Peru: a instabilidade e a corrupção

Não é simples contar o que acontece no Peru. No último Sábado, por exemplo, demitiu-se o Primeiro Ministro Héctor Valer na sequência de graves acusações de violência doméstica (e não só): tinha sido nomeado apenas há quatro dias. E Valer era o terceiro Primeiro Ministro nomeado em apenas seis meses pelo Presidente Pedro Castillo, que já tinha feito numerosas remodelações do gabinete e mudado mais de 20 Ministros (alguns dos quais, em lugares-chave como o da Energia, foram mudados três vezes).

Agora Castillo terá de designar um quarto Primeiro Ministro, amplificando assim a grave situação de instabilidade política que o País atravessa.

Crónicas instabilidades e corrupção

É preciso dizer que a história política do Peru foi sempre marcada por uma grande instabilidade. Basta pensar que nos últimos quatro anos houve cinco Presidentes esmagados por escândalos e corrupção. Mesmo as últimas eleições presidenciais, cuja segunda volta foi realizada em Junho passado, não deixavam prever nada de bom, com Castillo a ganhar por uma pequeníssima margem sobre Keiko Fujimori, filha do antigo ditador (condenado, entre os outros, por genocídio) e ela mesma à espera de julgamento por corrupção, ligações com organizações criminosas e branqueamento de capitais.

Castillo, conhecido também como El Profe (“O Professor”) é filho duma das camadas mais pobres do País e pertence ao Partido Político Nacional Perú Libre, de clara inspiração marxista-leninista mas sem esquecer as lições dum dos mais influentes socialistas sul-americanos, José Carlos Mariátegui La Chira. As posições de Esquerda assustaram os mercados (na campanha eleitoral Castillo falou também de nacionalizações), mas teria sido difícil prever quatro governos em apenas seis meses.

Tropeços e armadilhas

O primeiro governo, do Primeiro Ministro Guido Bellido (próximo das posições mais fortemente de Esquerda), foi esmagado pela controvérsia sobre a alegada proximidade de Bellido à organização dos guerrilheiros maoistas do Sendero Luminoso.

Após Bellido, foi a vez duma mulher, Mirtha Vasquez, advogada e activista com posições políticas moderadas (do partido Frente Amplio, na realidade uma coligação de partidos e organizações de Esquerda, progressistas e ecologistas), algo que também deveria ter acalmado os mercados, bem como desempenhado um papel de maior envolvimento de deputados centristas. Mas no final de Janeiro, Vasquez também saiu, denunciando a impossibilidade de trabalhar num Estado onde a corrupção é parte integrante ao ponto de ser aceite como um facto normal e acusando Castillo de não abordar adequadamente o problema.

Após um governo de extrema Esquerda e um mais centrista, Castillo achou por bem nomear Hector Valer, que pertence ao grupo de extrema Direita Renovación Popular. Nem o tempo de ocupar o escritório e Valer viu-se acusado de relações com traficantes de droga, corrupção e o facto de ter sido sujeito a medidas de precaução por violência contra as suas esposa e filha. Perante os protestos de muitos deputados, conscientes de que o novo Primeiro Ministro não iria ganhar confiança, Castillo anunciou ainda mais alterações ao novo executivo.

Agora não será fácil formar um quarto governo, até porque a relação com a Esquerda moderada, que tinha apoiado Castillo para evitar Fujimori, parece estar em crise após o fracasso do governo da Vasquez.

Ao mesmo tempo, Castillo mexeu-se com a delicadeza dum elefante: expulsou o chefe da polícia, confrontou-se duramente com vários oficiais do exército e funcionários públicos, alguns dos quais preferiram demitir-se. Foi o caso do Secretário Geral da Presidência, Carlos Ernesto Jaico Carranza, que abandonou o cargo e publicou uma carta denunciando a “falta de um sistema de trabalho organizado” e “a ausência de rigor no cumprimento dos regulamentos e práticas”. Carranza falou também de um “governo sombra”, muito falados nos jornais peruanos, composto por algumas pessoas leais a Castillo e que tomariam todas as decisões no lugar dos funcionários encarregados.

O País dividido e os riscos institucionais

Para ter uma ideia do que é o Peru: nos últimos 20 anos, cinco foram os Presidentes da República acusados, um após outro, e quatro aqueles condenados por corrupção e vários delitos (um dos quais, Alan Garcia, preferiu o suicídio à vergonha da detenção). A falta de credibilidade dos partidos tradicionais e dos seus principais líderes aprofundou a crise do sistema político, o que por sua vez gerou uma galáxia de mini-formações, muitas vezes lideradas por figuras quase desconhecidas. Como resultado, os mecanismos para a formação de maiorias homogéneas e coerentes, tanto nas urnas como no Congresso, ficaram bloqueadas. Com um aumento da instabilidade, não só política.

A vitória de Pedro Castillo, como lembrado, foi mínima: apenas 40.000 votos de diferença em mais de 13 milhões de eleitores. Determinada a fazer tudo para evitar o tribunal e apoiada por uma ala direita galvanizada pelas elites urbanas, Keiko Fujimori tentou fazer explodir as eleições denunciando uma inexistente fraude. O Tribunal Eleitoral, os observadores internacionais enviados pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pela União Europeia (UE) validaram o resultado e a vitória de Castillo.

No mês que decorreu entre a vitória de Castillo e a sua proclamação final, o Peru mostrou na sua forma mais plástica a profunda fractura da sociedade civil: as cidades ricas da costa e as aldeias miseráveis do interior, hostis umas às outras. No centro da capital Lima, os advogados mais prestigiados e poderosos apertavam os seus códigos para extrair centenas de recursos contra a eleição de Castillo, enquanto debaixo das suas janelas milhares de eleitores de Castillo acampavam pacificamente, tendo vindo com veículos improvisados de remotas aldeias do interior, por vezes a milhares de quilómetros da capital e determinados a apoiá-lo.

Quando Castillo, finalmente, foi proclamado Presidente, o programa parecia bastante claro: no pleno cumprimento dos procedimentos legais, transformação da Constituição para que o Estado possa incluir também índios, negros e mulatos, habitantes originais, todos aqueles esquecidos após cinco séculos de colonização branca. Um programa social para intervir na economia não menos do que nos direitos sociais. Um programa claro e projectado num futuro ainda indefinido, mas que já dava um vislumbre do agravamento dos contrastes já evidenciados pelas disputas antes, durante e após a votação.

A chegada de Torres

Ontem, Terça-feira, Castillo nomeou como Primeiro Ministro Aníbal Torres, o advogado que liderou a estratégia pós-eleitoral de El Profe para combater as acusações de fraude eleitoral. Até agora, era Ministro da Justiça, sendo um antigo professor de Direito com uma sólida formação e um forte interesse na justiça social.

O Presidente está a tentar redireccionar a crise com este golpe: Torres é o confidente de Castillo desde Junho do ano passado, quando Fujimori pediu a anulação das eleições. O agora novo Primeiro Ministro foi um dos três advogados que lutaram para defender os votos. A nomeação chega depois do Congresso ter pedido a demissão de Castillo: na Segunda-feira, enquanto a incerteza sobre o novo governo e as críticas a um Estado paralisado continuavam, o Presidente emitiu uma declaração no Twitter na qual excluía esta possibilidade e negava a possibilidade da existência dum “governo sombra” como alegado por alguns ex-funcionários nas duas últimas semanas.

Relata El País:

Rejeito categoricamente certas teorias sobre a interferência do meu pessoal de confiança na tomada de decisões. As afirmações são, em todos os seus extremos, falsas. Desde o início do meu mandato, tenho respeitado as decisões dos ministros de estado. Além disso, denuncio as tentativas de golpe que têm sido orquestradas com maior força desde esta semana.

Segundo o cientista político Paolo Sosa do Instituto de Estudos Peruanos, o quarto gabinete de Castillo não resolve os problemas. Ainda segundo El País:

O executivo não deixa a zona de conforto porque tem contradições internas. Esta composição não tem os escândalos gerados pelo gabinete Valer, mas não resolve a necessidade de construir uma ponte com alguns sectores fora do Parlamento, a fim de gerar confiança na sociedade civil.

A extrema confusão pode custar cara a Castillo. A Constituição prevê que, a pedido do Parlamento, o Presidente pode ser colocado num estado de “vacância”, o que levaria a novas eleições presidenciais. Os “convites” da Segunda são a primeira pista do que pode vir a seguir. E a filha de  Fujimori espera. Claro, esta é uma hipótese extrema, mas que está a crescer na raiva duma população de 33 milhões de indivíduos que se debatem com uma situação económica difícil.

Para já: Castillo apareceu em público sem chapéu. É já algo.

 

Ipse dixit.

3 Replies to “Peru: a instabilidade e a corrupção”

  1. Olá Max.
    Venezuela, Argentina, Peru, Chile …… a esquerda radical ganhando terreno.
    Em outubro eleições no Brasil, o ex- presidiário, mas não inocente (recuso-me a escrever seu nome) é candidato.
    Se as instituições brasileiras funcionassem esse indivíduo estaria banido da política e preso.
    Acho que em breve você escreverá sobre o Chile e espero não sobre a tomado do poder pelos filhotes de Fidel castro aqui no Brasil

  2. “Esquerda radical”

    Estes bonitos selos que os detentores dos processos de podridão no nosso mundo, ou seja, aquela massa amorfa que habita o centrão em todo e qualquer país e que está deitado na mesma cama com os maiores criminosos do planeta, a começar pelos donos dos Bancos/Fundos, são os selos “giros”.

    Tudo o que escapa ao centrão (que rima com podridão) é logo batizado de:

    1 – Comunista/Pedófilo/Lunático/Terrorista/Radical/Fanático;

    ou

    2 – Fascista/Pedófilo/Populalista/Terrorista/Racista/Radical/Fanático;

    O centrão são os fofinhos, os responsáveis, os adultos.

    E assim vamos nós, aceitando este estado de coisas, repetindo as frases e expressões que ouvimos na televisão, acusando o vizinho (tão pobre quanto nós), alegremente, mas convictos da razão, a caminho do abismo.

  3. Olá Max: Hispano América tem um problema de fundo que permanece: são países com uma população indígena, que se reconhece como tal, e é pobre, em conflito com uma população branca ou mestiça, que não reconhece a mestiçagem e compõem a classe média e as oligarquias, que no Peru, são muito poderosas.
    O Peru tem um segundo problema que é uma guerrilha esmagada, o Sandero Luminoso, uma montanha de gente prisioneira nas mais péssimas condições de sobrevivência. São os terroristas, radicais de esquerda, fanáticos e assassinos para uns, e pais, filhos e irmãos de camponeses e gente de periferia que bem ou mal lutava pela deposição das oligarquias e um país mais igualitário, com a gente excluída menos miserável. Um burburinho silencioso atravessa os pobres do país em função de seus antigos revolucionários.
    Há um terceiro problema que é o território: uma coisa terrível, extremamente acidentado, floresta pura e úmida no interior, com muitas vllas e pequenas cidades isoladas, sem água, sem luz, sem estradas, que, quando localizadas na fronteira com o Brazil, sua população não sabe se é peruana ou brasileira. Naqueles espaços sem exército para guardar fronteiras, o contrabando de tudo domina, a corrupção dos que têm dinheiro para ser corruptos é total, e exploração da miséria contundente.
    Por outro lado, o litoral é rico e desenvolvido, embora Lima, para o meu gosto é muito feia porque lá não chove o ano inteiro, tudo é coberto por uma fina camada de pó negro, pouquíssimas árvores, regadas pela municipalidade, em razão de estar espremida entre o Pacífico e altíssimas montanhas.
    Depois de tudo isso, agora um quarto problema: um presidente oriundo do interior, onde se trabalha em grupo, não em grupelhos como os gestores, onde se tem amigos, e não cúmplices, como viceja em qualquer governança.
    Se me dou por satisfeita com o insucesso da representante da oligarquia (Keiko Fugimore), o sucesso eleitoral apertado do “profe” e sua incapacidade para lidar com gente “bem”, não vai garantir sua permanência no poder.

    Para dizer que não falei de flores, o Peru é um museu a céu aberto ou céu fechado, envolvido e guardado pela vegetação exuberante; um paraíso para arqueólogos e apreciadores dos segredos da história. Neste sentido, é lindo, maravilhoso, só comparado ao México, Bolívia e a Guatemala.

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