Guerra: lugar e protagonistas. Mais propaganda.

A guerra é terrível. Mas nem sempre: tudo depende da distância também. Por exemplo, espreitem a seguinte tabela que trata apenas dalguns dos conflictos em curso no planeta (e com um total dos mortos amplamente subestimado):

País Início Total mortos
Myanmar 1948 150.000-210.000
Afeganistão 1978 1.450.000–2.084.468
Nigéria
Camarão
Níger
Chade
2009 358.000
Yemen 2011 377.000
Síria 2011 500.000–606.000
Sudão do Sul 2011 386.000–400.000
Etiópia
Eritreia
Sudão
2020 23.600–100.000

Hoje estava à espreitar as primeiras páginas dos diários europeus, depois fui ver algumas das capas dos principais jornais do Brasil: e vi que afinal todos ponham em destaque a guerra na Ucrânia. Única excepção: O Povo que na hora da minha consulta titulava Fortaleza começará amanhã a aplicar 4ª dose da vacina contra Covid-19.

Sem dúvida a guerra na Ucrânia é algo “especial” tanto por estar a desenvolver-se no coração da Europa, quanto pelo facto de implicar a participação duma das maiores potências (a Rússia) que, indirectamente, se confronta com uma outra (os EUA). Todavia estas duas motivações deixam entender que a importância duma guerra deriva basicamente:

  • do lugar onde esta acontece
  • dos protagonistas envolvidos

E não há como contornar isso. Até agora, na Ucrânia morreram talvez mais de 10 mil pessoas (um total que não é de confiança. Por exemplo: os soldados russos mortos são segundo Moscovo 498, segundo os funcionários dos EUA 1.500-2.000, segundo os funcionários europeus 5.800, segundo a Ucrânia mais de 9.000+). Arredondamos e, considerando todas as partes envolvidas, vamos falar duns possíveis 10 mil mortos. Que são muitíssimos, uma enormidade.

Agora vamos comparar estes 10 mil mortos com os 386.000 – 400.000 do Sudão (tanto para não falar sempre e só do Yemen ou da Síria), num conflito que começou já no longínquo ano de 2011. Se 10 mil mortos são uma enormidade, o que pensar de 400 mil? Todavia, quantas primeiras páginas dos diários merece este conflicto agora? Porque os confrontos não acabaram, continuam ainda hoje.

Há jornalistas enviados no terreno para saber o que aconteceu às milhares de crianças raptadas durante os ataques? As mulheres violadas? Os civis assassinados? Quais estruturas foram atingidas? Se os responsáveis foram individuados e perseguidos? O Leitor sabe ao menos se foram instituídos corredores humanitários ou um cessar o fogo?

Muito provavelmente o Leitor não tem estas respostas. Compreensível, uma guerra no Sudão não faz mossa, a nossa vida continua tranquilamente: sejam 400 mil ou 1 milhão os mortos no Sudão, qual a diferença? Mal sabemos onde fica o País. Então é lícito ficar pasmados perante a terrível história de Petra, a pobre criança ucraniana de 8 anos em lágrimas pela morte do irmão, enquanto das crianças do Sudão nem conhecemos os nomes.

Tudo isso tresanda a hipocrisia? Sem dúvida, mas não é este o ponto que queria realçar. A tabela acima apresenta a guerra na Síria, com um total de mortos que varia entre 500.000 e 606.000, mais de 6 milhões de refugiados. Contrariamente ao que aconteceu com o Sudão, a Síria encheu as primeiras páginas dos diários durante semanas e meses: não por estarmos mais sensíveis ao destino do povo sírio, do qual não queremos saber como é óbvio, mas porque aí a guerra envolveu os EUA, israel e indirectamente a Rússia. Pelo que: estamos devidamente informados, parabéns aos órgãos de informação e ao mundo da informação alternativa (I.I. incluída).

Ou talvez nem por isso. Responda honestamente o Leitor (não nos comentários, é só uma maneira de dizer!): como é a situação na Síria? Há corredores humanitários? Há cessar o fogo? Ainda há combates? Há sanções? Há reconstrução? Afinal: quem é que ainda combate na Síria? Ao mesmo tempo, o assunto Afeganistão (lembram-se dos terríveis Talibans?) desapareceu por completo do horizonte informativo, tal como os recentes protestos no Cazaquistão (ou era no Quirguistão?).

Porque a regra é sempre a mesma: o lugar onde acontece e os protagonistas envolvidos. O resto não conta e só consegue despertar um pouco de atenção (e durante um período de tempo limitado) quando as baixas atingirem valores incrivelmente elevados. Há algo de terrivelmente errado em tudo isso, há algo profundamente errado.

O exemplo mais flagrante é a guerra no Donbass: há combates e mortos (incluindo civis) há oito anos, mas quem falou disso? Agora todos os media ocidentais, até do outro lado do oceano, enchem as primeiras páginas com o que se passa na Ucrânia. Mas o que aconteceu afinal? Aconteceu que a guerra deslocou-se de apenas uns quilómetros e agora atinge os nossos interesses.

Por aqui faço o mea culpa e assumo as falhas, sem nem tentar apresentar justificações ou álibis, porque uma página de informação alternativa deveria tratar destes assuntos e evitar que estas tragédia caiam no esquecimento. Também uma página de informação “normal” deveria fazer o mesmo, mas isso seria pedir demais.

Mas apresentar desculpas não chega: é preciso também entender as razões desta atitude errada. Então: por qual razão costumamos esquecer as guerras “dos outros” e por qual razão? Já foi dito: distância e protagonistas. Podemos acrescentar algo? Sim, podemos: propaganda.

 

Ipse dixit.

Imagem: PxHere CC0 Public Domain

3 Replies to “Guerra: lugar e protagonistas. Mais propaganda.”

  1. Olá Max: estava esperando este artigo de ti. Afinal chegou para melhorar o meu domingo.
    Pode meio mundo ser rebentado, e o que? Ninguém ouviu falar, nem sabe que existe, nem tem a ver conosco, então tudo bem.
    Agora tem a ver conosco, e principalmente tem a ver com a burguesia brasileira e estrangeira, dona do agronegócio.
    Sabe porque? Não tem mais fertilizantes. O atual governo vendeu as nossas fábricas de fertilizantes e importava da Rússia
    Mas a Rússia não pode exportar, devido às sanções dos EUA.
    Sem fertilizantes, não se consegue mais colher coisa alguma no Brazil. A não ser os agricultores orgânicos que usam cocô de galinhas, de morcegos, de gansos e perus. Também esterco de bovinos, cavalos e restos orgânicos caseiros. Mas tudo na escala humana e não milhares de hectares de culturas de soja, fertilizadas de avião, para alimentar bovinos dos EUA, que nunca viram capim. Monocultura mais monocultura pouco a pouco, comendo a selva amazônica, com seu solo pobre que, sem fertilizante, nada feito.
    Brevemente o pão vai sumir, ou subir vertiginosamente de preço. O trigo da Rússia não pode ser vendido para o exterior, em função das sansões impostas pelos EUA. O trigo da Ucrânia, putz, estão em guerra.
    Bueno, sem problema para mim. Moro em um lugar, onde tem uma distribuidora de alimentos orgânicos a poucos metros da minha casa, tenho um pouco de terra que pode ser destinada a fazer hortas, tenho fogão de lenha e sei fazer pão de milho, de batata, de aípim, e por aqui ainda existe alguns moínhos que compram trigo de pequenos fornecedores locais Também tenho fogão a lenha. Nada de preocupações a vista.
    MAS EU SEI E ME IMPORTO, não só com os 10.000, mas com os milhões de outras invasões americanas por único interesse de pilhar, que rebentam a vida de milhões, e provocam a migração forçada de outros milhões.
    Tanto sei que entendo a necessidade de uma guerra para acabar com a guerra permanente. E sei também quando aqueles que estão guerreando são levados ao limite. Afinal todos somos humanos, e muitos humanos, ás vezes são por demais inconscientes, hipócritas e maus.

  2. Sim Maria tens toda a razão , muitos humanos são por demais inconscientes , hipócritas e maus …

    Passo a citar:

    “ …Putin cometeu um erro, penso eu. Atacou de leve, poupando os civis….“

  3. É isso mesmo Maria, a hipocrisia das pessoas de vez em quando vai tendo os seus expoentes, só é necessário um tema e uma uma TV para as mobilizar. Eu sou Charlie! Agora tenho uma bandeirinha amarela e azul no meu perfil do Face. E assim vai o mundo. Quanto aos mortos, aqueles verdadeiros, lá do quadro em cima, nem sabem que existem.
    A coisa está a ficar feia. Ontem, em Portugal estourou o pânico por causa do aumento dos combustíveis, daqui a pouco vai estourar o pânico por causa da crise alimentar, e aí quem se souber virar, ou estiver preparado, terá mais chances de se safar.
    Tenho um mau pressentimento em relação a esta situação, não tanto no escalar da guerra, que é provável, mas na questão de oportunidade que esta situação representa.

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