“Morte aos bilionários!”

“Abolir os bilionários” diz o New York Times. Nada menos de que o New York Times. Títulos como estes não existiam quando como Presidente era o simpático Obama. Mas agora, com um magnate do imobiliário na Casa Branca, os ventos mudam e atrapalham até as páginas do conceituado diário “liberal” e “progressista” dos Estados Unidos. O diário da Superclasse americana.

O autor do artigo, Farhad Manjoo, é um sul-africano de origem indiana, 40 anos de idade, especialista das novas tecnologias, “um campo que cria e mata um milionário por ano” como ele diz. Nessa posição, Manjoo tem acumulado um conhecimento antropológico da figura do bilionário:

Possuir um bilião de Dólares é absolutamente mais do que qualquer pessoa precisa, mesmo levando em conta os luxos mais exagerados. É muito mais do que qualquer um poderia alegar merecer, por tanto que acredite ter contribuído para a sociedade. Num certo nível de riqueza extrema, o dinheiro inevitavelmente corrompe. De esquerda ou de direita, a riqueza “compra” o poder político, silencia a dissidência, serve principalmente para perpetuar uma riqueza cada vez maior, muitas vezes sem relação com qualquer mútuo bem social.

A eliminação dos bilionários, essencialmente com impostos marginais progressivos e muito elevados, é uma demanda que está a avançar nos Estados Unidos, do lado “progressista”. A deputada Alexandra Ocasio Cortez, 29 anos, expoente em ascensão do Partido Democrático, feminista militante, lidera uma campanha pela abolição dos ricos, com o slogan: “Qualquer bilionário é um fracasso político”. O Huffington Post publicou um artigo, assinado por um ex-director do Wall Street Journal, que faz a seguinte pergunta: “Os bilionários deveriam até existir?”.

Tudo isso é muito estúpido. Profundamente estúpido. Estamos perante uma mistura de populismo (isso sim que é populismo no sentido negativo, e da pior espécie), socialismo emocional, pura inveja, síndrome de Robin Hood. E hipocrisia. Sobretudo esta.

Querem abolir os bilionários? Então respondam: por qual razão até hoje continuam a apoiar e legitimaram (com o voto) um sistema que cria bilionários? Por qual razão adquirem bens e serviços oferecidos por empresas no topo das quais encontramos bilionários? Curiosidade: para marcar a próxima manifestação, utilizam o Messenger de Facebook, talvez num iPhone novinho em folha? E a rede que utilizam: certificaram-se de que no topo da empresa não haja um bilionário? Não? Ahiahiahi… Falemos das compras? São feitas onde? Na mercearia à esquina ou no centro comercial onde brilham as luzinhas? Escolhem os produtos de origem certificada, proveniência local, afugentando a mercadoria dos bilionários? Porque é possível escolher: a verdade é que há escolhas, tal como sempre houve. Preferimos o lado mais cómodo das coisas, mais atraente, também mais fútil. Mas sobretudo: estão prontos para procurar um novo lugar de trabalho uma vez perdido o vosso actual?

Porque, vejam, os bilionários são donos de empresas, grandes empresas, empresas imensas, múltiplas empresas imensas que dão trabalho a um oceano de outras empresas mais pequenas, no topo das quais não encontramos bilionários mas pessoas mais ou menos normais, que dão trabalho a outras pessoas mais ou menos normais. Entre as quais bem pode haver o Leitor. Que, obviamente, não se importará de ficar como mais um desempregado numa sociedade incapaz de absorver as centenas de milhões de novos desempregados. Ou erro?

Finalmente: qual será a reacção dos bilionários perante uns “impostos marginais progressivos e muito elevados”? Temos duas possibilidades: A) os bilionários ficarão em lágrimas, perderão tudo e serão obrigados a fazer a fila na sopa dos pobres B) os bilionários mudarão residência fiscal, pois paraísos fiscais é coisa que não falta. Façam as vossas contas.

Além disso há outro raciocínio, um pouco mais profundo, que parece não atravessar o cerebrinho das massas bem treinadas. Abolir os bilionários? Sim, pode ser feito. Mas quem estabelece qual o limite da riqueza? E com qual base? Um ordenado de 600 Euros é miserável em Italia, mínimo em Portugal, decente no Brasil, uma riqueza no Chad. Tudo bem, consideramos ultrapassado este obstáculo pois cada País pode pôr o seu próprio limite e vamos ao assunto que conta. Estabelecemos o limite da riqueza com uma lei? Óptima ideia, não é?

Muito bem, então forjamos uma lei que estabelece que a partir de hoje ninguém pode ter mais de 999.999.999 Dólares, ou montante equivalente, na sua conta bancária. Observem que esta lei não determina apenas um limite numérico, também faz outra coisa: estabelece um princípio, segundo o qual o Estado controla e pode pôr um limite à riqueza de cada um de nós. Agora, dizer “abolir os bilionários” faz um certo efeito, dizer que o Estado “controla e põe um limite aos nossos pertences” faz um efeito um pouco diferente, não é? Mas é exactamente o mesmo princípio. E se amanhã o País atravessasse uma crise económica e o Estado precisasse desesperadamente de dinheiro? Que tal utilizar o mesmo princípio, que já foi legalmente introduzido, para baixar o limite da riqueza individual e encher as caixas do Estado? Porque hoje o Estado somos nós, amanhã não se sabe. Fala-se muito de Nova Ordem Mundial: uma lei que estabeleça um limite da riqueza individual representa um bom passo na direcção da NWO, não acham? De certeza facilitará os legisladores no futuro.

Resumindo, a pergunta é: desejamos de verdade fazer guerra às injustiças limitando a liberdade? Ou será mais sensato ampliar as reais liberdades de cada um de nós (que são fortemente limitadas) para que seja construído um mundo onde fisiologicamente não haja bilionários? Onde ninguém, mesmo sem o obstáculo duma lei, possa ter a vontade de acumular tanta riqueza que nem em mais vidas conseguiria gastar? Porque o problema não são os bilionários: a figura do “mau bilionário” é apenas o novo chamariz progressista. Tentamos ir até a raiz do problema porque os bilionários não nasceram nas árvores, não caíram do céu: limitaram-se a explorar quanto de mal há na nossa sociedade. E há muito mal.

Pessoalmente estou a borrifar-me duma pessoa que tem biliões na conta bancária: não aquece nem arrefece. Irritam-me infinitamente mais as injustiças do nosso sistema: e dado que “injustiças” e “bilionários” muitas vezes (não sempre) vão de mão dada, resolver as “injustiças” teria como agradável efeito secundário limitar o número de bilionários. Este seria o primeiro passo para uma sociedade na qual não haja necessidade de acumular biliões. O segundo passo seria um pouco mais complicado: mudar a nossa visão do mundo, implementar valores que ponham no centro das exigências a solidariedade, a ajuda recíproca, o bem comum e de todos, sem excepções. Os bilionários desapareceriam? Duvido, há sempre uma maçã podre. Mas, no meio de tantas maçãs bonitas, a maçã podre ficaria excluída, inútil, ultrapassada. E acabaria por extinguir-se, sem leis que são sempre um péssimo sinal: porque quando um Estado é obrigado a introduzir limites legais contras um mau-hábito, significa que os valores da sociedade sozinhos já não conseguem impedir o tal acto.

A proposta “popular” dos Democratas é uma das coisas mais estúpidas que alguma vez ouvi ao longo da minha vida. Por isso está a ter sucesso. Mas atenção: é estúpida mas não inocente. “Abolir os bilionários” é algo que já ouvimos no passado, apenas com outras palavras. “Morte ao Rei, morte aos aristocratas, poder ao povo” era o lema dos franceses durante a revolução em 1792; doze anos depois obedeciam a um Imperador. “Morte ao Czar, morte à burguesia, poder ao povo” gritavam os russos em 1918; quatro anos depois obedeciam a Estaline. Agora é a vez de “morte aos bilionários”? A quem teremos que obedecer depois?

 

Ipse dixit.

Fontes: The New York Times, Huffington Post, Hmmdaily, Splinter

6 Replies to ““Morte aos bilionários!””

  1. Relatório do Credit Suisse informa que pela primeira vez na história, a classe 1% mais rica possui mais do que metade da riqueza do mundo, ou U$ 140 trilhões – 50,1% de toda a riqueza do mundo.

    Como os autores do relatório (Credit Suisse ) escrevem, há apenas um grupo que se beneficiou das políticas monetárias pós-crise do Fed: “Nossos cálculos mostram que o primeiro 1% dos detentores de riqueza global iniciou o milênio com 45,5% de toda a riqueza familiar. sobre o mesmo até 2006, caiu para 42,5% dois anos depois. A tendência de queda se inverteu após 2008 e a participação do primeiro percentual foi em um caminho ascendente desde então, passando o nível de 2000 em 2013 e alcançando novos picos todos os anos Depois disso, de acordo com nossas últimas estimativas, o primeiro por cento possui 50,1% de toda a riqueza familiar do mundo “.

    Como o banco então acrescenta laconicamente, “a desigualdade de riqueza global certamente foi alta e aumentou no período pós-crise”. E como o gráfico mostra, em 2017, pela primeira vez, o 1% mais rico agora controla pouco mais da metade, ou 50,1%,(!) da riqueza global.

    Fontes:
    1) Credit Suisse
    http://tinyurl.com/yalawgca

    2) Zero Hedge http://www.zerohedge.com/news/2017-11-14/first-time-ever-richest-1-own-more-50-worlds-wealth

    __________________

    Hummmm…tem algo de muito errado nesta história, não tem?

  2. Não é muito diferente dos relatórios da Oxfam, mais cedo que tarde alguém vai ter que explicar muita coisa.
    Creio que serão governos/políticos(muitos não se vão querer responsabilizar por esse estado de coisas) porque se a tendência continua assim muita gente vai querer respostas, declínio da classe média a muitos remediados e mais pobres.
    E quem pouco tem, pouco tem a perder(quando perde pouco a pouco o que já tem).
    Na Europa isso vai e já está a criar tensões.
    Quanto ao partido democrata não arranjam melhor que isso e o Bernie Sanders é muito “socialista” na verdade é keynesiano – logo e como gostam de rótulos é alguém a por de lado, e não interessa a quem detém o poder, tem má imprensa. Assisti a um debate Sanders vs. Hillary e foi um KO, o homem não é perfeito(ainda bem) mas é do melhor que se arranja (depois houve umas primárias algo estranhas na Califórnia). Mesmo assim muita, mas muita gente estava/está do lado dele e mais estarão se concorrer em 2020.
    Esta Ocasio Cortez é mais uma figurinha estranha que vão buscar(pseudo experts) e não vai resultar. Nada ali é espontâneo 29 anos, sem experiência o tipico produto de marketing politico, apareceu do nada como as visões de Fátima e esse caminho não leva a nada de bom é populismo barato e até divisionista e isso de feminista(que é que interessa?).
    É só rótulos criados e personagens prontas (na vez de aparecer algo novo, com ideias próprias) a etiquetar e meter na secção correspondente.

    N

  3. Esses cretinos da mídia majoritária confundem tudo justamente porque são pagos para confundir as cabeças já ocas da maioria. Mas há coisas que deixam sempre absolutamente claras: qualquer encaminhamento passa necessariamente pela lei, quando a lei é uma situação dúbia, serve quase sempre para prejudicar a maioria, criminalizar inocentes e sempre favorecer quem tem e pode. As instituições democráticas funcionam quando a democracia funciona, quando os cargos institucionais não estão a venda pelo melhor preço. Sei que a mentira é estratégia política e econômica de longuíssima data. Mas assim como a riqueza do mundo vai ficando cada vez mais concentrada, as boas intenções, a seriedade e a solidariedade vão escasseando. Pior que tudo para ajudar a confundir é a polissemia de sentidos atribuída aos conceitos. E a escolha recai na conveniência do dia, e de quem fala/escreve. É como se sentido dos conceitos não tivessem história, não fossem produto de inúmeras interpretações…nada! O resultado disso é um tudo vale, e o critério de veracidade e adequação depende do prestígio que o protagonista ou o veículo do discurso tem para quem ouve, lê, confia, acredita, lhe favorece ou não.

    1. Tal qual
      Retrato melhor é impossível, muito bom.

      O problema é que se deixa de existir distinção entre verdade/mentira/factos/criações e entra-se ma actual pseudo ou neo verdade/mentira uma mistura adequada de ambos, então para que serve a verdade? ou a verdade complexa? (maioria das vezes), não é binária zeros e uns, isso é algo redutor talvez para contos de crianças, ninguém é o mal representado ou o bem é uma mistura bem complexa, em que por vezes é quase impossível discernir as coisas. E tem que se ver tudo por vários ângulos, mesmo o que não nos agrada, e aí tentar compreender.
      Começa nos media e estende-se para o resto.

      abraço

      Nuno

  4. Grande Max,

    Parabéns por mais um texto excelente. Límpido, verdadeiro e cada vez mais raro no tempo em que vivemos agora. Gostei muito.

  5. Mais um enfoque diversionista! O que deveria (mas não será) ser discutido são os processos históricos de acumulação de riqueza, e que envolvem relações de poder as mais diversas, entre governantes e grupos organizados que obtiveram privilégios que agravaram o desequilíbrio social. Desde os patrícios romanos, guildas nórdicas, repúblicas marítimas italicas, enlaces (com o aval da elite que restou do Imperio Ocidental Romano, ou seja, o clero cristao)entre elites viquingues, francas, anglo-saxoes e Gregos (bizantinos) pelo controle da Europa , foram sedimentados os caminhos do atual presente.

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