Guerra e escassez: estava previsto

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia apanhou todos de surpresa. Mais ou menos. Bom, podemos dizer que a apanhou “alguns” de surpresa, nomeadamente a Europa que nem teve a oportunidade de imaginar um cenário como o presente. Assim como não podia ter previsto as consequências ditadas pelas sanções do Ocidente: foi algo inesperado, uma reacção natural perante a guerra declarada por Moscovo.

Diferente seria o discurso se alguém tivesse tido a oportunidade de prever a actual situação, tomando medidas atempadas, tanto para favorecer um clima de distensão diplomática entre os protagonistas, quanto para implementar uma diversificação do ponto de vista do abastecimento energético ocidental. Num tal panorama, provavelmente não haveria guerra; e, em caso de conflito, o Ocidente (e em particular a Europa) não estaria à beira dum crise energética que põe em risco as suas empresas e os cidadãos.

Mas tentamos imaginar: se vice-versa tivesse havido a concreta possibilidade de prever a actual situação e nada tivesse sido feito para evitá-la? Se Bruxelas e aliados tivessem tido ideia do que estava para vir e, simplesmente, decidiram deixar que isso acontecesse? Então seria lícito (e até um dever) falar dum plano conscientemente implementado para exacerbar os relacionamentos entre Oeste e Leste dum lado e, do outro, para pôr o Velho Continente numa situação de graves dificuldades. Isso, repetimos, só no caso que tivesse sido possível demonstrar a previsibilidade do actual cenário. E por aqui ninguém é um profeta.

ESPAS

Nada de profetas, portanto, mas analistas geopolíticos sim, temos.

James Edmund Moncrieff Elles, antigo membro do Partido Conservador do Parlamento Europeu, em 2010 e 2012 apresentou em Bruxelas duas alterações orçamentais para a criação do European Strategy and Policy Analysis System (“Sistema Europeu de Análise Estratégica e Política”, ESPAS), com o objectivo de estabelecer um sistema interinstitucional que examinasse de perto as tendências de longo prazo, com vista a fornecer elaborações e previsões nas políticas estratégicas. São estes os analistas e na União Europeia trabalham aí, no ESPAS.

O ESPAS é governado por um grupo onde todas as instituições da UE estão representadas em reuniões regulares, com Elles qual Presidente Honorário.

De facto, o ESPAS vê reunidos:

  • o Parlamento Europeu
  • o Conselho Europeu
  • a Comissão Europeia
  • o Comité Europeu das Regiões
  • o Comité Económico e Social Europeu
  • o Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (IESUE)
  • o Tribunal de Contas Europeu
  • o Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE)
  • o Banco Europeu de Investimento

Portanto, e apesar do ESPAS ser um objecto misterioso aos olhos de qualquer cidadão europeu (que muito provavelmente nunca ouviu falar dele), trata-se duma instituição bem radicada no interior da estrutura europeia, com ligações que vão desde o sector político (Parlamento, Comissão, etc.) para o económico (Banco Europeu de Investimento) passando pelo diplomático (SEAE).

Uma instituição que fica muito próxima do Atlantic Council (o think tank americano baseado em Washington e que envolve, entre outros, Henry Kissinger, Condoleezza Rice, Colin Powell, R. James Woolsey Jr) e, portanto, da NATO. Analistas que trocam informações com outros analistas, nomeadamente com aqueles do dono americano. Interessante. E o quê dizem os analistas?

Global trends to 2030

Em 2017, o ESPAS publicou o estudo Global trends to 2030 – Can the EU meet the challenges ahead? (disponível em formato Pdf no Serviço das Publicações da União Europeia em vários idiomas, infelizmente, não em português: aqui o inglês, aqui o espanhol), que “procura destilar de forma compacta as principais tendências que irão moldar os sistemas geopolíticos, económicos e sociais globais das próximas décadas, com especial referência às suas implicações para a União no período que se aproxima”.

A ruptura coma Rússia, página 47 do documento em espanhol:

A crise Rússia-Ucrânia pode marcar o início desta reconfiguração da geopolítica global, com o surgimento de uma frente que desafia o actual sistema.  […] A decisão da Rússia de confrontar o Ocidente sobre o que considera uma interferência na sua esfera de influência não só poderia levar ao seu isolamento e a uma ruptura duradoura, mas poderia também ser a base para um realinhamento anti-ocidental, envolvendo a China, a Rússia e um ou mais actores regionais importantes, tais como o Irão ou o Egipto. […]

A crise do panorama político e financeiro global, página 48:

Uma tal mudança no equilíbrio de poder poderia levar a uma ordem mundial profundamente diferente da actual sistema baseado em regras multilaterais. Também poderia favorecer o surgimento de estruturas regionais e/ou multilaterais para rivalizar com as instituições de Bretton Woods. No pior dos casos, poderia também levar ao desmembramento do panorama político e financeiro global. […] Comércio, investimento e tecnologia e cooperação tecnológica devem ser reconsideradas, para não dizer circunscritas, de acordo com as novas filiações geopolíticas que visam desenvolver os seus sistemas multilaterais.

O problema do gás, página 59:

Melhores infra-estruturas para maiores volumes de comércio são a melhor maneira de contrariar a actual tendência para a renacionalização de facto das políticas energéticas. São também a melhor resposta para o problema de segurança do aprovisionamento, nomeadamente no caso do gás natural, um problema grave, como demonstrado pelos recentes acontecimentos na Ucrânia.

A situação actual, página 75:

No que diz respeito à Ucrânia, o conflito interno e a diatribe entre a Rússia e o Ocidente parece estar em vias de continuar. O padrão de actividade da Rússia parece demonstrar a sua determinação em utilizar as alavancas de poder para manter a Ucrânia firmemente na esfera de influência da Rússia. A Rússia poderia continuar a exercer pressão sobre a UE e tornar as relações ainda mais febris, reafirmando o seu direito de “proteger” as minorias russas dentro da região, incluindo os Estados Bálticos da UE. Isto poderia também ter um impacto na coesão da própria UE, tal como a percepção de que as exigências de uma maior solidariedade da UE não foram satisfeitas, e minaria tanto a confiança de alguns Estados-Membros como a percepção externa da vontade colectiva da UE.

Portanto, UE e aliados conheciam o delicado papel da Ucrânia e a importância da intervenção de Moscovo no âmbito da protecção das minorias russas na região. Nenhuma surpresa: o conflito no Donbass já tinha eclodido na altura da publicação do estudo, tal como prossegue ainda hoje.

E conheciam também as fragilidades ocidentais (em particular da Europa) na questão energética: tinham também previsto eventuais dificuldades no abastecimento de matérias-primas, inclusive no âmbito do gás. Mesma página do documento:

Não se podem excluir perturbações do gás durante os próximos Invernos. A cooperação comercial e económica poderia continuar a desmoronar-se, enquanto tanto a Rússia como a UE procurariam clientes alternativos para as suas mercadorias, aumentando assim a sua separação estrutural. Além disso, a Rússia procurará defender, e se possível aumentar, a sua influência tradicional nos Balcãs. Esta crise poderia, portanto, marcar o início de uma nova era geopolítica que vê uma Rússia menos cooperante nos assuntos mundiais e um realinhamento das potências emergentes. A Rússia já tomou algumas medidas para reforçar as relações com a China, por exemplo, fornecendo energia com condições favoráveis. O recente acordo para a criação de um banco de desenvolvimento dos BRICS, com um financiamento de 100 mil milhões de Dólares e um cabaz de moedas de reserva no valor de mais 100 mil milhões de Dólares, aponta para um desafio às instituições “ocidentais” existentes, tais como o FMI e o Banco Mundial. O conflito entre a Rússia e o Ocidente é também susceptível de alargar o fosso existente na governação internacional entre a escala dos desafios globais e a capacidade de acordar as respostas de colaboração necessárias.

Esta é o trecho mais importante do documento: sim, Bruxelas (e não só ela) tinha previsto com pelo menos quatro anos de avanço a actual situação, com tanto de dificuldades no fornecimento de gás e uma cooperação comercial entre Rússia e Europa “a desmoronar-se”.

Não é credível que Bruxelas e os seus aliados se tenham simplesmente “esquecido” de implementar medidas de prevenção neste sentido. A falta duma programação que visasse proteger os cidadãos da União Europeia perante o “desmoronar-se” dos relacionamentos comerciais entre Moscovo e o resto do Velho Continente só pode ser lida no sentido dum consciente percurso fruto duma análise estratégica da governação europeia.

Não é, portanto, surpreendente que a Europa seja agora a vítima sacrificial de interesses estrangeiros. Doutro lado, tudo faz sentido se lido na óptica dum formatação mundial necessária para antes desestabilizar e depois orientar cuidadosamente todos os equilíbrios existentes. Não podemos esquecer as previsões do World Economic Forum (o Great Reset) e nem a Agenda 2030 da ONU: à luz destes últimos documentos, o que se está a passar na Europa pode ser explicado com extrema simplicidade.

A terrível escassez

Para acabar: escassez? Tudo faz pensar isso, sobretudo os preços que dispararam no caso de gás e electricidade. Então melhor espreitar os dados:

Tem sentido? Absolutamente sim: os Russos têm que financiar a invasão da Ucrânia, não é altura para abdicar das receitas. Então a escassez, a subida dos preços? Ehhhh, meus senhores, a escassez, os preços… vamos falar disso amanhã, pode ser? Porque aqui chove e tenho que ir fechar a janela.

 

Ipse dixit.

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