Vamos fechar o discurso acerca do gás? E vamos, acrescentando também algo acerca de trigo e fertilizantes, porque a Rússia é um dos principais produtores e exportadores de ambos.
O gás
Acerca do gás: um muito bom artigo de Al Jazeera, cujo título (“Quanto do gás do seu País vem da Rússia?“) não diz tudo. É mais abrangente.
Por exemplo: como é que se forma o gás e donde é extraído? O gás natural é utilizado no transporte, para gerar electricidade e no aquecimento doméstico, bem como no sector industrial para produzir, entre outras coisas, matérias-primas como vidro, plástico e tintas. O gráfico de Al Jazeera (que teve o bom gosto de publicar a inforgrafia com licença Creative Commons modificável) explica em primeiro lugar donde é que sai o gás natural.
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar33.jpg)
Inodoro e incolor, o gás natural tem sido formado ao longo de milhões de anos a partir de organismos decompostos, lodo e areia, que são depois expostos ao calor e à pressão sob a superfície da terra. O metano, o principal componente do gás natural, também contém quantidades menores de líquidos e outros gases naturais, tais como dióxido de carbono e vapor de água.
O gás é extraído por perfuração vertical ou horizontal do solo, permitindo que o gás se eleve através de poços até à superfície. Dos poços, o gás natural é então enviado para instalações de processamento onde o vapor de água e os compostos não hidrocarbónicos são removidos e o LNG (líquidos de gás natural) é separado. É depois distribuído aos consumidores através de uma rede de condutas.
Como sabemos, os Estados Unidos proibiram as importações de petróleo e gás e o Reino Unido está a eliminar gradualmente as importações de petróleo como parte de uma série de sanções ocidentais destinadas a cortar as artérias financeiras da Rússia. A União Europeia, entretanto, disse que vai tomar medidas para acabar com a sua dependência do gás russo.
Em 2020, o mundo consumiu 3.822,8 bilhões de metros cúbicos (bcm) de gás natural, de acordo com a BP Statistical Review of World Energy 2021. Só os Estados Unidos representavam mais de 20% (832 bcm) do consumo mundial anual de gás, seguidos da Rússia (411,4 bcm) e da China (330,6 bcm).
A Rússia possui as maiores reservas de gás natural, seguida pelo Irão e pelo Qatar. Em conjunto, os três Países representavam metade das reservas mundiais de gás natural em 2020. Mais no detalhe, a Rússia tem reservas comprovadas de cerca 48,938 bcm, o Irão 34,077 bcm e o Qatar 23,831 bcm.
Quais são os Países que exportam mais gás natural?
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar66.jpg)
Ao contrário da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), não existe uma organização multinacional dos grandes exportadores de gás que regule o abastecimento para equilibrar o mercado. Contudo, o Fórum dos Países Exportadores de Gás (GECF) existe como uma organização de 11 membros que inclui a Argélia, Bolívia, Egipto, Guiné Equatorial, Irão, Líbia, Nigéria, Qatar, Rússia, Trinidade Tobago e Venezuela.
Neste contexto Angola, Azerbaijão, Iraque, Malásia, Moçambique, Noruega, Peru e os Emirados Árabes Unidos têm estatuto de observadores. O consórcio representa 71% das reservas mundiais de gás natural. Portanto, não uma verdadeira OPEP mas quase.
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar77.jpg)
Mais de 80% das exportações globais de gás estão ligadas a 10 grandes produtores. Em 2020, os 10 maiores exportadores de gás do mundo eram:
- Rússia (199.928 mcm)
- Estados Unidos (149.538 mcm)
- Qatar (143.700 mcm)
- Noruega (112.951 mcm)
- Austrália (102.562 mcm)
- Canadá (70.932 mcm)
- Alemanha (50.092 mcm)
- Países Baixos (39.976 mcm)
- Argélia (34.459 mcm)
- Nigéria (35.586 mcm).
Já em 2019 os maiores exportadores mundiais de gás natural tinham sido a Austrália (34 biliões de Dólares), o Qatar (27.5 biliões), a Rússia (24.5 biliões), a Noruega (21 biliões) e os EUA (16 biliões).
Que Países importam directamente mais gás natural russo? O gráfico abaixo mostra quanto do total das importações de gás natural de cada País veio directamente da Rússia em 2019. Atenção: esta tabela refere-se exclusivamente ao gás natural liquefeito, não incluindo as importações daquele gasoso!
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar55.jpg)
Pelo menos 37 Países importaram directamente gás russo em 2019. Os Países que importam directamente a maior parte do gás natural gasoso da Rússia incluem: Bielorrússia, Bósnia e Herzegovina, Noruega e Sérvia, cada uma das quais importa cerca de 99 por cento do seu gás natural a partir da Rússia.
Nesta outra tabela, podemos ver quais Países europeus importam mais gás russo (percentagem de gás, seja no estado líquido seja no gasoso, consumido no País):
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar44.jpg)
Depois dos Estados Unidos, a Rússia tem a segunda maior infra-estrutura de transporte de gás do mundo, com um comprimento total de quase 100.000 km (62.137 milhas).
Em 2021, de acordo com a AIE, as importações europeias de gás da Rússia excederam 380 milhões de metros cúbicos (mcm) por dia através de gasodutos, totalizando cerca de 140 bcm/ano. Outros 15 bcm foram entregues sob forma de gás natural liquefeito (LNG). A Rússia é responsável por cerca de 45% das importações de gás da UE e 40% do seu consumo total de gás.
A UE anunciou uma estratégia para reduzir a sua dependência do gás russo em dois terços até ao final de 2022. O plano REPowerEU visa encontrar fontes alternativas de gás e fontes de energia mais “verdes”.
Os cereais
O homem não vive só de pão, mas não se pode negar que este é um componente importante da dieta de bilhões de pessoas.
Vejamos de perto o gráfico abaixo e vamos fazer as contas.
A Rússia e a Ucrânia representam em conjunto 33% de todas as exportações de trigo entre os dez principais Países exportadores. A Rússia exporta mais do que os Estados Unidos. Pensamos nisso por um momento: é muito provável que a invasão russa da Ucrânia tenha consequências graves para a agricultura e as colheitas. A Rússia também será impedida, pelo menos em teoria, de aceitar Dólares americanos para as suas exportações de cereais.
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar88.jpeg)
A 9 de Março, o Presidente Putin assinou um despacho com o qual proibiu a exportação de certos bens e matérias primas: embora o trigo não seja especificamente mencionado neste despacho, todos os comerciantes que tenham comprado cereais da Rússia no passado terão de considerar cuidadosamente se poderão voltar a comprar cereais russos agora.
Há dois possíveis cenários: um mau, o outro também. Primeiro, devido à guerra, a Ucrânia não poderá plantar, portanto vai ficar sem colheita e sem exportação. Segundo, a Rússia manterá todo o seu trigo em casa, para que os seus cidadãos tenham o suficiente para comer. Isto significa que as partes do mundo que dependiam da Rússia como fornecedor terão de encontrar fontes alternativas e terão de pagar preços substancialmente mais elevados (se conseguirem encontrar outro País que possa satisfazer a procura). Difícil que na Europa falte pão? Sim, é difícil. E, de facto, os maiores problemas são esperados em outros lugares: pensamos nos Países mais pobres, aqueles do Terceiro Mundo pro exemplo, que depende da “generosidade” alimentar dos mais ricos. É claro que os mais ricos irão antes satisfazer a procura interna dos Países deles e só em segundo lugar (se algo sobrar) pensarão nas necessidades dos mais desfavorecidos.
Mas isto é apenas o início da catástrofe agrícola que paira sobre o mundo anti-russo. Uma palavra: potassa. A potassa é um ingrediente-chave na produção de fertilizantes: trata-se dum conjunto de diversos sais minerais, extraídos da natureza ou produzidos artificialmente, que contêm potássio (cloreto de potássio é um dos principais) na sua composição, em forma solúvel em água. O cloreto de potássio corrige a deficiência de potássio no terreno: como mineral natural, o potássio é um nutriente importante que melhora a retenção de água, a resistência às doenças e a produtividade geral das culturas.
Por isso, vejamos com atenção a tabela abaixo:
![](https://informacaoincorrecta.com/wp-content/uploads/2022/03/rugatrinalcrcoMar99.jpg)
Rússia e a Bielorrússia representam em conjunto 37% dos dez maiores produtores mundiais de potassa. A Bielorrússia foi sancionada e o seu fornecimento de potassa não estará disponível para o resto da comunidade internacional. Com a adição da Rússia, o mundo enfrenta agora um enorme défice de fertilizantes agrícolas.: e o preço dos fertilizantes já duplicou desde há um ano. Isto significa que os agricultores do Midwest norteamericanos que planeiam plantar trigo, milho e soja pagarão o dobro do preço do fertilizante.
E isso não é tudo. O preço do gasóleo, o combustível que mantém em funcionamento as máquinas agrícolas, também aumentou de forma significativa. Tudo isso vai incidir no preço final dos cereais.
Quando se trata de petróleo, cereais e potassa, a Rússia tem muitos trunfos que podem ser usados para prejudicar o Ocidente e os seus aliados. Talvez seria melhor parar com a propaganda e apresentar aos cidadãos as implicações dum futuro que se aproxima rapidamente: um futuro em que importantes exportações russas, ucranianas e bielorrussas deixarão de estar disponíveis. Menos gás, menos petróleo, menos cereais: se não entendemos a importância disso, então é porque vivemos num outro planeta, não neste. Ajudamos os pobres ucranianos? Sim, sem dúvida: mas começamos também a perguntar quem será a ajudar a nós.
Tudo isso sem esquecer a inflacção: desenfreada e vertiginosa, será um motivo de autêntico divertimento ao longo do próximo futuro.
Ipse dixit.
Grande Max,
No gráfico “quais países importam mais gás da Rússia?” não aprece a Alemanha. Provvavelmente um lapso?
Ahhhhh, JJ reparou num erro, não é? Muito obrigado. JJ expulso do blog, já.
Ok, hoje sinto-me bom, nada de expulsão por enquanto mas só porque estamos perto do Natal.
Assim fui verificar a tabela original que é de Al-Jazeera. Bom, são árabes, sabem lá eles onde fica a Alemanha.
Mas no fundo da tabela está escrito: “Os Países não no gráfico não importaram gás da Rússia em 2019” e a fonte dos dados utilizados na tabela é a OEC, departamento do MIT, o Massachusetts Institute of Technology dos EUA. E nos EUA sabem onde fica a Alemanha.
Então, esperto como um peru selvagem, fui ver os dados do OEC (https://oec.world/en/visualize/tree_map/hs92/import/show/all/5271111/2019/) e, de facto, a Alemanha não aparece como uns dos principais importadores de gás natural liquefeito mas sim como um grande importador de gás natural gasoso (do qual foi o segundo importador europeu em 2019: https://oec.world/en/profile/hs92/natural-gas-in-gaseous-state).
Faz sentido, pois os gasodutos North Stream 1 e 2 (os principais que ligam Alemanha e Rússia), por exemplo, trabalham com gás natural no estado gasoso e pressão de 100 atm. O mesmo acontece com os gasodutos Yamal (via Bielorrússia e Polónia) e Transgas (via Ucrânia e Rep. Checa).
Todavia Al-Jazeera apresenta o gráfico com o título de “Quais Países importam directamente mais gás natural russo?”, sem especificar se as importações forem líquidas ou gasosas: portanto, trata-se dum erro na infografía. Bom, são árabes, sabem lá eles de gasodutos.
Parabéns e um obrigado ao JJ que reparou nisso, permitindo assim corrigir o erro!
Olá Max e todos: ouvi um comentário bem interessante sobre a Rússia e seus produtos de exportação: A Rússia seria grande demais para ser sancionada.
Mas o império em decadência não pensa assim, afinal creio que eles têm plena consciência que se trata do mundo unipolar x mundo multipolar. Qualquer coisa vale para manter sua hegemonia.. Isso é a guerra.
E a propaganda da insuficiência alimentar, de insumos e petróleo martela nos nossos ouvidos dia e noite, como se isso fosse coisa nova, especialmente no terceiro mundo.
No Brazil, por exemplo, embora predomine a ideia da insuficiência na cabeça de toda gente, assisti na noite passada a comemoração da décima nona colheita de arroz, maior que todas as obtidas anteriormente, arroz limpo de produtos químicos, para toda América Latina.
Só por curiosidade, o MST não é um bando de “terroristas”. São 2 milhões de pessoas dedicadas à agricultura familiar limpa, responsável por 70% do que se come neste país, responsável pela maior distribuição de comida aos brasileiros onde a fome campeia.
Acredito que toda essa onda de fome prevista vai atingir a África, sim. O pão de trigo já está e vai ficar mais caro. O gás e o petróleo muitíssimo mais, mas algo me diz que esta histeria toda é muito mais para atender ao enriquecimento dos que sempre estão se enriquecendo mais.
Na fila do que faltará, segundo “especialistas” está também o níquel proveniente da Rússia.