “O bolo em camadas (TTIP, TCC, CPTPP, RCEP)”

  1. Grande Max,

    Sim, assim a curto prazo esta guerra é uma vitória russa, a médio prazo é uma vitória americana e a longo prazo uma vitória chinesa. Os europeus perdem em todos os prazos, provavelmente até mais do que os ucranianos que nesta história são tão só o catalisador.

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