As tatuagens de Ötzi

Em 1991, nos Alpes italianos a poucos metros da fronteira com a Áustria, foi encontrado o corpo excepcionalmente bem conservado dum homem da Idade do Cobre (3300 – 3100 anos antes de Cristo), desde então baptizado como Ötzi ou Múmia do Similaun (do nome do pico mais próximo).

Ao longo do tempo foram escritas as coisas mais disparatadas: Ötzi era um xamã, tinha sido sodomizado, trouxe uma maldição, etc.. A verdade é um pouco menos fantasiosa mas nem por isso menos surpreendente.

Para já: a análise do DNA mostra uma afinidade com os habitantes da Sardenha. Isso é surpreendente porque, além do factor da distância (a Sardenha fica no meio do Mediterrâneo), há o facto que ainda há dúvidas acerca da origem do povo dos Sardos, provavelmente originários da Península Ibérica (e do quais derivaria o nome Sardegna) mas com sucessivos importantes contactos com povos orientais (provavelmente Creta, com certeza os Fenícios).

Mais uma vez, estamos perante una sociedade na qual as ligações iam muito além da área de residência: Ötzi tinha consigo um machado feito de cobre, neste caso um metal valioso do sul da Toscana (Italia central). Provavelmente Ötzi tinha alguma forma de contacto com a cultura de Remedello, na zona de Brescia (não longe do rio Po) em cujos túmulos foram encontrados machados feitos com o mesmo material toscano, o que confirma a existência de ligações de longa distância.

Mas um dos resultados mais interessante na análise forense de Ötzi pode surgir da pele dele.

Tinta antiga

Os primeiros estudos encontraram inicialmente entre 49 a 57 tatuagens, que depois aumentaram para 59. Os resultados têm variado com o tempo porque as suas tatuagens são difíceis de detectar: por um lado, a múmia tem 5.300 anos, pelo que a sua pele está compreensivelmente desgastada; além disso, as tatuagens foram provavelmente aplicadas perfurando a camada superior da pele e esfregando carvão vegetal sobre ela o que, juntamente com o desgaste provocado pelo tempo, não oferece muito contraste.

Recentemente uma equipa de investigadores europeus analisou as tatuagens dispersas de Ötzi, bem como as várias ervas e medicamentos encontrados ao lado dos seus restos mortais, para pintar uma imagem mais clara da comunidade de Múmia e das suas antigas práticas médicas.

As plantas encontradas entre os bens pessoais apoiam o retrato de uma sociedade complexa. O fungo polypore de bétula ligado às faixas de couro das ferramentas de Ötzi pode ter acalmado as inflamações ou actuado como um antibiótico, enquanto a pteridófita (feto) encontrada no seu estômago pode ter servido como tratamento contra as ténias. Foram detectados também vestígios de musgo do pântano em ligaduras improvisadas.

Aqui poucas surpresas: numa época em que não havia Big Pharma, os medicamentos eram feitos com base nas propriedades naturais das plantas. Mas voltemos às tatuagens

Estudo da tatuagem

Para aumentar o contraste entre a pele e as tatuagens, os investigadores utilizaram uma técnica de imagem multiespectral que detectou diferenças de cor na pele, mesmo na gama não visível. Isto aumentou o contraste no corpo de Ötzi e revelou uma série de tatuagens no peito anteriormente não vistas, elevando a contagem final para 61.

As descobertas dos cientistas, recentemente publicadas no Jornal Internacional de Paleopatologia, sugerem que Ötzi pertencia a uma sociedade com conhecimentos médicos avançados.

A introdução da acupuntura tem sido sempre atribuída aos chineses. Angela Hicks, reitora da Faculdade de Medicina Integrada Chinesa em Reading (UK), afirma que os chineses escreveram pela primeira vez as suas teorias sobre a acupunctura em 200 a.C.

Mas se os resultados da recente investigação sobre a múmia mais antiga da Europa fossem confirmados, teríamos descoberto que a arte de espetar agulhas no corpo para aliviar doenças era praticada pelos humanos desde a Idade do Cobre na Europa, séculos antes de ser utilizada no Oriente e pelo menos 2.000 anos antes de serem encontrados os primeiros escritos sobre a prática na China.

Segundo a acupunctura chinesa, a inserção de agulhas em certos pontos atinge o fluxo da energia subjacente, alterando dor e inflamação. De acordo com a tradição, as linhas, ou meridianos, que atravessam o corpo correspondem aos órgãos internos. As tatuagens Otzi estão maioritariamente agrupadas em torno da parte inferior das costas e das articulações dos tornozelos, pulsos e joelhos: estes pontos são normalmente associados aos meridianos da bexiga e do baço, pontos utilizados quando uma pessoa sofre de problemas abdominais.

Cientistas britânicos descobriram recentemente ovos de Trichuris trichiura (o verme do chicote) no tracto digestivo de Ötzi, uma infestação parasitária que causa a Tricuríase, com agudas dores de estômago.

Um antigo património

No entanto, no inventário mais recente das tatuagens, os investigadores identificaram marcas no peito da Ötzi onde não existiam sinais de desordem.

Este grupo poderia desafiar as teorias sobre a finalidade das tatuagens da Múmia. Mas os investigadores foram rápidos a realçar como Ötzi poderia ter sofrido de outros problemas de saúde que causaram dor na zona do peito, mas que não foram registados nos restos mortais.

No final, todas estas teorias poderiam estar completamente erradas e as tatuagens poderiam simbolizar algo completamente diferente. Mas as coincidências merecem atenção: a prática de inserir agulhas nos pontos energéticos, o que hoje chamamos de acupuntura, afinal poderia ser uma prática  mais antiga do que estimado, um património das antigas culturas e algo que percorreu milhares de quilómetros ao redor do globo durante milhares de anos.

Absurdo? Talvez. Mas Ötzi já usava plantas e musgos com funções anti-inflamatórias e antibióticas. Ötzi de certeza não sabia o que era um antibiótico. No entanto usava-o.

 

Ipse dixit.

Em abertura: o lugar onde foi encontrado Ötzi (Tigerente, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons)

Fonte principal do artigo: L’Arazzo Del Tempo

2 Replies to “As tatuagens de Ötzi”

  1. Interessante, estamos cercados de indícios de que a nossa história nos foi escondida .
    E como está a situação em Itália ?
    Porque vejo na internet que existe uma manifestação em curso contra o governo e as medidas da treta , mas a comunicação social do regime não fala nada sobre isso ….talvez para não tirarmos ideias …
    E voltando ao tema … como podemos acreditar na história da humanidade de milhares de anos quando até a história do dia anterior nos é ocultada pelos donos do sistema …

  2. Olá Max :gosto demais de saber desses encontros com o tempo, embora as interpretações devam ficar muito longe da realidade.
    Os pesquisadores pensam com a cabeça do nosso tempo, isto é , como acreditamos ou sabemos agora, ignorando como se pensava e o que se sabia na época.
    Eu, por exemplo, quando as supostas perfurações atingiam justamente os locais que me doem, imediatamente admiti que o Ötzi tinha problemas de falta de cartilagens. É assim que pensamos: a luz da nossa experiência acumulada de poucos tempos.
    Assim eu penso que a hipótese de um xamã que foi fazer seus rituais nas altas montanhas e lá o frio o matou equivale a de um cidadão comum, sapiente da medicina da época, que morreu e, quem sabe pediu para repousar no alto das montanhas geladas.
    Mas é muito bom saber que houve época em que remédios eram preparados pela natureza, que o bem estar físico dos humanos repousava nas plantas não cultivadas, e que se nossos organismos não estivessem saturados por fármacos, talvez pudéssemos utilizar esta medicina de então com resultados satisfatórios.
    Também quando vi as imagens dos risquinhos no corpo do meu ancestral, descartei a decoração porque estou acostumada a ver imagens de bichos gravadas nas rochas. Mas…o que para mim não é bonito, e me leva a pensar num sistema de contagem, sei lá se não era uma espécie de “arte moderna a’ da época, da qual Ötzi fora um precursor.
    Não quero dizer que os riscos não estivessem ligados a algum tratamento contra males físicos, mas é uma hipótese entre muitas, suponho.

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