Liberdade de imprensa: o relatório de Repórter Sem Fronteiras

Liberdade de imprensa, coisa bonita. E útil. Como medimos a independência dos jornalistas? Com classificações, claro, a mais conhecida das quais é aquela publicada por Repórter Sem Fronteiras (RSF). Cada ano uma nova lista, com tanto de mapa colorido, cuja função é lembrar que temos sorte pois vivemos numa das zonas mais livres do planeta.

De Reporters Sans Frontières já falámos neste artigo de 2010, praticamente pré-história: passaram 11 anos e a situação parece idêntica. Atrás desta ONG é ainda possível encontrar o financiamento do Congresso dos Estados Unidos, que actua via National Endowment for Democracy (NED) e Freedom House.

O NED, explica Wikipedia, é uma agência quasi-autonomous non-governmental organization, “não -governamental quase-autónoma”. Tão autónoma que recebe os fundos do Congresso e é gerida por homens e mulheres que fazem ou faziam parte do Congresso. Freedom House, pelo contrário, é uma organização não governamental, portanto 100% autónoma: é por isso que é financiada pelo Congresso e é gerida por homens e mulheres que fazem ou faziam parte do Congresso.

No meio desta autonomia toda não podemos esquecer o financiamento da Open Society de George Soros à RSF que, portanto, é uma das ONGs mais independentes do planeta.

Ditos isso, vamos espreitar o último relatório de RSF. A lista completa dos Países ordenados segundo o grau de liberdade da imprensa pode ser encontrada neste link, já em bom português. Na Top Ten do ranking mundial estão Noruega, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Costa Rica, Jamaica Holanda, Nova Zelândia, Portugal (!!!) e Suíça. No fim da lista dos 180 Países inquiridos no mundo estão China, Turquemenistão, Coreia do Norte e Eritreia.

Descobrimos assim que a Europa é uma ilha feliz enquanto os amigos do Brasil não estão tão bem. E isso para não falar de África, Médio Oriente ou Ásia. A situação na Europa é tão boa, segundo RSF, que até a Ucrânia nazi está melhor posicionada quando comparada com o Brasil ou a Bolívia. E os EUA, onde todo o sistema de informação é gerido por cinco multinacionais? Situação satisfatória segundo RSF: “Os primeiros 100 dias da presidência de Joe Biden foram marcados por avanços significativos em termos de transparência”. Doutro lado, o mesmo ZomBiden disse que “uma imprensa livre é essencial para a boa saúde da democracia”, pelo que podemos ficar descansados.

Mais no geral, má ou muito má é a situação de todos aqueles Países que contrariam a política de Washington. O que faz sentido, pois os EUA continuam a ser o farol da liberdade e da democracia: quem quer que se oponha tem que ser inimigo tanto da primeira quanto da segunda.

Como funciona?

Deixamos de lado os dados e vamos fazer uma pergunta: mas quem compila esta classificação? E como? Que depois são duas perguntas e não uma, mas fazemos de conta que nada aconteceu.

Duas as ONGs que elaboram a classificação anual de RSF: a mesma RSF, obviamente, e a já citada super-autónoma Freedom House. Ambas utilizam critérios qualitativos e quantitativos, e ambas fazem coincidir o conceito de liberdade de imprensa com aquele de independência da imprensa, ou seja, não ligada ao financiamento privado interessado em influenciar a opinião pública. Assim dizem elas.

A coisa funciona desta forma: RSF envia um questionário aos seus parceiros em vários Países do mundo, tais como associações, grupos, comités, outras ONGs e jornalistas individuais seleccionados a critério exclusivo da RSF. Cada “jurado” tem votos de 1 a 10 sobre os seguintes tópicos:

  • pluralismo
  • independência dos media
  • contexto legislativo
  • censura
  • possível auto-censura.

Uma pontuação inicial é obtida através de uma fórmula matemática. A pontuação é ponderada pelas penas por delitos de imprensa, queixas e intimidação relatadas, a existência ou não de um monopólio estatal, o nível de independência dos meios de comunicação públicos. Outras classificações serão então acrescentadas por RSF às pontuações finais, resultantes da “monitorização” de situações particulares de censura ou de crimes graves contra jornalistas.

Podemos ler a lista dos parceiros, isso é, de quem responde às perguntas? Não, é secreta. Por conseguinte, não é possível saber de quem são as opiniões e os votos utilizados para julgar a liberdade de expressão da imprensa em cada País. Apenas sabemos que a lista é constituída por 18 ONGs para a liberdade de expressão, com cerca de 150 correspondentes incluindo investigadores, advogados, jornalistas e activistas dos direitos humanos.

Faz sentido? Em teoria sim: trata-se duma medida para proteger aqueles que participam no inquérito. Todavia, o resultado é um método questionável com o qual o relatório mais impactante do ponto de vista mediático sobre a liberdade de imprensa mundial é construído com as opiniões e os votos de… boh? Ninguém sabe: é preciso confiar. Confiar na capacidade perceptiva dos entrevistados, na distribuição global das amostras, na sua representatividade, na análise de RSF… e nós confiamos.

Depois chega Freedom House que compara a legislação de liberdade de imprensa de cada País com o País “real”. Também aqui não é dado a conhecer quem julga e como, com quais critérios, um país “real” de acordo com o ambiente político, social e económico. Temos que confiar. E nós confiamos.

Dúvidas: qual a pontuação atribuída à prisão de Assange no Reino Unido? Ao assassínio de Khashoggi? A prisão do burlão Navalny? Não sabemos. Mas confiamos. Também porque quem não confia acaba mal.

O caso Ulfkotte

“Repórter Sem Fronteiras é financiada por Soros e está muito perto da CIA”. Palavras escritas por um jornalista de topo, o alemão Udo Ulfkotte. Ulfkotte era um jornalista bem conhecido no País dele, tendo trabalhado durante 17 anos no Frankfurter Allgemeine Zeitung, um dos principais diários alemães (é o mais difundido no estrangeiro).

Após ter deixado o Frankfurter, Ulfkotte tinha fundado uma revista independente, Whistleblowers, onde documentou histórias de outro modo esquecidas pelos media alemães: infiltrações islamistas na Alemanha, Ucrânia, corrupção no jornalismo, Aspen Institute, Marshall Fund, Bilderberg Group, Gadaffi, George Soros, CIA… e confessando publicamente ter estado ao serviço da CIA e da estrutura de informação que apoia a NATO. Segundo Ulfkotte, os meios de comunicação ocidentais não são mais do que uma emanação dos serviços secretos dos EUA e trabalham exclusivamente para fazer avançar os interesses do sistema de poder que gira em torno de Washington.

A 13 de Janeiro de 2017 Ulfkotte foi vítima de um ataque cardíaco. Tinha 56 anos e as autoridades alemãs identificaram de imediato a causa da morte apesar de nenhuma autópsia for realizada. As autoridades judiciais autorizaram a cremação do cadáver, prejudicando assim irremediavelmente a possibilidade de exumar o corpo numa data posterior, e de estabelecer se foi de facto uma paragem cardíaca que causou a morte súbita. Outro caso em que é preciso confiar. E nós confiamos, sempre.

Obviamente, a Alemanha ocupa os primeiros lugares na liberdade de imprensa mundial. Uma certeza confirmada pelo relatório de Repórter Sem Fronteiras. Confiem.

 

Ipse dixit.

2 Replies to “Liberdade de imprensa: o relatório de Repórter Sem Fronteiras”

  1. Olá Max: graças aos silenciados é permitido para alguns de nós melhorar a compreensão do funcionamento do mundo.
    Os mandados tem uma parcela de culpa em cada desaparecimento. Se negam ouvir essas poucas vozes da verdade.
    O que acontece com Assange é incontestável. Deu-nos uma contribuição imensa de realidade e paga essa oferta com a tortura silenciosa da prisão e do silêncio, por anos a fio. Nenhuma manifestação gigantesca e não tão pacífica dos seus colegas de profissão. Nenhuma sabotagem aos interesses dos seus algozes mais diretos. nenhuma lembrança constante da vergonha sendo difundida dia a dia, martelando os ouvidos do mundo submisso.
    Às vezes me pergunto se vale a pena o sacrifício de vidas preciosas, se a maioria dos humanos é surda.
    Curiosamente o documento institucional exposto no artigo refere-se a países que supostamente teriam mais ou menos liberdade de imprensa. Mas não fala da quantidade de suicidados, imolados ou assassinados nesta guerra permanente. Uma guerra que pouquíssimos compreendem que ela é a mais fundamental para sabotar os poderosos e o sistema que eles gerem em seu único beneficio.

  2. Grande Max,

    Agora vou fazer de advogado do Diabo, mas se o homem optou por trabalhar para a CIA e depois resolve expor o que ficou a saber mas continua a residir na Alemanha, essencialmente um país vassalo dos EUA, certamente que devia saber que corria risco de vida. Eu, com este percurso mudava-me para a Coreia (do Norte) antes de demonstrar qe “os meios de comunicação ocidentais não são mais do que uma emanação dos serviços secretos dos EUA e trabalham exclusivamente para fazer avançar os interesses do sistema de poder que gira em torno de Washington.”

    Grande Maria,

    A história de Assange parece-me inverosímil, fico a pensar se ele não foi usado como marioneta mas depois o plano não funcionou bem, parece haver muitas similitudes entre esta personagem e a personagem da Greta, que me impedem de acreditar nas pessoas que as encarnam, antes ainda de chegar a ouvir o que defendem.

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