O lado obscuro da filantropia

A caridade, uma virtude dos ricos. Ou talvez não. A caridade pode ser mais uma arma nas mãos dos poderosos. Observamos o que aconteceu na última década: um crescimento exponencial do número de bilionários-filantropos, tanto que em 2010 Bill Gates e Warren Buffett lançaram The Giving Pledge, um movimento de empreendedores que comprometeram-se a doar uma grande parte da riqueza deles para fins filantrópicos. No início os bilionários que concordaram em participar eram 62, no final de 2020 tornaram-se 216. Uma explosão de “bondade”. Ou algo um pouco diferente.

A filantropia não é algo novo, mas por qual razão hoje a elite do planeta, a classe mais predatória da história da humanidade, parece ser também a mais socialmente empenhada em apoiar causas nobres como a saúde, a educação, a luta contra a fome? O que está por detrás do ressurgimento da filantropia global? O compromisso cada vez mais difundido dos filantropos é realmente a solução para os desafios contemporâneos, ou não será antes um efeito ambíguo e problemático das desigualdades estruturais que tornam a nossa era a mais injusta de todos os tempos? E o que é o “filantrocapitalismo”, a versão mais sofisticada da filantropia que tem dominado a cena internacional durante duas décadas e que consolida-se agora no tempo de Covid19?

No passado mês de Agosto, Chuck Collins e Helen Flannery, dois pesquisadores do americano Institute for Policy Studies (a não confundir com o inglês Policy Studies Institute), publicaram o documento Gilded Giving 2020 Pledge, How Wealth Inequality Distorts Philantropy and Imperils Democracy, no qual são analisadas tanto as motivações quantos os resultados da filantropia na óptica dos doadores. E de “filantrópico” por aqui não há muito.

Entre os anos de 2013 e 2015, 23.9 mil milhões de Dólares foram atribuídos a instituições de caridade e desde então os montantes têm vindo a aumentar todos os anos. No entanto, apenas 18% do total das doações são dirigidas a organizações multilaterais e instituições de caridade que operam no terreno, enquanto a maior parte do financiamento acaba em fundações familiares privadas, frequentemente controladas pelos próprios doadores e com a possibilidade de serem transmitidas aos herdeiros. Actualmente existem cerca de 200.000 destas fundações em todo o mundo.

Os maiores filantropos

A revista Forbes compilou a lista os 25 bilionários mais dinheiro doaram a fundações sem fins lucrativos entre 2014 e 2018. Estamos a falar de dinheiro real que em 5 anos foi efectivamente utilizado para fins declarados como “caritativos”. O valor total foi de 51.6 mil milhões de Dólares.

Em primeiro lugar encontramos Warren Buffett com 14.7 mil milhões de Dólares, transferidos em grande parte para a Fundação Bill & Melinda Gates, que financiou campanhas anti-pobreza e iniciativas de saúde nos Países em desenvolvimento.

Em segundo lugar está Bill Gates com 9.9 mil milhões de Dólares (distribuição de contraceptivo, investigação sobre vacinas). George Soros, que através da sua fundação Open Society, financiou com 3.1 mil milhões de Dólares partidos políticos e movimentos que promovem o Estado de direito, as políticas de acolhimento e a liberdade de expressão. Michael Bloomberg, o antigo presidente da Câmara de New York que, com a Bloomberg Philanthropies, investiu 3 mil milhões de Dólares na luta contra o aquecimento global e a lobby do armamento, mais 1.8 mil milhões na Universidade Johns Hopkins. Depois a família Walton, que através da Fundação Walton financiou escolas públicas e iniciativas ambientais com 2.3 mil milhões de Dólares. Uma chuva de dinheiro para o bem de todos. Mas…

As vantagens fiscais

… mas a maioria das actividades das fundações privadas, para cada intervenção, segue análises de custo-benefício. A premissa é obter sempre um retorno económico, uma vez que não há resultado sem lucro. É por isso que os filantropos trabalham frequentemente em conjunto com as multinacionais: a teoria é que o mercado é capaz de oferecer as melhores soluções para problemas globais, ao contrário do sector público, normalmente ineficiente e paralisado pela burocracia. A realidade é um pouco diferente: as fundações, especialmente nos Estados Unidos, gozam de generosas vantagens fiscais. Quanto mais rico for o doador, mais conveniente se torna a dedução fiscal baseada na caridade.

Por cada Dólar investido na sua fundação privada, o bilionário recupera até 74 cêntimos em benefícios fiscais. Em contrapartida, as fundações têm apenas uma obrigação: investir anualmente em caridade pelo menos 5% do seu orçamento, enquanto o resto pode também permanecer nos cofres. Estes 5% pode incluir despesas administrativas, salários de empregados e contribuições para outros fundos: as deduções fiscais aplicam-se ao montante total dos donativos. E o resto das doações, o 95% do total? Pode ficar na Fundação e não ser utilizado.

Resumindo:

  1. invisto na minha fundação 100 Dólares;
  2. destes 100 Dólares retiro 5 Dólares com os quais pago as despesas da fundação (salários, etc.);
  3. o que sobrar dos 5 Dólares (se sobrar) fica para obras de caridade (ou vai ser ré-investido em outras fundações);
  4. 95 Dólares ficam no cofre da minha fundação e obtenho um benefício fiscal de 74 Dólares.

Nada mal, não é?

O resultado é que nas fundações, até à data, estão estacionados mais de 1.2 triliões de Dólares. As fundações tornam-se assim um cofre onde é possível guardar enormes montantes protegidos de ulteriores intervenções fiscais.

As vantagens cosméticas

A actividade filantrópica é sempre meritória, e não apenas por razões fiscais. Para alguns bilionários serve para reabilitar a sua imagem “predatória”. A começar por Bill Gates, hoje considerado o maior filantropo do planeta. Em 2004, quando ainda estava ao leme da Microsoft, a empresa americana foi condenada pela União Europeia a pagar uma multa de 497 milhões de Euros por “abuso de posição dominante no domínio dos sistemas operativos para computadores pessoais”. Em 2012, de acordo com um relatório do Senado dos EUA, a empresa multinacional de tecnologia tinha conseguido arrumar em paraísos fiscais mais de 21 mil milhões de Dólares em apenas três anos, longe dos impostos norte-americanos.

Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, lançou em Fevereiro o Bezos Earth Fund, uma fundação de 10 mil milhões de Dólares que afirma apoiar a luta contra as alterações climáticas. Isso enquanto Amazon, a multinacional que Bezos fundou em 1994, é uma empresa que polui e nem pouco pelo planeta todo. Além disso, é bem sabido que a Amazon “optimiza” os seus lucros em Países com vantagens fiscais, não onde esses lucros são produzidos: exactamente como faz Facebook cujo fundador, Mark Zuckerberg, abraçou as causas filantrópicas com a Iniciativa Chan Zuckerberg. Em Fevereiro de 2020, Zuckerberg acabou na mira das autoridades fiscais dos EUA por ter evadido 9 mil milhões de Dólares em impostos. Em 2015, Zuckerberg lançou com a sua esposa Priscilla a Iniciativa Chan Zuckerberg, uma fundação na qual deveriam ter acabado as receitas de 99% das acções do Facebook.

Finalmente, temos George Soros, com as suas actividades pró-direitos e pró-democracia, uma tentativa de limpar a sua imagem de especulador sem escrúpulos.

As vantagens políticas

Há também um outro retorno em termos de poder político e pessoal. Bill Gates é agora o maior contribuinte da OMS, a Organização Mundial de Saúde, depositando mais fundos do que qualquer outro País. A fundação que lançou com a sua esposa Melinda doou 50.1 mil milhões de Dólares em 20 anos, mas tudo isto foi destinado a projectos específicos decididos por Gates.

Deste modo, Gates orienta as estratégias de saúde da OMS: desenvolvimento de medicamentos e vacinas, novas técnicas agrícolas… a mais recente doação foi de 530 milhões de Dólares na investigação da vacina contra o Coronavírus. De facto, Gates “comprou” a OMS.

…e as riquezas não diminuem

Apesar dos substanciais “esforços” filantrópicos, a riqueza pessoal de Bill Gates cresceu de 54 mil milhões de Dólares para 120 mil milhões de Dólares. Como é possível se, como afirma Forbes, quase 10% da sua riqueza é destinada à filantropia? Como explica a jornalista Nicoletta Dentico no seu Ricchi e buoni? Le trame oscure del filantrocapitalismo, a Fundação Gates “recebe substanciais fundos públicos para as suas actividades privadas sem que a instituição pública que as co-financia tenha a mínima palavra a dizer sobre o assunto. É razoável pensar que a Fundação, na medida em que promove o desenvolvimento no Sul global inspirado pela tecnologia da informação e apoiado pela intervenção das grandes empresas, ajude a Microsoft”. A Fundação (que tem uma relação privilegiada com multinacionais como a Cargill, Monsanto, Nestlé, Mars, DuPont Pioneer, Sygenta e Bayer), segundo um estudo da revista The Lancet, segue a lógica do mercado para seleccionar prioridades estratégicas como as doenças que necessitam do desenvolvimento de vacinas, enquanto não investe de todo na investigação contra a pneumonia, diarreia e desnutrição, responsável por 75% da mortalidade infantil nos Países mais pobres.

E Gates não é o único bilionário-filantropo a ter aumentado significativamente a sua riqueza na última década. Durante o mesmo período, os 62 super-ricos do The Giving Pledge viram a sua riqueza crescer 95%, de 376 mil milhões de Dólares para 734 mil milhões de Dólares.

A filantropia tem sido historicamente uma estratégia de poder económico para ganhar respeitabilidade social e orientar a política. O mecanismo das fundações, favorecido por uma tributação muito baixa, alterou gradualmente a sua natureza. Hoje em dia, as empresas movimentam quantidades tão grandes de capital que são capazes de ocupar o lugar dos Estados nas políticas sociais, estas cada vez mais carentes de recursos, impondo campos de acção e uma visão do mundo. Tudo em nome do bem.

Entretanto, as desigualdades estão a crescer e a pobreza extrema está de novo a aumentar. O escritor Anand Giridharadas, no seu livro Winners Take All, escreve: “Muitos bilionários afirmam querer mudar o mundo. Na realidade, eles estão apenas a proteger o sistema que fica na raiz dos problemas que dizem querer resolver”.

Filantrocapitalismo: uma estratégia para o futuro

É o filantrocapitalismo, uma estratégia inteligente: graças às doações, os novos “salvadores” conseguem exercer uma influência cada vez mais descontrolada sobre os mecanismos do governo mundial e as suas instituições, modificando-os profundamente. Tudo isto, numa teia de dinheiro, poder e alianças com o sector empresarial que os governos já não podem conter ou controlar. Pelo contrário, são os líderes do mundo político que agora acolhem os ricos filantropos de braços abertos.

Como aconteceu no passado com John Rockefeller e Andrew Carnegie, a generosidade daqueles que acumularam enormes riquezas tem várias finalidades. tal como vimos. Mas há uma, de longo prazo, que ainda não foi citada: criar novos mercados para os pobres. Se os pobres se tornarem consumidores, deixarão de ser excluídos dos mercados: os pobres de hoje podem ser os novos clientes do amanhã. Na prática: novos mercados que podem ser explorados pela empresas do costume. Um projecto de amplo alcance, que assumiu dimensões tão generalizadas e sistémicas que condiciona a própria acção dos Estados: livres de todas as restrições territoriais, as fundações filantro-capitalistas conseguiram ocupar um campo de acção sem limites. Exercem um papel pesado na produção de conhecimento, na afirmação de modelos, na definição de novas estruturas de governação local e global.

Não acaso, enquanto o fundador da Microsoft, Bill Gates, é a figura preeminente e mais icónica do filantrocapitalismo, com biliões destinado a vacinas, saúde, biotecnologia, a Fundação Gates mantém fortes laços financeiros com empresas que não são propriamente virtuosas em termos de consumo e saúde, mas que garantem retornos dos investimentos: por exemplo, a Fundação investe 466 milhões de Dólares em fábricas da Coca-Cola e 837 milhões de Dólares na Walmart, a maior cadeia alimentar, farmacêutica e alcoólica dos EUA.

A verdade? A filantropia é criada e floresce no seio da desigualdade: se o mundo tivesse uma distribuição justa dos recursos, não haveria muito espaço para a filantropia, porque já não haveria um punhado de plutocratas que possuem mais de metade dos recursos do planeta.

Uma última pergunta: o que dá legitimidade política à ideia de incentivar fiscalmente os bilionários e as fundações deles? Quias benefício poderia obter a sociedade se o dinheiro público, actualmente perdido devido aos incentivos, fosse antes utilizado para produzir o bem comum? Se fossem os Estados e não as “fundações” a organizar e a implementar directamente as ajudas?

 

Ipse dixit.

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