A Guerra Cognitiva da NATO

A ideia de guerra psicológica normalmente difundida é bastante primitiva, ficando baseada em repetições obsessivas de ideias forjadas, desinformação, operações de falsa bandeira (false flag), mais alguns obscuros programas governamentais de condicionamento mental quais o MKUltra.

Na verdade, a maioria daquelas citadas são técnicas antigas, cuja implementação pode ser encontrada já em tempos bastante remotos. Só para fazer um exemplo, na Batalha de Pelusium (de 525 a.C.) entre o Império Persa e o antigo Egipto, as forças persas utilizaram gatos como táctica psicológica contra os egípcios, que evitavam atacar os gatos devido a crenças religiosas.

Isso não significa tais técnicas já não sejam utilizadas. Significa que o actual desenvolvimento técnico e científico permite ir muito além disso. O que segue é o resumo de quanto o contemplado em Cognitive Warfare, em bom português “Guerra Cognitiva”, um estudo publicado nas páginas de Innovation Hub, site que reúne pesquisadores, directamente patrocinado pela NATO.

A guerra cognitiva não tenta apenas explorar as fraquezas psicológicas do adversário: os pesquisadores da NATO (e certamente aqueles de outros Países também) querem entrar directamente naquela que definem como uma “batalha pelo controlo do cérebro”. E o mesmo conceito de “adversário” ganhou um significado bem mais abrangente. Como nas verdadeiras batalhas, as coisas são bem rijas, muito mais daquilo que podemos imaginar.

O sexto nível

Descrito como “armamento da ciência cerebral”, o novo método envolve “hacking dos indivíduos”, explorando “‘as vulnerabilidades do cérebro humano”, a fim de realizar “engenharia social” mais sofisticada.

Enquanto as acções levadas a cabo nos cinco domínios [aéreo, terrestre, marítimo, espacial e cibernético, ndt] são utilizadas para ter um efeito no domínio humano, o objectivo da guerra cognitiva é tornar todos os seres humanos numa arma.

Portanto, a NATO quer explorar um novo domínio bélico, o sexto nível: o “domínio humano”. Continua o estudo:

O cérebro será o campo de batalha do século XXI. Os seres humanos são o domínio contestado e é provável que ocorram futuros conflitos entre pessoas, primeiro digitalmente e depois fisicamente, em estreita proximidade com centros de poder político e económico”. […]

O estudo afirma explicitamente que “o objectivo da guerra cognitiva é prejudicar as sociedades, e não apenas os militares”.

Com populações civis inteiras na mira das forças armadas, o documento salienta que os militares ocidentais devem trabalhar mais de perto com os meios académicos para armar as ciências sociais e humanas para poder plenamente desenvolver as potencialidades da guerra cognitiva.

O estudo descreveu este fenómeno como “a militarização da ciência do cérebro”. Isto levará também a uma militarização de todos os aspectos da sociedade humana e da psicologia, até às relações sociais mais íntimas.

Esta militarização abrangente da sociedade se reflecte no tom psicopático do estudo, que alerta para “uma quinta coluna disfarçada, onde todos, sem o seu conhecimento, actuam de acordo com os planos de um dos nossos concorrentes”. E reparem no termo utilizado: não “inimigos” ou “rivais” mas “concorrentes”, que obviamente são a China e a Rússia.

A ameaça dos cidadãos

Os oficiais da NATO mencionados no relatório pensam mesmo em justificar esta “militarização do cérebro” porque cada vez mais conseguem ver a população ocidental (definida como “doméstica”) como uma ameaça, e temem que os civis sejam potenciais células adormecidas chinesas ou russas, a tal “quinta coluna” pronta a desafiar a estabilidade das “democracias liberais ocidentais”. Isso é: estamos perante de indivíduos com graves problemas.

Psicopatas, sem dúvida, masque não estão a brincar: o diário canadiano Ottawa Citizen informou no passado mês de Setembro que o Comando das Operações Conjuntas do exército canadiano aproveitou a pandemia de Covid-19 para travar uma guerra de informação contra os seus próprios cidadãos, testando tácticas de propaganda sobre civis canadianos.

A escolha do Canada não foi casual: sempre no Outono de 2021, teve lugar no País norte-americano o Fall 2021 NATO Innovation Challenge, uma das duas reuniões anuais com as quais a estrutura militar apela às empresas privadas, organizações e investigadores para ajudar a desenvolver novas tácticas e tecnologias.

A reunião do passado Outono teve como título “A Ameaça Invisível: Ferramentas para Combater a Guerra Cognitiva“. Explica a página internet do evento:

A guerra cognitiva procura mudar não só o que as pessoas pensam, mas também a forma como agem. […] Os ataques contra o domínio cognitivo envolvem a integração de capacidades cibernéticas, desinformação, psicológicas e de engenharia social. […] A guerra cognitiva posiciona a mente como um espaço de batalha e um domínio contestado. Visa semear dissonâncias, instigar narrativas conflituosas, polarizar opiniões e radicalizar grupos. A guerra cognitiva pode motivar as pessoas a agir de formas que podem perturbar ou fragmentar uma sociedade de outro modo coesa.

Todos têm um telemóvel

A reunião canadiana da NATO teve início com François du Cluzel, um antigo oficial militar francês que em 2013 ajudou a criar o Innovation Hub. Du Cluzel realçou como a guerra cognitiva seja “um dos temas mais quentes para a NATO neste momento”, e “tornou-se um termo recorrente na terminologia militar nos últimos anos”. Mais:

A guerra cognitiva é um novo conceito que começa na esfera da informação, que é uma espécie de guerra híbrida. Começa com a hiper-conectividade. Todos têm um telemóvel. Começa com a informação, porque a informação é, se me é permitido dizer, o combustível da guerra cognitiva. Mas vai muito além da simples informação, que é uma operação autónoma.

A guerra cognitiva sobrepõe-se às corporações Big Tech e à vigilância em massa, porque, como continua du Cluzel:

Trata-se de explorar os grandes dados. Produzimos dados onde quer que vamos. A cada minuto, a cada segundo que estamos online. E é extremamente fácil explorar esses dados para conhecer-te melhor e usar esse conhecimento para mudar a forma como pensas.

Du Cluzel definiu a guerra cognitiva como “a arte de utilizar tecnologias para alterar a cognição de alvos humanos”. Estas tecnologias, observou, incorporam os campos da NBIC: nanotecnologia, biotecnologia, informática e ciência cognitiva. Todos juntos “criam uma espécie de cocktail muito perigoso que pode manipular ainda mais o cérebro”.

Du Cluzel continuou explicando que o novo método de ataque “vai muito além” da guerra da informação e “vai muito além” das operações psicológicas, as chamadas psyops:

A guerra cognitiva não é apenas uma luta contra o que pensamos, mas é antes uma luta contra a forma como pensamos, se conseguirmos mudar a forma como as pessoas pensam. É muito mais poderoso […]. Por outras palavras, guerra cognitiva não é apenas mais um termo, mais um nome para a guerra de informação. É uma guerra contra o nosso processador individual, o nosso cérebro… porque todos sabem que é muito fácil transformar uma tecnologia civil numa tecnologia militar.

Sem princípio e sem fim

Este é um ponto fundamental: a “velha” guerra psicológica pode hoje contar com novos instrumentos, que ampliam o raio de acção.

A guerra cognitiva tem um alcance universal, desde o indivíduo aos estados e organizações multinacionais. O seu âmbito é global e visa assumir o controlo de seres humanos, tanto civis como militares.

O desenvolvimento da guerra cognitiva transforma totalmente o conflito militar tal como o conhecemos acrescentando “uma terceira grande dimensão de combate ao moderno campo de batalha: à dimensão física e informativa agora acrescenta-se uma dimensão cognitiva”.

Tal como a potencial execução da guerra cognitiva complementa um conflito militar, também pode ser conduzida por si só, sem qualquer ligação a um envolvimento das forças armadas. Além disso, a guerra cognitiva é potencialmente interminável, uma vez que não pode haver tratado de paz ou rendição para este tipo de conflito. […] Qualquer utilizador das modernas tecnologias de informação modernas é um alvo potencial. Tem como alvo todo o capital humano de uma nação.

Um conflito que não tem fronteiras geográficas ou temporais:

Este campo de batalha é global através da internet. Sem princípio e sem fim, esta conquista não conhece descanso, marcada por notificações dos nossos smartphones, em todo o lado, 24 horas por dia, 7 dias por semana.

O estudo observa que “algumas nações da NATO já reconheceram que as técnicas e as tecnologias neurocientíficas têm um elevado potencial de utilização operacional numa enorme variedade de actuações em matéria de segurança, defesa e informação”. Descreve:

métodos e tecnologias neurocientíficas (neuroS/T), e utilizações dos resultados e dos produtos da investigação para facilitar directamente o desempenho dos combatentes, integração de interfaces homem-máquina para optimizar as capacidades de combate dos veículos semi-autónomos (por exemplo, drones), e o desenvolvimento de armas biológicas e químicas (neuro-armas).

O Pentágono está entre as principais instituições que impulsionam esta nova investigação:

Embora várias nações tenham prosseguido, e estejam actualmente a prosseguir, a investigação e o desenvolvimento neurocientífico para fins militares, talvez os esforços mais proactivos a este respeito tenham sido liderados pelo Departamento de Defesa dos EUA, através do impressionante esforço de investigação e desenvolvimento conduzido pela Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA) e pela Intelligence Advanced Research Projects Activity (IARPA).

Os usos militares da investigação em neuroS/T incluem a recolha de informações, treino, “optimização do desempenho e resiliência em combate e entre o pessoal de apoio militar” e, claro está, “armamento directo de neurociência e neurotecnologia”.

A investigação pode ser utilizada para mitigar a agressão e fomentar os conhecimentos e as emoções da filiação ou passividade; induzir morbilidade, incapacidade ou sofrimento; e “neutralizar” potenciais opositores ou induzir mortalidade” – por outras palavras, para mutilar e matar pessoas.

A guerra psico-cultural

O estudo cita o norte-americano Major General  Robert H. Scales, que resumiu a nova filosofia de combate da NATO:

A vitória será definida mais em termos de captação de terreno psicocultural do que em termos geográficos.

A NATO não só está a desenvolver tácticas de guerra cognitivas para “capturar o psico-cultural”, como também está cada vez mais a armar vários domínios científicos. O estudo continua:

A combinação das ciências sociais e da engenharia dos sistemas será fundamental para ajudar os analistas militares a melhorar a produção de informações.[…] Se o poder cinético não conseguir derrotar o inimigo, a psicologia e as ciências comportamentais e sociais relacionadas vão preencher o vazio.

Todas as disciplinas académicas serão implicadas na guerra cognitiva:

No seio das forças armadas, serão mais do que nunca necessários conhecimentos especializados em antropologia, etnografia, história, psicologia, entre outras áreas, para cooperar com os militares. […] O objectivo final da aliança militar ocidental não é apenas o controlo físico do planeta, mas também o controlo da mente das pessoas.

Assim:

A guerra cognitiva pode ser o elemento em falta que permite a transição da vitória militar no campo de batalha para o sucesso político duradouro. O domínio humano pode ser o domínio decisivo, onde as operações multi-domínio alcançam o efeito do comandante. Os primeiros cinco domínios podem proporcionar vitórias tácticas e operacionais; só o domínio humano pode alcançar a vitória final e completa. […]

Lucros?

E os privados? Calma, há muito espaço para o investimento. A intervenção final no Fall 2021 NATO Innovation Challenge foi aquela do canadiano, Shekhar Gothi, oficial do CANSOFCOM (Canadian Special Operations Forces Command). Concluiu o evento apelando ao investimento empresarial na investigação da NATO em matéria de guerra cognitiva, assegurando aos investidores empresariais que a NATO ficará empenhada ao máximo para defender os lucros:

Posso assegurar a todos que o desafio de inovação da NATO indica que todos os inovadores manterão o controlo total da sua propriedade intelectual. Portanto, a NATO e o Canadá não assumirão o seu controlo.

Pelo que, a NATO e os seus aliados do complexo militar-industrial não só procuram dominar o mundo e os humanos que o habitam com perturbadoras técnicas de guerra cognitivas, mas também se esforçam para assegurar que as empresas e os seus accionistas continuem a lucrar com estes esforços.

Dúvida

Para acabar, apenas uma pequena dúvida.

Considerado que:

  • aqui fala-se de operações que visam o controlo das massas, vistas todas como potenciais inimigos;
  • que os alvos são os utilizadores das modernas tecnologias de informação
  • que esta é uma guerra que não conhece descanso e que visa assumir o controlo de seres humanos, tanto civis como militares;
  • que “é extremamente fácil” explorar as informações digitais para conhecer melhor os indivíduos e usar esse conhecimento para mudar a forma como eles pensam;
  • que aquele humano “pode ser o domínio decisivo” e que só este domínio torna possível alcançar a vitória final e completa e douradora;

considerado isso tudo, temos a certeza de que a guerra cognitiva seja apenas um assunto relativo ao futuro?

 

Links:

Innovation Hub dedica amplo espaço ao assunto da guerra cognitiva. Além do citado estudo Cognitive Warfare, outro material foi utilizado para o presente artigo e está disponível aos seguintes links:

o relatório da reunião Fall 2021 NATO Innovation Challenge

o estudo Cognitive Biotechnology

o workshop Innovative Solutions to Improve Cognition

o estudo Weaponization of Neuroscience

 

Ipse dixit.

4 Replies to “A Guerra Cognitiva da NATO”

  1. A evolução humana é cada vez mais um autentico NOJO!
    Onde se lê: “só o domínio humano pode alcançar a vitória final e completa” devia estar “só o domínio humano pode alcançar a extinção final e completa da humanidade”.
    Já ninguem se lembra da tecnologia Smart Dusty, agora evoluida para Neural Dusty, ou do Programa BRAIN, e outros tantos, tudo para o bem da humanidade, sempre para ajudar o ceginho, mas todas elas são um pau de 2 bicos, para atacar e para ser atacado por ela.
    Cada vez mais acredito que a raça humana tem algum adversário entre nós.

  2. Diz o Yin e Yang:
    “Cada vez mais acredito que a raça humana tem algum adversário entre nós.”

    Sim, tem.
    Como dizia o outro: “O inimigo somos nós” e isto foi dito no tempo da guerra na Jugoslávia.

    E diz o Max:
    “temos a certeza de que a guerra cognitiva seja apenas um assunto relativo ao futuro?”

    A guerra cognitiva é um assunto do passado, presente e futuro.
    Quando vejo que a CIA, na sua pagina oficial, promove abertamente a ideologia “Woke”, não preciso de ver mais nada para compreender o que se pretende com a promoção de tais valores pelo mundo fora.

  3. Olá Max e todos;
    Quando eu fui alfabetizada linguística e aritmeticamente a força, lá pelos de 4 a 5 anos de idade (lembrando que minha “saudosa” mãe era do “partidão” PC, no Brazil), meu padrinho me deu como presente uma livro volumoso e de aparência atraente, chamado Contos de Andersen. Eu fiquei embriagada pelos contos, e um deles, O Velho do Sono, distribuía um pozinho que fazia as crianças do mundo dormirem.
    Provavelmente “marcada” pelo conto, eu sinto as pessoas “adormecendo”, com o passar do tempo. Me parece que alguma coisa no ar que respiramos está causando essa gradual perda de consciência que atinge a maioria de nós.
    Hoje, Max, graças a este magnífico artigo, ganho uma expressão para definir minha sensação: guerra cognitiva.
    Percebo ódio e amor também, mas muitíssimo mais indiferença, uma espécie de amortecimento coletivo que não pode ser natural.
    Tenho exemplos para o ódio, o amor e a predominância da indiferença.
    No caso dos dois sentimentos antagônicos iniciais basta observar as enormes filas das lojas de departamentos, quando abrem as portas para as vendas com descontos. As filas se desfazem num segundo e as pessoas enveredam como loucas, pisoteando umas sobre as outras para aceder aos objetos de compra. Enquanto isso alguns trabalhadores das lojas tentam desesperadamente erguer aqueles (as), inclusive crianças que jazem pisoteadas no chão, enquanto põem em risco a si próprias.
    Por outro lado um exemplo de absoluta indiferença que me surpreende sempre é encontrar pessoas que, por receber uma ínfima contribuição financeira do governo, não mais buscam trabalho, deixam os filhos a deus dará, se alimentam a cachaça, sol e drogas falsificadas (mais baratas). Enfim, se deixam arrastar pela vida, ignorando se estão ficando doentes ou não. No Brazil é um número cada vez maior. Chamam a eles desalentados.
    Agora reforço a minha hipótese que são vítimas de uma guerra invisível cujas táticas não são só propaganda estúpida.
    Me recuso terminantemente a que destruam os neurônios que possuo, que de alguma forma entrem em meu cérebro e o modifiquem. Quero continuar responsável pelos meus pensamentos e ativa até morrer. Por tudo isso não descarto a possibilidade de fugir.
    Não descrevo o ódio dos vacinados contra os não vacinados, o ódio dos bolsonaristas contra os lulistas e vice versa (não se dando conta que esta postura reforça a candidatura presidencial de um muito pior que qualquer um dos citados ), nem o ódio dos russofóbicos, dos americanófilos etc porque me chateia demais. E acho mesmo que esta guerra cognitiva está em curso a bastante tempo, onde sempre há espaço para encontrar uma nova tática, especialmente se ela se converter em lucro.

  4. Estou impressionado com a NATO, descobriu a pólvora ! ou teria sido a roda? Já estamos até o pescoço de propaganda comunista, leis comunistas, governantes se declarando parciais a cada dia e agora descobrem isso. uaaauuu !

Obrigado por participar na discussão!

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