No início deste mês, os cientistas anunciaram a criação do primeiro híbrido, parcialmente humano e parcialmente macaco, obtido injectando células estaminais humanas em embriões de macaco com seis dias de idade. Segundo o estudo, publicado na revista Cell, a experiência foi muito bem sucedida em comparação com as passadas tentativas de criar híbridos, na gíria “quimeras”.
Apesar da hibridação já existir de facto (por exemplo: seres humanos com cérebro de galinha), esta é a primeira vez que acontece de forma voluntária e controlada num laboratório. E o Wall Street Journal dedica à questão um artigo que levanta não poucas dúvidas.
A desculpa dada (como habitual) é que as quimeras da bioengenharia poderiam permitir novos desenvolvimentos médicos tais como o crescimento de órgãos humanos vitais em outras espécies para transplantes. Se por enquanto estas quimeras de macacos-humanos não passam de células em crescimento num laboratório, as implicações para o futuro são enormes. A utilização de primatas tão intimamente relacionados com o ser humano suscita preocupações sobre as consequências involuntárias, o bem-estar animal e o estatuto moral dos embriões híbridos.
Temos o direito de criar seres viventes que serão depois sacrificados só para as nossas necessidades? Podemos responder que sim, que temos este direito: somos uma espécie “superior” e afinal já costumamos fazer isso com a criação de animais para satisfazer a nossa alimentação.
Mas a verdade é que a hibridação vai além disso e apresenta outros problemas, completamente novos: alguns bioéticos estão preocupados em avançar com este tipo de investigação porque falta a compreensão do que possa realmente significar um organismo criado a partir da hibridação.
Nita Farahany bioética da Universidade Duke, North Carolina (EUA):
Houve muitos avanços nesta experiência, foi dado um passo cientificamente notável que levanta questões urgentes de interesse público. Precisamos de descobrir qual é o caminho certo para impulsionar um progresso responsável.
A hibridação é um “progresso responsável”? Para já não: o estudo revelou efectivamente novos problemas com a tecnologia híbrida que mostra que ainda não está pronta para uso público. Por exemplo, os cientistas não conseguem controlar o tipo de células do macaco em que as células estaminais humanas se desenvolvem, pelo que por enquanto não podem realmente “criar” e “colher” os órgãos.
Insoo Hyun, da Case Western Reserve University (Ohio, EUA):
É isso que leva à preocupação teórica. Existe a possibilidade de, duma forma descontrolada, poder levar a uma mistura de células humanas que poderia causar o desenvolvimento de células humanas no cérebro, no coração, na cabeça, nos pés, em todo o corpo.
Ou seja: podemos injectar células estaminais no macaco, mas de pois não sabemos onde estas irão parar e desenvolver-se. Na prática, não se sabe ao certo onde a criatura resultante seria humana e onde seria animal.
Os autores do estudo, pesquisadores americanos e chineses, afirmam:
Estes resultados podem ajudar a compreender melhor o desenvolvimento humano precoce e a evolução dos primatas e desenvolver estratégias para melhorar o quimerianismo humano em espécies evolutivamente distantes.
Não há dúvidas de que tais estudos possam ampliar o nosso conhecimento: mas “compreender melhor o desenvolvimento humano” criando um ser diferente, que humano não é, não parece o melhor dos caminhos. Tentamos não ser hipócritas: este estudo apela principalmente para a indústria biomédica e farmacêutica dos transplantes. E é aqui que encontramos os problemas maiores.
Não é preciso envergar para complexos percursos filosóficos: a Ciência de hoje é estritamente mecanicista e vê o Homem como um mero conjunto de órgãos, que podem ser substituídos com idênticas peças sobressalentes ou até com algo diferente. É o mesmo caminho do Transumanismo, é esta a Caixa de Pandora que a biotecnologia está a tentar abrir. Deixando de lado considerações religiosas: o que é “humano”? E mais importante ainda: o que é “vida”?
Para incrível que pareça, definir o conceito de “vida” não é simples. A mesma Wikipedia, que funciona como espelho da ortodoxia científica, tem problemas e é obrigada a admitir:
Por mais simples que possa parecer, ainda é muito difícil para os cientistas definir vida com clareza.
E continua:
De um modo geral, considera-se tradicionalmente que uma entidade é um ser vivo se, exibe todos os seguintes fenômenos pelo menos uma vez durante a sua existência:
- Desenvolvimento: passagem por várias etapas distintas e sequenciais, que vão da concepção à morte.
- crescimento: absorção e reorganização cumulativa de matéria oriunda do meio; com excreção dos excessos e dos produtos “indesejados”.
- Movimento: em meio interno (dinâmica celular), acompanhada ou não de locomoção no ambiente.
- Reprodução: capacidade de gerar entidades semelhantes a si própria.
- Resposta a estímulos: capacidade de “sentir” e avaliar as propriedades do ambiente e de agir seletivamente em resposta às possíveis mudanças em tais condições.
- Evolução: capacidade das sucessivas gerações transformarem-se gradualmente e de adaptarem-se ao meio.
Estes critérios têm a sua utilidade, mas a sua natureza díspar torna-os insatisfatórios sob mais que uma perspectiva; de facto, não é difícil encontrar contraexemplos, bem como exemplos que requerem maior elaboração. Por exemplo, de acordo com os critérios citados, poder-se-ia dizer que o fogo tem vida.
Não deixa de ser interessante que a altura em que vivemos, caracterizada pela “pandemia” de Covid-19, é definida por algo (o vírus SARS-CoV-2) que nem sabemos se chamar de “vivo” ou de “morto”.
Tudo isso significa isso que a Ciência deveria travar os seus avanços? Nada disso: a Ciência tem que ir em frente, sempre, pois é a natureza dela. Só que, talvez, seria preciso estabelecer algumas prioridades. Por exemplo: antes de manipular a vida, não seria mal entender o que a vida é e só depois, eventualmente, tentar modifica-la duma forma tão radical. Trata-se dum passo extremamente complexo mas crucial porque, caso contrário, estaríamos a tentar manipular algo sem saber ao certo o que isso representa.
Uma hipótese absurdamente idealista? Provavelmente sim. E, na óptica da Ciência mainstream, perfeitamente supérflua: já sabemos o que é a vida. Talvez falte um definição que consiga satisfazer todos, mas a vida é… é vida, um conjunto de processos bioquímicos que os laboratórios podem manipular. E isso chega.
Mas podemos ficar satisfeitos com uma Ciência dedicada quase exclusivamente ao binómio lucro + transumanismo? Porque depois acontece isso:
No Nebraska (EUA), Cecile Eledge de 61 anos concebeu uma menina através da inseminação artificial em nome do seu filho Matthew, que é casado com Elliott Dougherty. A irmã de Dougherty também contribuiu para o nascimento do bebé, ao doar os seus óvulos, enquanto Matthew deu o seu esperma para que o nascituro tivesse material genético de ambos os lados da família.
Resultado: o Pai 1 fertiliza os óvulos da cunhada (irmã do Pai 2) e a sua mãe de 61 anos dá à luz o sobrinho, filho do filho dela. Tecnicamente, o Pai 1 engravidou tanto a cunhada quanto a mãe.
Esqueçam os assuntos homossexualidade, idade e o resto pois o que interessa aqui é a pergunta: é necessário? Quantas crianças há à espera de serem adoptadas? Já visitaram um orfanato? Têm ideia do sofrimento daquelas criaturas? Por acaso um assunto que conheço, pois a minha irmã Hanna foi adoptada. Então a imagem acima não apresenta os avanços da Ciência mas mostra apenas a glória do egoísmo, um incesto legitimado só porque sim, só porque é possível fazê-lo. Não fica tão longe da criação de animais só como armazém de peças sobressalentes, pois não?
Tudo isso é a Ciência que desejamos? Aliás: é Ciência?
Ipse dixit.
Imagem de abertura: Wikipedia
E se o “improvável” objetivo for obter um soldado mais capaz, sem família, sem doenças, tipo nos filmes mais antigo. Essa história de extração de órgãos não me convence.
Estou contigo Ivan, parece me muito mais provável .
Olá Max e todos:
A ciência e as pessoas a ela dedicadas são pura racionalidade Não é sabedoria que opera por parâmetros diversos. Logo, é inútil clamar por ética neste campo. Nunca teve, não tem e não terá ética: não tem limites. Justamente a mistura com ética na ciência é pura propaganda, confusão, justificando que “um conhecimento maior, superior” não seria ético não comportar-se eticamente.
O mercado de órgãos para transplante, as encomendas e a organização desse negócio costuma dar bons lucros, estando quase saturado. Acredito que os novos rumos do transumanismo esteja sendo operado para outros fins. Uma boa hipótese, o Ivan já deu, e o Lopes apoiou
Orfanato é um triste lugar onde pequenos deserdados da sorte estão expostos em busca de alguém que os tire desta situação.
Felizes os que não são abusados e/ou maltratados pelos responsáveis pelo orfanato. Eles não têm a quem pedir socorro.
Se eu quisesse ter filhos, de certo não viveria gravidez e parto. Por adoção teria quantos filhos desejasse.