O ISIS no Afeganistão (com ajuda)

As dúvidas circulam há anos. Afirma Hadi Nasrallah, jornalista do Hezbollah:

Os EUA utilizaram helicópteros para resgatar os terroristas do ISIS da completa aniquilação no Iraque e transportá-los para o Afeganistão, para os mante-los como insurgentes na Ásia Central contra a Rússia, China e Irão.

Dá para acreditar num homem do Hezbollah? Não pode ser imparcial. Mas a dele não é a única voz neste sentido e nem a primeira. Aquela dos EUA que estabeleceram um corredor aéreo para o ISIS até o Afeganistão é uma acusação que existe já há alguns anos: são Rússia, Síria, Iraque e Irão que afirmam isso.

A agência SANA da Síria informava já em 2017 que “helicópteros americanos transportaram entre 40 e 75 militantes do ISIS de Hasakah, no norte da Síria, para uma área desconhecida” (aqui a notícia da agência iraniana Tasnim de 2018).  O mesmo tinha sido sido relatado durante anos no Iraque pelas Forças de Mobilização Popular Iraquiana, juntamente com testemunhos segundo os quais os helicópteros americanos largavam do céu a ajuda para o ISIS.

Em 2017 e 2018, funcionários iranianos e russos levantaram a mesma questão. O Major General do Irão, Mohammad Hossein Baqeri, acusou os Estados Unidos no início de Fevereiro de 2018:

Realocação de membros do grupo terrorista Daesh para o Afeganistão após derrotas no Iraque e na Síria.

No mês seguinte, Mohammad Javad Zarif, o Ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, afirmou:

Vemos pela inteligência, bem como por relatos de testemunhas oculares, que combatentes do Daesh, terroristas, foram resgatados por via aérea de zonas de batalha.

O Irão e a Rússia têm constantemente afirmado que helicópteros sem marca voavam para regiões do Afeganistão onde o ISIS tinha uma base de apoio. Mas como Javad Zarif assinalou em Março de 2018:

Desta vez não eram helicópteros sem marca. Eram helicópteros americanos, que levavam elementos do Daesh para fora da prisão de Haska. Para onde os levavam? Agora, não sabemos para onde os levaram, mas vemos o resultado. Vemos cada vez mais violência no Paquistão, cada vez mais violência no Afeganistão, assumindo um sabor sectário.

Como afirmava Voice of America (de facto, instrumento de propaganda do governo EUA) em 2018, “o grupo terrorista usa Nangarhar como base principal para lançar ataques noutros locais no Afeganistão”. Esta é a mesma província atingida pelos EUA com um drone não tripulado no dia seguinte ao ataque ao aeroporto. E, segundo a mesma Voice of America, o conselheiro de segurança nacional do recente colapsado governo afegão deu aos delegados russos e iranianos material “sobre alegações de helicópteros não marcados que transportam combatentes do ISIS para as zonas de batalha do País”.

Em Fevereiro de 2018, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov pedia aos Estados Unidos que respondessem:

Ainda estamos à espera de uma resposta dos nossos colegas americanos às questões que foram levantadas várias vezes, questões que surgiram com base em declarações públicas feitas pelos dirigentes de algumas províncias afegãs, de que helicópteros não identificados, muito provavelmente helicópteros com os quais a NATO está relacionada de uma forma ou de outra, estão a voar nas áreas onde os rebeldes estão baseados, e ainda ninguém foi capaz de explicar as razões para estes voos. Em geral tentam evitar respostas a estas legítimas questões.

Mais tarde nesse mês, Lavrov tinha mais a dizer sobre o assunto:

De acordo com os nossos dados, a presença do ISIS no norte e leste do Afeganistão é bastante grave. Já existem milhares de homens armados. Estamos alarmados porque, infelizmente, as forças armadas dos EUA e da NATO no Afeganistão estão a fazer todos os esforços para silenciar e nega-lo.

Estes misteriosos voos de helicóptero, em particular à noite, levantaram as dúvidas mesmo no interior do governo fantoche de Cabul. Em Maio de 2017, um funcionário local na província de Sar-e-Pul disse que dois helicópteros militares tinham aterrado depois do pôr do sol, como referido por Mohammad Zahir Wahdat, o governador da província, aos meios de comunicação afegãos:

Segundo o relatório que recebemos do 2º Batalhão do Exército Nacional Afegão, que luta na primeira linha da frente em Sar-e-Pul, dois helicópteros militares aterraram numa fortaleza do inimigo às 20 horas da última Quinta-feira. Os helicópteros descolaram após 10 minutos e dirigiram-se para a auto-estrada Sar-e-Pul-Shibirghan, mas não puderam ser filmados devido à escuridão da noite,

Por isso, a lista de governos, antigos funcionários governamentais e organizações na região que acusaram os EUA de apoiar o ISIS é extensa e inclui o governo russo, o governo iraniano, os meios de comunicação social do governo sírio, o Hezbollah e até o ex-presidente afegão Hamid Karzai, aquele antigo executivo da petrolífera UNOCAL que Washington colocou como chefe do primeiro governo fantoche em Cabul e que definiu o ISIS uma “ferramenta” dos EUA.

Pelo que, o que exactamente é o ISIS agora? Após a variante no Afeganistão se ter tornado um nome familiar dum dia para outro na sequência do ataque no aeroporto de Cabul (mais de 170 pessoas mortas e mais de 200 feridas), a história do grupo requer um novo exame.

Segundo o jornalista independente Alex Rubinstein:

Os ataques terroristas em massa são repetidamente utilizados como justificação para os EUA continuarem a sua ocupação de países estrangeiros: trata-se da “missão anti-terrorista”, vencer a “ameaça terrorista”.

E a presença do ISIS no Afeganistão não é novidade: já em Agosto de 2016, o porta-voz dos Talibãs, Zabihullah Mujahid, disse aos meios de comunicação iranianos:

em cooperação com a nação, [os Talibãs] impediram que grupo terrorista ganhasse uma posição no Afeganistão.

Em 2016 a prioridade não era Cabul e os esforços estavam concentrados na defesa e na ampliação daquele Emirado Islâmico declarado no Médio Oriente em 2014. Mas com o fim das operações na Síria e no Iraque, o discurso mudou. E se o argumento mais forte para a retirada dos EUA segundo a Administração Biden é que a missão antiterrorista no Afeganistão ficou completa, a verdade é que o ataque no aeroporto de Cabul demonstra exactamente o contrário: de alguma forma (e não é difícil entender como) o ISIS conseguiu estabelecer-se no País e herda da NATO a tarefa de ensanguentar o Afeganistão.

Rubinstein relata as absurdas aventuras de Clarissa Ward, joprnalista da CNN, que foi capaz de entrevistar um “comandante sénior do ISIS” duas semanas antes do ataque em Cabul. O “comandante” disse à CNN que o grupo estava a ter um baixo perfil “à espera do momento certo para atacar”.

Enquanto o governo apoiado pelos EUA ainda estava no poder em Cabul, o “comandante” do ISIS disse a Ward que “não é um problema para ele passar os postos de controlo e entrar na capital”. Até deixou a equipa da CNN filmar a sua entrada na cidade.

Na absurda entrevista, a jornalista que sentou-se num quarto de hotel com o alegado líder do ISIS para fazer-lhe perguntas como “está interessado em levar a cabo ataques internacionais?”. E sim, esta é uma pergunta feita por uma jornalista ocidental a um terrorista…

Em resposta a uma pergunta sobre os planos de expansão no Afeganistão na sequência de uma retirada dos EUA, o “comandante” disse:

Em vez de actualmente operar, limitámo-nos a recrutar, a tirar partido da oportunidade e a fazer o nosso próprio recrutamento. Mas quando os estrangeiros deixam o Afeganistão, podemos retomar as nossas operações.

Óbvio. Aqui vai o vídeo com legendas em castelhano:

Portanto: a CNN sabia da presença do ISIS no Afeganistão e até teve a capacidade de encontrar e falar com um (alegado) “comandante” do grupo. Coisas que nem o exército dos EUA ou a CIA conseguiram fazer. Faz sentido?

Nem por isso: os EUA tinham conhecimentos avançados sobre o ataque. Um aviso de segurança no dia 25 de Agosto no website da Embaixada dos EUA no Afeganistão:

Devido às ameaças à segurança fora dos portões do aeroporto de Cabul, aconselhamos os cidadãos americanos a evitarem viajar para o aeroporto e a evitarem os portões do aeroporto neste momento. Os cidadãos norte-americanos que se encontram agora no Abbey Gate, East Gate ou North Gate devem partir imediatamente.

Reino Unido e a Austrália emitiram avisos semelhantes, respectivamente “elevada ameaça de ataque terrorista” e “muito elevada ameaça de ataque terrorista”.

No dia seguinte ao ataque, o Comando dos EUA anunciou:

As forças militares americanas conduziram hoje uma operação de contra-terrorismo para além do horizonte contra um planificador do ISIS. O ataque aéreo não tripulado teve lugar na província de Nangarhar, no Afeganistão.

Pelo que, os EUA sabiam que um ataque estava a chegar e a seguir, dentro de 24 horas, anunciaram que tinham matado o perpetrador. Segundo a versão oficial, os EUA não foram capazes de impedir o ataque mas descobriram em questão de horas os responsáveis. Isso enquanto o ISIS divulgava as suas mensagens através do SITE de Rita Katz, o costume e uma “assinatura”.

Enquanto isso, o Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, disse numa entrevista na Quarta-feira (no programa Good Morning America da ABC) que os Estados Unidos não descartariam a prestação de ajuda directa ao regime dos Talibãs em Cabul. Obviamente uma ajuda “humanitária”:

Quanto à nossa relação económica e de ajuda ao desenvolvimento com os Talibãs, dependerá das acções dos Talibãs. Tratar-se-á de saber se cumprem os seus compromissos, os seus compromissos de passagem segura para os americanos e os aliados afegãos; o seu compromisso de não permitir que o Afeganistão seja uma base a partir da qual os terroristas possam atacar os Estados Unidos. Caber-lhes-á a eles, e nós esperaremos e veremos pelas suas acções como acabaremos por responder em termos da relação económica e da ajuda ao desenvolvimento.

Traduzindo: se o novo governo será simpático connosco, eis o dinheiro; caso contrário…

A bomba ninja

Vamos acabar com uma simpática nota.

Vinte e quatro horas depois do atentado no aeroporto de Cabul, como vimos, os EUA afirmaram ter identificado e eliminado o criador do ataque. A arma utilizada na ocasião foi o míssil Hellfire R9X com uma ogiva cinética e lâminas pop-out em vez de explosivos.

Construído pelas empresas Lockheed Martin e pela Boeing, o míssil é lançado por um drone e utilizado contra alvos humanos; a sua letalidade deve-se a 45 kg de denso material com seis lâminas que voam a alta velocidade até esmagar e cortar o alvo. Por esta razão tem sido apelidado de “bomba Ninja”.

 

Utilizado em segredo em 2017, a sua existência é pública desde 2019 e foi utilizado na Síria e no Afeganistão, também em combates.

Estes os efeitos num automóvel:

Um míssil que esmaga e fatia, literalmente, os inimigos. Tudo muito hi-tech, nada de barbaridades como os islâmicos…

 

Ipse dixit.

Um agardecimento para Alex Rubinstein, repórter independente em Subtack. Pode subscrever para receber gratuitamente artigos dele entregues na sua caixa de correio aqui, e se quiser apoiar o seu jornalismo, que nunca é colocado atrás de um paywall, pode fazer-lhe uma doação única através do PayPal aqui ou sustentar a sua reportagem através do Patreon aqui.

6 Replies to “O ISIS no Afeganistão (com ajuda)”

      1. Desculpa o erro, mas pretendia-me referir a black-ops executadas pela Blackwater.
        A Blackwater foi contratada pela CIA para operar no Afeganistão desde o início das operações…
        ‘https://resistir.info/eua/jeremy_scahill_p.html’

        1. Adicionalmente, sugiro a leitura do seguinte artigo…
          ‘http://elcoyote.org/o-plano-2-0-da-blackwater-para-o-afeganistao/’

  1. Adorei a entrevista imaginária … um alto dignatario islâmico que tem sonhos húmidos para implementar a Sharia aceita uma entrevista num quarto de hotel em Cabul conduzida por uma mulher ocidental e que em vez de burca usa um lenço sexy a cobrir apenas parcialmente o cabelo … O enredo é tão mau que nem sequer serviria de guião para um filme pornográfico, mas nos EUA isto é jornalismo ao mais alto nível.

  2. Olá Max e todos:
    O carro cortado com precisão, retalhado. Para mim é o retrato perfeito das capacidades dos serviços norte americanos pela paz e pela liberdade.
    O pior é que isso não acaba. E parte significativa do mundo acredita em boas intenções.
    Eu nasci em 1950, um ano predestinado a ficar na história dos horrores perpetrados militarmente pelos EUA, o bombardeamento completo, absoluto da Coréia. Algo tão catastrófico que obrigou os norte coreanos a construir uma vida subterrânea, com os agricultores saindo à noite para cultivar os campos.
    Naquele tempo o moderno era o napalm altamente utilizado por essa máquina de moer gente na Coreia Atualmente, o míssel com ogiva nuclear ou com lâmina em alta rotação. E a criação e utilização do terrorismo internacional
    E com guerras visíveis ou invisíveis, com domínio unipolar ou multipolar, toda desgraça produzida continua aceita pela humanidade.

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