Nasa: dois modelos para um colapso

Pessimismo? Não, obrigado.
Mas um são realismo sim.

Um novo estudo patrocinado pela Goddard Space Flight Center (a Nasa) destacou a possibilidade de que a civilização industrial global pode entrar em colapso nas próximas décadas, devido à exploração insustentável dos recursos e à crescente desigualdade na distribuição da riqueza.

A primeira vista, pode parecer que os rapazes da Nasa descobriram a água quente. O que significa: descobriram algo que já era conhecido, e há muito.
Mas vamos dar um segundo olhar.

Observando como as preocupações sobre o “colapso” são muitas vezes considerados marginais ou controversas, o estudo procura dar sentido a essas histórias que demonstram de forma convincente como “o processo de crescimento e subsequente colapso é um ciclo recorrente em toda a história”. Os casos de interrupção abrupta de inteiras civilizações devida ao “colapso repentino – que muitas vezes durou séculos – eram bastante comuns”.

Sim, é água quente.
Mas nem tudo está perdido: afinal esta é a Nasa e não é mal o facto de começar a falar de certos assuntos, correcto?

O projecto de pesquisa é baseado num novo modelo multidisciplinar modelo, Human and Nature Dynamical (“Dinâmica Humana e Natural”), liderado pelo matemático Safa Motesharri da National Socio-Environmental Synthesis Center (Centro Nacional de Síntese Socio-Ambiental), financiado pela National Science Foundation (“Fundação Nacional de Ciência”) dos EUA, em associação com um grupo de cientistas sociais e naturalistas. O estudo foi aceite para a publicação no Elsevier, o jornal da Ecological Economics (Economias Ecológicas).

Com toda esta gente envolvida, imaginem só o resultado…

Uma vez analisados todos os dados históricos, parece que as civilizações complexas tendem a entrar em colapso (e foi preciso analisar os dados para entender isso…), o que levanta questões sobre a sustentabilidade da civilização moderna:

A Queda do Império Romano, e dos também avançados (se não mais) Han, Maurya e Gupta, assim como de outros impérios da Mesopotâmia, são todas testemunhas do facto de que as civilizações complexas, criativas, sofisticadas podem ser tanto frágeis quanto temporárias.

Zzzzzzzzzzzzzzzz….eh? Ah, pois, ainda não acabou.
Ao estudar a dinâmica homem-natureza desses antigos casos de colapso, o projecto identifica os principais factores relacionados que explicam o declínio destas civilizações, algo que poderia ajudar a determinar o risco de um colapso futuro: principalmente População, Clima, Água e Agricultura e Energia. Quem diria, eh?

Esses factores podem levar ao colapso quando convergem para gerar dois aspectos sociais fundamentais: “a sobre-exploração dos recursos, devido à pressão exercida sobre a capacidade de carga ecológica” e “a estratificação económica da sociedade em Elite (os ricos) e Massas (os pobres)”. Estes processos sociais têm desempenhado “um papel central nas características ou no processo de colapso” em cada um dos casos analisados ​​relativos aos “últimos cinco mil anos”.

Nesta altura, os altos níveis de estratificação económica estão directamente relacionados com o consumo excessivo dos recursos, e é a “Elite”, distribuída em grande parte dos Países industrializados, que dá origem a estes dois aspectos:

[ …] a acumulação de excedentes não é uniformemente distribuídas na sociedade, mas, em vez disso, é controlada por uma Elite. A maioria da população, que produz riqueza, recebe apenas uma pequena parte, normalmente no nível de subsistência ou logo acima deste.

E aqui encontramos algo interessante, que vale a pena reter. Não é apenas a exploração excessiva dos recursos naturais que pode provocar um colapso, mas também uma estratificação da sociedade de tipo dualista, com uma minoria de ricos (a “Elite”) que controla a maior parte dos recursos, e uma maioria (as “Massas”) que produzem riqueza mas que, paradoxalmente, ficam longe dela.

Nem isso é novidade e exemplos histórico neste sentido não faltam: todavia é interessante notar como demasiadas vezes os grupos ambientalistas concentrem a própria atenção apenas na exploração dos recursos naturais, sem analisar as consequências de ordem social.

O estudo põe em causa as afirmações daqueles que argumentam como a tecnologia será capaz de resolver estes problemas através melhorias na eficiência:

As mudanças da tecnologia podem aumentar a eficiência na utilização dos recursos, mas também tendem a aumentar o consumo per capita e, portanto, a quantidade de recursos extraídos, com o resultado de que […] o aumento do consumo muitas vezes compensa [negativamente, ndt] a maior eficiência na utilização destes recursos.

Boa observação.
Um exemplo banal: os primeiros telemóveis (que, como sabemos, incluem as assim chamadas “terras raras” entre os seus componentes) custavam muito e tinham prestações miseráveis; a optimização dos processos de produção, juntamente com a evolução tecnológica, tornou o preço destes aparelhos bem mais barato, de modo que hoje qualquer pessoa pode admirar o seu novo smartphone. O resultado é que hoje são precisas mais terras raras do que antes. E se o nome delas é “raras” haverá uma razão, não é?

O aumento da produtividade na agricultura e na indústria ao longo dos últimos dois séculos foi devido a um “aumento (em vez duma diminuição) da produção dos recursos”, embora tenha havido grandes melhorias na eficiência ao longo do mesmo período .

Assumindo uma gama de possíveis cenários, Motesharri e os seus colegas concluíram que com base nas condições “que reflectem de perto a realidade do mundo de hoje [ …], pensamos que o colapso seja dificilmente evitável”.
No primeiro destes cenários, a civilização :

[ …. ] Parece ter mantido um caminho de sustentabilidade para um longo período de tempo mas, mesmo levando-se em consideração uma taxa ideal de diminuição dos recursos e um pequeno número de pessoas na Elite, estas últimas acabarão por consumir muito, provocando a fome nos estratos populares e, inevitavelmente, causando causando o colapso da sociedade. É importante notar que este tipo de colapso [tipo L, ndt] é provocado por uma fome causada pela desigualdade, que por sua vez implica a perda de postos de trabalho, não um colapso da Natureza.

Outro cenário analisa o papel da exploração contínua de recursos, concluindo que:

Com uma maior taxa de diminuição dos recursos disponíveis, o declínio dos Pobres ocorre mais rapidamente, mesmo que as Elites continuem a prosperar, mas, no final, os Pobres colapsam completamente, seguidos pela Elite.

Em ambos os cenários, o monopólio da riqueza da Elite preserva-a dos “efeitos mais nocivos do colapso ambiental, por muito mais tempo do que acontece com os Pobres”, o que lhe permite “continuar no business as usual apesar da catástrofe iminente”. O mesmo mecanismo poderia explicar como “os colapsos históricos têm sido permitidos por Elites que não pareciam perceber a trajectória catastrófica tomada (os casos mais óbvios são os dos Romanos e dos Maya )”.

Aplicando esta lição para nossas dificuldades contemporâneas, o estudo adverte que:

Enquanto alguns membros da sociedade poderiam dar o alarme de que o sistema está a mover-se em direcção a um colapso iminente – e por esta razão promovem mudanças estruturais na sociedade para evitá-lo – a Elite e os seus apoiantes, que se opõem a tais mudanças, poderiam concentrar-se na trajectória da sustentabilidade a longo prazo mantida até agora, apenas para não fazer nada.

No entanto, os pesquisadores julgam que os piores cenários não são inevitáveis​, e sugerem que uma política adequada e mudanças estruturais podem evitar o colapso, se não abrir o caminho rumo a uma civilização mais estável.

As duas soluções-chave são reduzir a desigualdade económica, de modo a assegurar uma distribuição mais equitativa dos recursos, e reduzir drasticamente o consumo dos recursos por meio de energia renovável e da redução do crescimento demográfico :

O colapso pode ser evitado e a população pode alcançar o equilíbrio se a taxa per capita de declínio dos recursos naturais é reduzida a um nível sustentável e se os recursos são distribuídos de forma razoavelmente justo.

Até aqui o modelo financiado pela Nasa. Há outros estudos, mais empíricos, como o da KPMG, que alertaram como a convergência das crises de alimentos, água e energia poderia criar a tempestade perfeita em 15 anos.

O que dizer?
É positivo o facto da Nasa aprofundar este assunto. Claro que o efeito prático será quase nulo, mas é com estas “quase-nulidades” que é formada uma consciência geral. É preciso tempo. Temos ainda a disposição todo o tempo necessário?

Em qualquer caso, a nossa é apenas mais uma das civilizações que surgiram, prosperaram e desapareceram. Um colapso não seria um espanto. Um bocado incómodo talvez, mas um espanto não.

Ipse dixit.

Fontes: Sesync – Human and Nature Dynamics (HANDY): Modeling Inequality and Use of Resources in the Collapse or Sustainability of Societies (ficheiro Pdf, inglês), KPMG: Global megatrend #8: Resource stress

4 Replies to “Nasa: dois modelos para um colapso”

  1. O artigo está otimo.
    Mas não é disso que queria falar,incomoda-me demasiado ,que em qualquer artigo tratado,até nos comentários de pessoas cujo raciocinio é bem estruturado,haja uma deturpação de termos em relação aos sitados "elite" o que é uma elite?A meu ver é o que de melhor se encontra num determinado grupo e que por ser o melhor eleva todo esse grupo a outros patamares de melhorias,sejam elas quais forem.ora do que eu me apercebo vocês consideram elite os degenerados,os parasitas,os vírus,(pois só lhes interessa o seu próprio crescimento mesmo que isso destrua o sistema onde está inserido),ao nomea-los elite estão a dizer que são o melhor que a sociedade humana tem.Pensem nisso,as palavras têm poder
    grata pelos artigos

  2. Olá Del Carvalho!

    Fiquei curioso e fui controlar o significado do termo "elite".

    Diz a sábia Wikipedia que tudo sabe:

    "Segundo Thomas Bottomore, a palavra elite (do francês élite […]) era usada durante o século XVIII para nomear produtos de qualidade excepcional. Posteriormente, o seu emprego foi expandido para abarcar grupos sociais superiores, tais como as unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza. Assim, de modo geral, o termo 'elite' designa um grupo dominante na sociedade ou um grupo localizado em uma camada hierárquica superior, em uma dada estratificação social."

    Isso é: "elite" é uma alternativa ao termo "classe dominante".

    É verdade que, no geral, "elite" pode indicar um pequeno grupo "escolhido" (pelas suas capacidades, por exemplo), portanto com um sentido positivo.
    Mas em sociologia, o significado muda radicalmente.

    De facto, o dicionário Priberam aceita ambas as interpretações:

    "e·li·te
    (francês élite)
    substantivo feminino

    1. O que há de melhor e se valoriza mais (numa sociedade). = ESCOL, FINA FLOR, NATA

    2. Minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência."

    Acredite: eu utilizo o termo "elite" com o segundo dos significados…

    Mas é verdade: as palavras têm poder, e muito mais daquilo que podemos pensar. Vou tentar utilizar uma expressão alternativa.
    Espero lembrar-me disso (sou pessoa bastante distraída)!

    Abraço!

  3. O mais hilário são os exemplos dados como o impérios romano que não desapareceu mas foi enfraquecido por seu próprio gigantismo e dissolvido com outra cultura que resultou no quase invisível Sacro Império Romano Germano, cuja existência durou duas vezes e gera influência até os dias atuais.

Obrigado por participar na discussão!

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