O “golpe” da Guiné Bissau

Como sabemos, uma tentativa de golpe abalou a Guiné-Bissau, a antiga colónia portuguesa na África Ocidental. O Presidente Umaro Sissoco Embaló foi o alvo de uma tentativa de assassinato. Mais ou menos. Talvez. Quem sabe?

Alegadamente, enfrentou um tiroteio no seu palácio presidencial e, numa emissão televisiva na sequência da tentativa de assassinato, o Presidente disse que sete dos seus homens de segurança morreram no ataque.

Segundo a versão oficial, a tentativa de matar Embaló, o Primeiro Ministro e todo o gabinete foi perpetrada por uma força isolada ligada às pessoas que o governo combate. O mesmo Presidente afirmou:

O ataque falhado contra a democracia […] foi bem preparado e organizado e pode estar relacionado com pessoas envolvidas no tráfico de droga.

Pois: drogas.

A droga

Os observadores externos estão cada vez mais preocupados que o governo defendido por Embaló possa cair e que o País possa ficar nas mãos dos cartéis de tráfico de droga, que de facto poderão acabar por controlar o País, transformando-o no primeiro narco-Estado declarado no Continente Negro.

Mas a imagem dum governo vítima dos cartéis não explica bem como estão as coisas na Guiné. Para já, há no País uma clara agitação que reflecte o descontentamento popular perante a incapacidade do governo em conter a crescente violência jihadista. No entanto, é bem conhecido que a situação na Guiné-Bissau está ligada à influência dos traficantes de droga, os quais estão suficientemente bem financiados e armados para constituir um sério obstáculo ao avanço da Jihad.

Doutro lado, Embaló, que ganhou a presidência numa eleição altamente controversa em 2019, tinha ficado conhecido como um magistrado especializado na luta contra os traficantes de droga: estes últimos tinham aumentado grandemente a influência tanto na economia privada quanto nas forças armadas do País africano. O problema é que desde a eleição de Embaló, o tráfego de droga parece ter crescido.

Para entender por qual razão a droga se tornou algo tão importante na Guiné, temos que voltar atrás, até o início dos anos de 2000. Na altura, os cartéis sul-americanos estabeleceram pela primeira vez bases na Guiné-Bissau, tirando partido da sua geografia e do fraco governo para criar uma nova estação de trânsito dedicada à cocaína na rota entre a Bolívia ou o Peru e Europa.

Durante o mandato como magistrado, Embaló conseguiu resultados significativos contra os cartéis, que desviaram as atenções para os Países vizinhos, mas a Guiné-Bissau está novamente no centro do comércio. E uma das explicações reside na figura de António Indjai, antigo general da Guiné e ex-golpista, que em 2013 tinha ajudado a orquestrar um negócio de armas e cocaína com os grupos rebeldes das FARC da Colômbia. Indjai vive tranquilamente na sua quinta onde produz cajus mas ao longo do ano de 2020 foi fotografado com Embaló no palácio presidencial. E, apesar de Indjai ser procurado sob um mandado de prisão internacional pela participação na transação droga/armas com a Colômbia, Embaló excluiu a extradição e, durante uma viagem aos Estados Unidos no ano passado, terá encorajado as autoridades a abandonar o caso do antigo general.

Golpe?

Claro que agora alguém começou a fazer-se perguntas. Quais ligações existem entre Embaló e Indjai? Foi realmente um golpe ou uma operação de falsa (e mortífera) bandeira com outros fins? Há algo que não bate certo no conto dum ataque que durou cinco horas num País onde os golpes não são raros mas costumam ser sangrentos e rápidos.

Zero Hedge, por exemplo, reporta quanto afirmado pelo advogado e activista dos direitos humanos Luis Vaz Martins (alvo dum ataque durante o golpe) no Financial Times:

Culpar os traficantes pelo ataque é uma atitude politicamente inteligente, mas isto não tem nada a ver com o tráfico de droga. O sentimento geral aqui é de que se trata de um falso golpe. […] A relação entre o presidente e os seus aliados é tensa, razão pela qual ele não pode sentir-se seguro se for protegido pelos seus aliados, por isso está a tentar trazer as forças [do bloco regional da África Ocidental Ecowas, ndt] para obter a protecção de que necessita.

A Ecowas (em inglês: Economic Community of West African States) é mais conhecida por aqui como CEDEAO (“Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental”), a organização de integração regional que engloba quinze Países da África Ocidental e que em 2017 já interveio militarmente na Gâmbia para garantir a posse do novo Presidente. E, de facto, a CEDEAO irá enviar uma força de ‘’estabilização’’ para Guiné-Bissau, decisão tomada no final da cimeira de Chefes de Estado realizada na Quarta feira, dia 3 de Fevereiro.

E que alguém seja preciso para acalmar a situação parece bastante claro: é suficiente espreitar os diários guineenses para entender que o clima está particularmente quente e que a droga é apenas um aspecto do problema.

O Presidente da rede da Defesa dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau, Fodé Mané, em A Voz da Juventude Guineense:

Estamos perante um Estado, que para além de não estar em condições de garantir segurança às pessoas, ainda permite que os seus meios e os seus agentes sejam utilizados para criar um clima de terror e de medo. Há uma sensação de insegurança, de terrorismo, em que todo o mundo está vulnerável e indefeso neste momento. A comunidade internacional deve reagir rapidamente e de forma clara perante as violações, as ameaças, as detenções ilegais que têm ocorrido na Guiné-Bissau. Estamos a falar de sindicalistas, jornalistas e pessoas que trabalham em questões ligadas aos Direitos Humanos.

O líder do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), afirma que basta ver no rosto das pessoas para perceber que estão prontos para “explodir, revoltar e reagir” contra a actual situação vigente no País (fonte: Ditadura de Consenso):

Sabemos que a arma de repressão ou seja importar gases lacrimogénio é fácil, mas, mobilizar um Povo para levantar todos de uma vez, leva-nos à muito trabalho, muitas sensibilizações e preparação. Chega o seu dia, momento, hora e limite, e foi essa hora que me parace que já chegou.

Enquanto o Presidente do Partido da Unidade Nacional (PUN), Idrissa Djaló, confirmou a solidariedade para com o Presidente Embaló, pediu a maior “transparência possível” no processo de investigação aos acontecimentos de 1 de Fevereiro, no Palácio do Governo, como relata O Democrata:

Se se revelar necessário, solicitar a intervenção de peritos internacionais, porque a justiça guineense perdeu a credibilidade.

A Guiné Bissau

A Guiné Bissau é um dos 20 Países mais pobres do mundo, com um Índice de Desenvolvimento Humano que é um dos mais baixos do planeta. Mais de dois terços da população vive abaixo da linha de pobreza, sendo que a economia depende principalmente da agricultura: peixe, castanha de caju e amendoim são as principais exportações.

O longo período de instabilidade política resultou numa actividade económica deprimida, deteriorando as condições sociais e aumentando os desequilíbrios macroeconómicos. Após vários anos de retração económica e instabilidade política, em 1997 a Guiné-Bissau entrou no sistema monetário do Franco francês, o que trouxe alguma estabilidade monetária interna. Todavia, a guerra civil ocorrida em 1998 e 1999 e um golpe militar em setembro de 2003 perturbaram novamente o País, deixando uma parte substancial das infra-estrutura em ruínas e intensificando a já difundida pobreza.

Após as eleições parlamentares em Março de 2004 e as eleições presidenciais em Julho de 2005, o País tentou recuperar mas a situação política interna continuou frágil, culminando no golpe de 2012. Para piorar ainda mais, no mesmo ano a Guiné Bissau entrou no programa de reforma estrutural apoiado pelo Fundo Monetário Internacional. E assim a droga tornou-se apenas um entre os problemas do País…

 

Ipse dixit.

Imagem: Carsten ten Brink Attribution-NonCommercial-NoDerivs 2.0 Generic (CC BY-NC-ND 2.0)

2 Replies to “O “golpe” da Guiné Bissau”

  1. Olá Max e todos: a Guiné Bissau já teve seus dias de revolução “socialista”. Assisti de camarote a revolução que me pareceu ser apenas das lideranças. Na época meu orientador de doutorado mantinha um projeto que ele chamava de libertação e, eu, depois de uma semana em campo me pareceu ser de aculturação. Passada a primeira semana me desgarrei do grupo que tentava conscientizar o povo alvo do projeto, negando seus hábitos ancestrais, a ser substituídos pelos nossos.
    “Atrasados demais”, soube mais tarde que o projeto não frutificou.
    O pouco que tomei conhecimento depois, me pareceu que a história se apresenta mais ou menos como na América, essa nossa, a de baixo: surtos de revolução “socialista” seguidos de surtos de golpe de estado, o povo quase sempre de fora com a sua raiva contida, e os narcos pelo meio.
    A mesma coisa de sempre: os impérios defendendo seus interesses (agora são dois competindo por carniça), mudando seus palhaços amestrados na governança que melhor cumpram as ordens do momento, e o povo se matando em campo, inventando ressentimentos que viram sangue derramado. de inocentes pobres e “atrasados”.

  2. Em tempo: quem tiver interesse na revolução socialista da Guiné Bissau, procure por Amilcar Cabral, seu idealizador, que morreu assassinado, para variar. Tudo em português, a Guiné foi colônia de Portugal, situação pela qual este marxista queria garantir independência.

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