As origens do Fascismo – Parte I

Há cem anos nascia o Fascismo. Rios de tinta foram utilizados para falar deste fenómeno político e das suas derivações: no entanto, não podemos esquecer que, como sempre acontece quando há uma derrota no campo, a maior parte dos estudos foram influenciados pelas doutrinas dos vencedores. E isso significa que a nossa visão do Fascismo é obrigatoriamente limitada e desligada dos conceitos originais que deram vida ao movimento: concentra-se na era final do Fascismo, quando este já tinha sido traído pelos mesmos fascistas (Mussolini incluso) e a ideologia originária esquecida, substituída pela forma acima da substância. Significa também que o termo “Fascista” é utilizado hoje como sinónimo de “ditadura”, um erro crasso e demasiadas vezes não inocente.

É possível falar das origens do Fascismo em termos objectivos, sem a intenção de reabilitar a doutrina política mas também sem condena-la a priori com pré-conceitos que nada têm a ver com a realidade? É possível observar a evolução de forma objectiva? Sim, é possível. É isso que vamos fazer neste artigo.

As origens

A história do Fascismo, fenómeno político tipicamente italiano, começa oficialmente no final de 1914, com a fundação, pelo jornalista Benito Mussolini, do revolucionário movimento Fascio d’Azione no âmbito do intervencionismo na Primeira Guerra Mundial.

Quem era Mussolini? Era um socialista, militante do Partito Socialista Italiano (PSI) e não um militante qualquer: activista de primeiro plano nas manifestações de rua, foi ferido, preso e condenado por causa das ideias políticas. Em 1912 foi nomeado director do quotidiano oficial do partido, o Avanti!, conseguindo duplicar as vendas do diário sob a sua direcção. Em 1914 começava a Primeira Guerra Mundial e o Partido Socialista Italiano estava dividido: dum lado os intervencionistas (que desejavam a entrada em guerra), do outro as anti-intervencionistas; e havia mais uma divisão, pois nem eram poucos os que achavam bem entrar em guerra ao lado da Áustria e da Alemanha, contrários aos que queriam uma aliança com França e Reino Unido.

O PSI não conseguia decidir-se, nem a direcção da qual Mussolini fazia parte. Mussolini partiu de posições não-intervencionistas, depois passou à neutralidade e, finalmente, ao intervencionismo (ao lado de Paris e Londres), convencido de que a linha da não intervenção teria reduzido as simpatias para o PSI.

A doutrina do “nem aderir nem sabotar” do secretário Costantino Lazzari terá como consequência o afastamento de alguns eleitores socialistas à medida que estes encherão as fileiras do Fascismo: o que o PSI não tinha entendido era que a Primeira Guerra Mundial era vivida como a Quarta Guerra de Independência do ponto de vista de muitos italianos (e dos historiadores modernos); de facto, só com a derrota da Áustria foi possível completar o Estado italiano com as regiões do Friuli e do Trentino – Alto Adige, na altura ocupadas pelos austríacos. É também preciso lembrar que a “conversão” de Mussolini foi favorecida por contactos que teve com representantes dos franceses e dos ingleses; em particular com Charles Dumas, chefe de gabinete do ministro francês (socialista) Jules Guesde.

O Fascio d’Azione Rivoluzionaria

Mussolini foi portanto expulso do PSI por causa da ideia intervencionista, fundou um novo diário (Il Popolo d’Italia) e, em Novembro de 1914, participou em Milano à fundação do Fascio d’Azione Rivoluzionaria, um movimento de intervenção que tencionava organizar todos os intervencionistas de Esquerda, em particular aqueles que gravitavam na orbita da Unione Sindacale Italiana, um sindicato revolucionário de Esquerda que incluía também franjas anárquicas. Apesar do nome (Fascio), este movimento não tinha uma caracterização fascista: um fascio em italiano é um grupo de varas de madeira amarradas com tiras de couro, normalmente em volta de um machado, e simboliza a força derivada da união.

Após a declaração de guerra, Mussolini partiu para a frente, da qual será retirado em 1917 por causa dos ferimentos provocados pela explosão duma bomba. De volta à vida civil, regressou ao Il Popolo d’Italia já com algumas ideias claras: o sub-título do jornal deixou de ser “Jornal socialista” para tornar-se “Jornal de combatentes e produtores”, indicando claramente o caminho a seguir. Ao mesmo tempo, declarava o seu anti-parlamentarismo:

Esses deputados ameaçam à maneira das repúblicas sul-americanas, esses deputados que espalham – com os mais improváveis exageros – o pânico no seu fiel rebanho eleitoral; esses deputados infames, charlatães… esses deputados deveriam ser entregues aos tribunais de guerra! A disciplina deve começar do topo para ser respeitada em baixo. Quanto a mim, estou cada vez mais convencido de que, para a saúde da Itália, deveríamos fuzilar, digo fuzilar, algumas dezenas de deputados nas costas e enviar alguns ex-ministros à prisão perpétua. Não só isso, mas acredito com uma fé cada vez mais profunda que o Parlamento na Itália é uma bolha pestilenta. Deve ser erradicado.

Bastante claro. Mas nos artigos publicados na altura é possível encontrar outras ideias, por vezes presentes só em forma de conceitos abstractos, que mais tarde darão vida ao Fascismo: em Dezembro de 1918, por exemplo, no diário aparece Trincerocrazia, no qual reivindicava para os veteranos das trincheiras o direito de governar a Itália do pós-guerra e prefigurava os combatentes da Grande Guerra como a aristocracia de amanhã e o núcleo central de uma nova classe dominante.

Os Fasci Italiani di Combattimento

Faltava pouco para a fundação do núcleo originário do Fascismo, algo que aconteceu alguns meses depois. Sempre em Milano, no dia 23 de Março de 1919, na Piazza San Sepolcro perante não mais de que cinquenta pessoas, foram apresentados os Fasci Italiani di Combattimento, movimento político que mais tarde mudará o nome em Partito Nazionale Fascista.

O Manifesto dos Fasci era bastante simples: propostas de reformas políticas e sociais, combate contra a Direita ligada à Igreja e a Esquerda “destrutiva”, apresentação duma “terceira via” entre os dois polos, desenvolvimento no campo das teorias modernistas acerca do “novo homem”, socialização das empresas e dos meios de produção. O programa dos Fasci tinha sido organizado pela vertente Futurista, em primeiro lugar pelo poeta e escritor Filippo Tommaso Marinetti; mas foram vários os artistas do Futurismo que escolheram e contribuíram ao projecto dos Fasci com ideias anticlericais, socialistas e nacionalistas, ao ponto de se tornarem em breve a principal componente do Fascio milanês. Os restantes aderentes da primeira hora eram formados por veteranos intervencionistas da Primeira Guerra Mundial, muitos deles anteriormente ligados aos movimentos socialistas, republicanos, sindicalistas revolucionários (como o deputado socialista Alceste de Ambris), anarquistas. E nem faltavam cinco hebreus.

As eleições políticas italianas de 1919 (pela primeira vez de acordo com o sistema proporcional) viram o sucesso dos dois partidos de massa: o Partito Socialista Italiano e o recém-nascido Partito Popolare Italiano. Do ponto de vista fascista foi um fracasso: candidato apenas no colégio de Milano, com uma lista encabeçada por Mussolini e Marinetti, reuniu menos de 5.000 votos sobre um total de 370.000 disponíveis. Mussolini pensou seriamente em abandonar a política para dedicar-se apenas ao jornalismo. E a História hoje seria algo bem diferente.

Foi o clima político a determinar o seguimento: um clima muito quente, com uma Italia à beira da guerra civil. O PSI recusava alianças com partidos “burgueses”, favorecendo a instabilidade. Ao mesmo tempo, os trabalhadores ocupavam as fábricas e quintas: nas campanhas, muitos proprietários de terras, assustados pelas greves e as demonstrações, livravam-se dos campos, vendendo-os aos trabalhadores por quantias simbólicas ou simplesmente abandonando-os. Nascia assim uma nova classe de pequenos proprietários, agora decididos a defender a terra recém obtida da ocupação dos outros trabalhadores; e Mussolini viu neles um potencial eleitorado.

Assim, enquanto os socialistas estavam dilacerados por disputas internas e competição sindical com as ligas brancas do Partito Popolare, fileiras de membros da nova pequena burguesia agrícola, artesãos ou comerciantes, alarmados pelas ocupações dos trabalhadores e a insegurança, convergiram no movimento liderado por Mussolini. Em poucos meses, mais de 800 novos Fasci foram estabelecidos em Itália, com cerca de 250.000 membros que deram vida às “equipas de ação” que se opunham às ligas vermelhas e brancas durante as greves ou as ações de ocupação, num clima generalizado de violência política.

Tal como acontecerá mais tarde com o Nazismo, foi o clima de elevada instabilidade, a falta de segurança e perspectivas especialmente entre a pequena burguesia (boa parte da qual era formada por “novos ricos”) que determinaram o sucesso dum partido que até então arriscava seriamente desaparecer na indiferença.

O Partito Nazionale Fascista

A crise do Partito Socialista culminou com o aparecimento do Partito Comunista Italiano, nascido duma costela do PSI em 1921. O PCI, de clara inspiração bolscevique, assustava ainda mais: a Revolução de Outubro era notícia de um par de anos antes. As “equipas de acção” socialistas sofreram a divisão, crise reforçada pelos ataques das equipas fascistas (agora chamadas de Camicie Nere, “camisas pretas”), apesar destas serem numericamente inferiores. Paralelamente, Mussolini trabalhava no plano político ao tecer acordos com pequenos movimentos moderados até que, sempre em 1921, i Fasci Italiani di Combattimento assumiram o nome de Partito Nazionale Fascista (PNF).

Com o aparecimento do PNF acaba, de facto, a primeira fase do Fascismo, aquela mais genuína. Apesar de Mussolini continuar a ser ideologicamente um socialista (e isso até a morte), em 1921 começa a transformação do movimento numa instituição política de nível nacional. Para obter o “salto de qualidade”, Mussolini terá que aceitar compromissos como a figura do Ras, termo que na altura indicava os chefes locais dotados de grande poder (sobretudo capazes de movimentar as massas e, portanto, os votos para o Partido Fascista), que intimidavam os sindicalistas, os populares e os socialistas-comunistas com as suas Camicie Nere, a infame prática de cassetete, óleo de mamona e até assassinatos. Do outro lado havia o Rei, um indivíduo fraco que todavia tinha o exército do seu lado; exército (que na altura incluía os Carabinieri) que, apesar dos esforços, nunca conseguiu ser totalmente fascistizado e permaneceu fiel em primeiro lugar aos Savoia.

Tudo isso terá profundas implicações, sobretudo na evolução do Fascismo: de força social-democrata nacionalista para ditadura. Era este o desejo de Mussolini? Provavelmente não. Mas não podemos esquecer que Mussolini não era um simples fascista, ele era o Fascismo: mesmo detestando os fascistas (aspecto, este, poucas vezes referido nas análises históricas) e desprezando o Rei, Mussolini precisava de ambos para manter o poder e nunca fez nada para corrigir o rumo. Quando, mais tarde, toda a força vital do movimento desapareceu e o Fascismo tornou-se uma parodia de si mesmo, Mussolini continuou a liderar porque amava o poder e, no fundo, gostava de iludir-se que o Fascismo teria acabado com as democracias do Ocidente e o Comunismo do Oriente europeu.

Mas esta é outra história. O que interessa aqui é a ideologia que estava na base do Fascismo originário. É o que será analisado na segunda e última parte do artigo.

 

Ipse dixit.

Fontes: na segunda parte do artigo.

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