Os problemas da China

A página inglesa de Wikipedia acerca de Frederick W. Engdahl não é tenra: começa por dizer que ele é um escritor americano e teórico da conspiração sediado na Alemanha, alguém que identifica-se como “investigador económico, historiador e jornalista freelancer”. Pior:

Engdahl é um colaborador do sítio web de Global Research do conspiracionista Centre for Research on Globalization, do sítio web russo New Eastern Outlook, de Rede Voltaire e de Veterans Today.

Já gosto dele, parece um fulano interessante. Pelo que vou fazer um resumo dum dos seus mais recentes artigos: Can China Lead a World Economic Recovery? (“Pode a China liderar uma recuperação económica mundial?”). Um artigo que merece pois baseado numa série de dado. A China tem problemas? Sim, tem. Não são tão pequenos assim e têm dois nomes: pobreza e dívida. Vamos ver.

Pode a China etc., etc….?

Em 1 de Dezembro de 2020, o Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês (CCP) Xi Jinping anunciou que a China tinha alcançado o objectivo de “erradicar a pobreza absoluta” e tornar-se uma “sociedade moderadamente próspera” antes do final de 2020. Na cimeira do G20 em Riad, em Novembro, Xi gabou-se de estar dez anos à frente do prazo estabelecido pela Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável de 2030. No entanto, como até mesmo os analistas chineses assinalam, há grandes questões atrás desta realização.

Um objectivo vinculativo para eliminar a pobreza absoluta até ao final de 2020 tinha sido incorporado no 13º Plano Quinquenal da China (2016-2020), em 23 de Novembro de 2016. Agora, de forma impressionante, o objectivo é declarado ganho.

No entanto, um escrutínio mais atento não é tão impressionante. A maioria dos pobres na China é constituída por pessoas migrantes rurais que vivem com a agricultura de subsistência ou com outros meios, nas partes central e ocidental da China, longe das prósperas províncias costeiras. Um relatório do Gabinete Nacional de Estatística da China de 2016 declarou que em 2015 a taxa de pobreza era de 1.8% nas províncias orientais altamente desenvolvidas e largamente urbanizadas; 6.2% na China central, e 10% na China ocidental.

Parece um sucesso mas… Mas a China não utiliza o padrão do Banco Mundial que define a pobreza num País de rendimento médio-alto, onde o limiar fica num rendimento diário de 5.50 Dólares per capita. Pequim utiliza aproximadamente 1.90 Dólares por dia, o mesmo valor dos Países mais pobres do planeta. Depois fala apenas da pobreza rural, ignorando o significativo quociente de pobreza urbana. Pelo que, se a China utilizasse a definição de pobreza dada pelo Banco Mundial, em vez de 1.7% de pobreza teria 17% de pobreza, um número bem mais significativo. E não podemos esquecer o impacto económico do Coronavírus em 2020: é provável que a pobreza hoje esteja mais elevada.

De facto, em Maio, o Primeiro Ministro Li Keqiang apresentou uma estatística na qual era anunciado que em 2019 cerca de 600 milhões de chineses (quase a metade da população) estavam a viver com um rendimento mensal de 1.000 Yuan ou até menos: acerca de 150 Dólares cada 30 dias, o que significa 5 Dólares por dia. Mas isso foi antes da inflação começar aos pulos: desde 4.5 % em Dezembro de 2019 para – 0.63 % agora. Esta chama-se deflacção e é o sinal de que algo não está bem. O mesmo Li Keqiang declarou: “Não se pode sequer pagar a renda com o dinheiro ao viver numa grande cidade, quanto mais gastar para melhorar a vida ou comprar estes produtos de exportação para ajudar os fabricantes”.

Este é o primeiro problema: a China tenciona impulsionar o consumo interno, mas com 150 Dólares não há muito que possa ser impulsionado…

O segundo problema é que a grande e jovem nova classe média das mega-cidades, como Kunming, Xi’an, Chengdu, Xangai e inúmeras outras com apartamentos modernos, já estão carregados de dívidas por comprarem o primeiro carros e, a seguir, adquirir um apartamento enquanto os preços imobiliários continuam a subir. Não acaso, agora estão a aparecer os primeiros sinais de incumprimento da dívida por parte dos consumidores: seja com bancos privados, seja com bancos público, a dívida é um flagelo e em China não é uma excepção.

A dívida

O terceiro problema é na verdade sempre o segundo, mas num tamanho ainda maior: outra vez a dívida. Mas agora pública.

Em 2008, com o surgimento da grave crise financeira, o líder Wen Jaibao implementou um espantoso estímulo de 4 triliões de Dólares para manter a economia minimamente estável à medida que o comércio mundial entrava em colapso. Cerca de metade daqueles 4 triliões foi deixada aos governos locais para recolher o capital, geralmente através de obrigações de infra-estruturas ou de empréstimos com empresas estatais locais. Este foi o início da acumulação da dívida que hoje está a conduzir a crises do governo local e ao colapso de numerosos bancos mais pequenos nos últimos dois anos, muito antes da crise da Covid ou das sanções comerciais dos EUA.

Para manter os seus objectivos económicos após 2008, os funcionários provinciais do partido envolveram-se no que é chamado de “banco sombra”, algo não declarado, não garantido e não regulamentado por Pequim. Um verdadeiro mercado negro dos capitais. Mas é claro que isso teve um custo: uma enorme acumulação de dívidas municipais ou provinciais, grande parte das quais não declaradas ao governo central. Esta dívida local oculta tem vindo a crescer em dimensões desconhecidas. Agora estas dívidas começaram a vencer, mas muitos governos locais não dispõem dos fundos necessários para reembolsar ou renovar as obrigações.

De quanto dinheiro estamos a falar? Ninguém sabe ao certo: oficialmente a dívida garantida pelo Estado é estimada em 25.8 triliões de Dólares. Complicado até ter uma noção deste montante. As empresas estatais como a ChemChina ou Sinopec são devedoras de 15 triliões de Dólares, depois há a dívida das instituições locais, outros 6.3 triliões de Dólares. Mas esta é a dívida garantida pelo Estado: o verdadeiro problema surge com as dívidas locais, aquelas não declaradas. De acordo com Liu Shijin, vice-director do Comité Económico da Conferência Consultiva Política Popular Chinesa: “Dos locais investigados, é no mínimo não inferior à dívida declarada, e algumas são três vezes superiores”. Isso significaria uma dívida local oculta adicional entre 6.3 triliões a 18.9 triliões. Ou seja: em Pequim estão sentados por cima duma bomba relógio.

Por esta razão, o Ministério das Finanças publicou no passado 9 de Dezembro as “Medidas para a Administração da Emissão de Títulos do Governo Local”: a partir do dia 1 de Janeiro de 2021, a responsabilidade e a emissão de dívida passa para o governo local. Esta é uma enorme mudança: antes, se um governo local estivesse em risco de incumprimento, o governo central interviria, agora não: é um problema de quem comprometeu-se com o empréstimo. Esta nova regra é uma clara tentativa de travar o problema da dívida oculta local. O problema é que, como ninguém conhece ao certo nem os montantes utilizados até agora com o velho sistema, nem o que está a ser ainda fundamentado pela dívida oculta, a mudança poderia desencadear inadimplências municipais em grande escala.

O Desemprego

Outro grande problema é o número de desempregados. Falamos aqui do verdadeiro total, não do declarado. O governo central relata uma taxa de desemprego oficial de um único dígito, entre 6% a 7%, invejável em comparação com muitos Países da OCDE. No entanto, numa curiosa anomalia, o gabinete de estatística chinês define como “desempregados” unicamente os sem trabalho que vivem nas cidades: os dados de Pequim não incluem pessoas em comunidades rurais ou parte daqueles 290 milhões de trabalhadores migrantes que trabalham na construção civil, na manufactura e noutros empregos de baixo salário. De acordo com um estudo de Zhang Bin, economista da Academia Chinesa de Ciências Sociais em 2020 (um think tank chinês), se esses migrantes fossem incluídos, cerca de 80 milhões de pessoas estariam sem emprego no final de Março de 2020: cerca de 10% a 13% da força de trabalho. Mas alguns estudos privados vão além disso, apontando para a casa de 20%. E os desempregados não podem contrair empréstimos para comprar apartamentos ou carros novos.

Existe a perspectiva duma China em recessão? As consequências globais desta situação seriam gravíssimas para a economia global. Mas a realidade fala de bloqueios “pandémicos” em toda a União Europeia e nos Estados Unidos, algo que irá atingir a enorme economia de exportação da China. Já existem indicações de que a capacidade de Pequim em abrir novos mercados através da iniciativa Belt and Road (a Nova Rota da Seda) está a ser seriamente prejudicada. Não acaso, o Partido Comunista da China reduziu significativamente os empréstimos para o estrangeiros dos dois maiores bancos estatais já antes da crise do Coronavirus: 4 mil milhões de Dólares em 2019, muito aquém do recorde de 75 mil milhões de Dólares de 2016.

Com dezenas de biliões de empréstimos a Estados financeiramente agora em dificuldade (Paquistão, Etiópia, Venezuela, etc.), a questão é séria: uma grave recessão chinesa é o que o mundo não precisa neste momento.

大躍進: uma hipótese

Este o amplo resumo do artigo de Frederick W. Engdahl, publicado no site dele. É o caso para ficarmos preocupados?

Até o ano passado teria respondido “não”: a China é o novo centro do mundo e pode contar com o apoio de Wall Street, podemos ficar descansados. Isso teria sido o ano passado, entretanto muita água passou debaixo das pontes e até alguns barcos. Agora a situação pode ser um pouco diferente, mesmo com a falsa eleição de ZomBiden para a Casa Branca.

Sem entrar em hipóteses conspiracionistas, é interessante notar como, enquanto por aqui estamos numa clara fase de Decrescimento Feliz, a China tem um enorme problema pela frente, um problema de nome “Dívida”, algo que mais cedo ou mais tarde terá que enfrentar e solucionar. Ao entrar numa fase “controlada” de dificuldade, Pequim teria a ocasião de resolver os seus problemas financeiros enquanto por aqui ficaríamos ainda mais descrescidos e ainda mais felizes. A principal dúvida reside no facto de não sabermos ao certo como é estruturada a dívida chinesa. Há actores internacionais no meio disso? Existe a possibilidade de significativas perdas por parte de bancos estrangeiros? E quais? Porque há nomes que não podem perder dinheiro.

Um outro contra deste cenário seria uma profunda crise económica global mesmo durante a fase inicial da Administração americana de ZomBiden: não calharia tão bem assim, sobretudo demonstraria quanto a economia americana de hoje dependa da homologa chinesa, alimentando ainda mais o descontentamento e o “nacionalismo” de algumas camadas no interior os EUA. Existe um fio vermelho entre Washington e Pequim, fio ainda mais espesso após o regresso Democrata no poder: o Partido Comunista Chinês e a nova Administração americana têm os mesmos objectivos de curto e médio prazo, pelo que é difícil imaginar que um dos dois protagonistas prejudique o outro nesta altura. Mais provável uma colaboração para solucionar o problema da Divida que, não esquecemos, atinge os EUA também.

Seja como for: a China não vai tombar por causa da Dívida porque muita dela pode ser “oculta” mas em Pequim sabem disso e não desde ontem. A China continuará o seu 大躍進, o Grande Salto para Frente. Se calhar não serão tão “Grande” como antes, mas sempre “Salto” será e continuará até Pequim ocupar o centro do mundo. A elite mundial parece ter ideias bastantes claras acerca disso.

Por aqui trata-se de trocar de chefe, sempre como província do Império vamos ficar. Mais pobres? Com certeza. Ainda menos livres? Também. Mas com um armazém AliExpress em cada cidade e muitos novos modelos de smartphones. É possível pedir mais?

 

Ipse dixit.

4 Replies to “Os problemas da China”

  1. Prevenir antes de remediar e uma “piscadela” à nova administração americana vinha mesmo a calhar…
    China retomou a compra de dívida dos USA (dólares), assinalando o seu aumento percentual no seu cabaz.
    É só pesquisar um pouco… vamos ver se é para durar, ou foi só para “afagar o bicho”.

  2. Uma coisa é certa, com a tomada do poder por parte do sr. Biden, pedófilo e senil, a retórica anti-China difundida pelo regime da Inglaterra e os seus aliados vai intensificar-se ainda mais assim como as provocações por parte dos mesmos no que toca à ingerência nos assuntos internos da República Popular da China (RPC), nomeadamente através dos grupos terroristas e organizações não governamentais (ong) criadas pelo regime Inglês com o apoio financeiro e táctico dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), que actuam em Hong-Kong e Taiwan.

    A guerra que outros pretendem despoletar contra a República Popular da China (RPC) vinha a ser contrariada pelo Presidente Xi Jinping e o Presidente Trump, através das conversações que mantinham e dos acordos que firmaram de cooperação e entendimento no campo económico e comercial, sempre acompanhados com uma dura competição entre ambos os países nesses sectores.

    Para um melhor entendimento sobre o cenário de guerra que poderá ser despoletado contra o gigante Asiático, recomendo o seguinte documentário, «A Próxima Guerra na China», de John Pilger:

    1. Excelente documentário, como aliás é apanágio do Pilger. Grato pela partilha.
      A contensão da expansão da China é a “Guerra Fria” do séc XX.
      No entanto, a(s) ameaça(s) mais prementes e importantes, para as quais a guerra será quente surgiram noutros locais, alguns já conhecidos em guerras de baixa pressão (globalmente falando), outros em guerra suspensa e, os mais perigosos, serão as novas guerras pelo controle das reservas energéticas do futuro… falo claro da Venezuela e do Irão.
      Creio que o foco das guerras permanentes, vai ser a pressão constante sobre o controlo dos interesses russos na energia, o que por agora já vos deve ser até óbvio.

  3. Benvinda ao mundo (ou seja, o sistema dual de usura-lucro corporativa – endividamento público-popular) capitalista! Mas esqueceram de que este mundo tem donos, e estes não tem olhos puxados…Não sem razão o Banco Central Chinês já está no jogo”…

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