The Times: o medo da paz

Estranho título aquele escolhido pelo britânico The Times: “Crescem os temores acerca dum acordo de paz de Trump com Putin”.

Se o título é estranho, o resto do artigo é ainda pior.

A Grã-Bretanha teme que o Presidente Trump enfraqueça a Nato ao fechar um acordo de paz com o Presidente Putin […]. Os Ministros do governo estão preocupados que Trump possa ser persuadido a baixar os compromissos militares dos EUA na Europa, comprometendo a defesa dos países da Nato contra a agressão russa. As autoridades também estão preocupadas que Putin possa ter uma vitória de propaganda, cancelando ou deslocando os exercícios militares planeados pela aliança.

Tudo isso é doentio. Talvez interessante do ponto de vista psiquiátrico e sociológico, mas profundamente doentio. Anos atrás, quando os líderes das duas super-potências costumavam reunir-se, o mundo ficava à espera com de que o encontro fosse uma ocasião de distensão, um passo no caminho da paz, com possíveis reduções dos armamentos, acordos bilaterais para resolver contendas locais, a questão do Médio Oriente, etc. Sinais de que “algo” era feito, de que a paz era o centro das atenções e que continuava a ser o principal dos objectivos.

Hoje não é assim: a paz é o maior dos riscos. Os órgãos de comunicação não torcem para que os problemas sejam resolvidos mas para que haja mais armas, mais exercícios militares, mais presença americana na Europa. O objectivo é que a propaganda russa não consiga impor-se.

Pois: a Rússia. O grande inimigo, a cova do Mal. E doutro lado os Estados Unidos: o Bem. Não acaso nosso supremo aliado.

12 minutos

Enquanto dormimos, comemos, fazemos sexo, protegemos os nossos olhos num dia ensolarado, algures uma casa, uma família ou um ser humano explode em mil pedaços. Tranquilos: é o nosso aliado que trabalha. É para o nosso bem. Isso acontece a cada 12 minutos? Calma: é a paz que está a funcionar.

O exército dos EUA lança explosivos com intensidade difícil de entender, uma bomba a cada 12 minutos. Isso é estranho, porque tecnicamente, o Ocidente não está em guerra. Sim, há uns problemas na Síria, mas os ataques acabaram. Nenhuma guerra significa nenhuma bomba lançada, justo? Muito simples. Simples mas errado.

Um exemplo: os militares do Presidente George W. Bush atiraram 70 mil bombas contra cinco Países. Podemos pensar: bom, o simpático Bush estava em guerra contra o terrorismo, no Iraque, no Afeganistão e…. Pois: no Iraque e no Afeganistão e basta. O que perfaz um total de dois Países, não cinco. Quem falta? Faltam Paquistão, Somália e Yemen, Países com os quais os Estados Unidos não estavam em guerra. Mas que receberam a sua dose de explosivo.

Depois houve o simpático Barack Obama, o Presidente bom, tão bom que ganhou o Nobel da Paz. Era o mínimo. Obama atirou as 70 mil bombas de Bush e acrescentou mais 30 mil para chegar ao total de 100 mil bombas em sete Países. Sete, não cinco.

E agora Trump, o cordeiro nas mãos do lobo Putin. O simpático Donald fica na casa das 44.000 bombas. Poucas? Não propriamente: 44 mil apenas no primeiro ano como Presidente. Feitas a contas: durante os oito anos do seu mandato, George W. Bush deixou cair uma média de 24 bombas por dia, o que equivale a 8.750 por ano. Durante o mandato de Obama, as tropas lançaram 34 bombas por dia, ou 12.500 por ano. Durante o primeiro ano do mandato de Trump, os militares lançaram uma média de 121 bombas por dia, o equivalente a um total anual de 44.096 bombas.

Abram as asas ao Donald: é ele o vencedor, não há dúvida. Com Trump no poder, temos 5 bombas por hora, a cada hora de cada dia. Dito de outra forma: uma bomba a cada 12 minutos. O tempo do pequeno almoço: caiu uma bomba. Um rápido duche: outra bomba. E assim até o final do dia. Todos os dias, todo o ano.

Taxa de sucesso? 2%. Doisporcento. A maioria dessas bombas mata pessoas que não são os verdadeiros alvos. Para que um alvo possa ser abatido, 98 inocente têm que morrer. Quem são estes 98 desgraçados? A CIA não faz a mínima ideia. Como escreveu a jornalista Witney Webb em Fevereiro:

É um facto chocante que mais de 80% das pessoas mortas nunca tenham sido identificadas e que os documentos da CIA demonstram que nem sequer sabem quem matam, assim evitam o problema de denunciar as mortes dos civis, pois consideram todos os que estão na zona de bombardeio como combatentes inimigos.

As vítimas não têm nome? Então não existem. E, em qualquer caso, estavam onde não deveriam estar. Os Estados Unidos limitam-se a matar combatentes inimigos. Como sabem que são combatentes inimigos? Porque estavam na área de bombardeio. E como sabem que era uma zona de bombardeio? Porque havia combatentes inimigos. E como sabem que eram combatentes inimigos? Porque estavam na área de bombardeio. Etc. etc.

O que é dito de Trump? Que é estúpido, homofóbico, racista, ignorante. Trump é isso tudo, sabemos. The Times e os outros órgãos de informação ocidentais lembram isso aos leitores, dia após dia, edição após edição. Mas nunca lembram de como Trump descarregue uma bomba a cada 12 minutos. Assim como nunca falam das 70 mil bombas de Bush ou das 100 mil de Obama. Lembram de que a propaganda de Putin é má.

Rupert Murdoch

E agora, The Times apresenta o supremo perigo: a Paz. The Times não teme uma escalada militar na Ucrânia, um confronto armado na Síria, um falso envenenamento na Inglaterra ou uma nova Guerra Fria. O Times não tem medo do apocalipse nuclear, do fim da humanidade, do sofrimento de centenas de milhões de pessoas. Não, The Times teme que os chefes de Estado das duas super-potências nucleares possam conversar, consigam chegar a algum tipo de acordo que possa afastar o perigo de uma catástrofe global, possam abrir canais de comunicação para o futuro.

The Times não é um jornaleco qualquer, é um dos mais conceituados diários do planetas: tem uma efectiva influência sobre a opinião pública. E numa altura como esta, cada vez mais desconectada da lógica e da racionalidade, The Times escolhe continuar a enganar o público: insinua que Putin está a manipular Trump para desestabilizar a Europa, que um acordo de paz será uma vitória de Moscovo. É evidente a mão dos “progressistas” numa operação da pior propaganda: qualquer acordo que possa favorecer a distensão entre os dois Países (e, consequentemente, do planeta) será apresentado como uma derrota do Trump “manipulado”.

Ao The Times e aos seus editores não interessa a paz: é a última das preocupações. E nem interessa a Europa. Pelo contrário: Putin sempre quis uma Europa forte e unida, uma Europa que pudesse ser integrada no sonho da Eurásia, uma União Europeia mais resistente à pressão americana e capaz de expressar maior independência. Eis outro pormenor que The Times nunca lembra aos seus leitores. O que interessa aos editores do The Times é o poder. E o dinheiro.

Atrás do The Times há Rupert Murdoch, o dono. Membro da Ordem da Austrália e da Pontifícia Ordem Equestre de São Gregório Magno; dono de 21st Century Fox, Walt Disney, The Wall Street Journal, The Sun, The Sunday Times, New York Post, canais Fox, National Geographic Channel e muito, muito mais. Ao longo da sua carreira apoiou Margaret Thatcher, John Major, Tony Blair, David Cameron: salta de posições laburistas para conservadoras sem nenhum problema, pois ele não acredita na política, limita-se a utiliza-la.

Finge ser antagonista dos Democratas mas com a eleição de Trump estala a verniz: Murdoch não fica fora da guerra do Deep State americano, os ataques contra o Presidente são rotina e são ferozes. Agora Murdoch está triste porque sabe que a cada 12 minutos alguém lança uma bomba: isso vale dinheiro, muito dinheiro. Mas este alguém já não é um dos amigos de Murdoch: o dinheiro segue outros caminhos. E Murdoch gosta do dinheiro. E do poder. Então que as massas invoquem a guerra, que tenham medo dum Presidente manipulado; que fiquem horrorizadas pela malvadez russa, que torçam para que a cimeira seja um fracasso. A guerra é dinheiro, o dinheiro é poder: que alguém faça o favor de enterrar esta raio de paz.

 

Ipse dixit.

Fontes: The Times, Truth Dig, Consortium News, The Bureau of Investigative Journalism, Change Maker, MPN News

10 Replies to “The Times: o medo da paz”

  1. A guerra sempre foi promovida pelos poderosos e endinheirados. A todos os negociantes de armas interessa sua permanência, guerras declaradas e não declaradas, guerras que necessitam contrabando de armamento, o que as torna mais procuradas e caras. Quando num país de “oportunidades”, cabe aos privados planejar e fabricar as armas bem como a suposta recuperação do estrago (não dá para recuperar quem morreu, ficou mutilado, migrou, o que também não é rentável, portanto tarefa dos Estados), lembremos que os custos são monumentais porque graça a corrupção e fabrica-se o que mais rende e, se ficar absoleto, paciência, se continua fabricando. Já num país de “democracia administrada”, não que os oligarcas russos não trafiquem a vontade, mas o Estado assume o planejamento e as decisões do que vai gastar, dos incentivos em tecnologias de ponta para a produção, e se e onde vai usar. Politicamente o Estado das “oportunidades” precisa gastar, utilizar ao máximo, e vender mais ainda. O outro Estado “administrado”, interessa a paz porque sabe que deve se concentrar na defesa, portanto na qualidade e manutenção dos estoques. Aí entra o comércio da produção e divulgação da “verdade”, e inverte as posições, para atender aos sócios privados do armamento, e alimentar a mentalidade dos humanos com a versão conveniente à manutenção dos negócios. Biiingo!!!
    Olha Max, seja quem for que arquiteta e põe em prática estes dispositivos, judeus, maçons, democratas, republicanos, nobres, militares, um pouco de cada, uma coisa é certa: acertaram na mosca! E nem me fala em “efeitos colaterais” pois isso faz parte da dinâmica: é preciso infundir medo,aterrorizar para manter a “verdade” da segurança. Ou você acha que não existe armamento para acabar exclusivamente com o determinado alvo? Não, o alvo é a população mesmo, dois coelhos com uma só cajadada, digo, bomba.

  2. “Pode-se enganar a todos por algum tempo; Pode-se enganar alguns por todo o tempo; Mas não se pode enganar a todos todo o tempo…”
    Abraham Lincoln

  3. Vamos à boa notícia: Rupert Murdoch tem 87 anos, e se tudo correr como o previsto, dentro em breve teremos de nos desenvencilhar sem a sua companhia.
    A má noticia é que deixa 6 filhos e não sei quantos outros tipos com a mesma visão do mundo que ele, por isso, o The Times e tudo aquilo vai continuar.
    A paz é um período de preparação para a guerra. Como tal, se as guerras não surgirem de forma espontânea terão de ser inventadas.
    No meio disto tudo, a vida é o menos importante.

  4. Prefiro a visão de que a paz é um período de preparação… para evitar a guerra . É mais inteligente e com maior alcance, apesar de infelizmente não ser a corrente dominante .

  5. Opá… Não me apetece escrever. Não que faltem assuntos: há a cimeira de Helsínquia, há a nova lei pró-sionismo de israel, há o aniversário do massacre dos Romanov. Sobretudo há a notícia mais esperada: a Sampdoria contratou Júnior Tavares, lateral esquerdo do São Paulo. Sei que muitos Leitores estavam preocupados com este último aspecto.

    Pelo que: assuntos importantes não faltam. Só que recebi uma notícia que abalou-me profundamente. Uma daquelas coisas que deixam o pessoal de queixo caído. Um meu conhecido (falar de “amigo” seria demais) suicidou-se. Atirou-se debaixo dum comboio, no dia do seu aniversário.

    Fogo… acho que todos temos o direito de viver e de parar de viver: a vida é nossa, a escolha é só nossa. Eu sei: quem tiver fé não pode concordar neste ponto porque encara a vida como um dom de Deus. Para mim não: somos donos da nossa vida e do nosso destino.

    Uma vez recebi do meu avô uma blusa: eu achava aquela blusa um horror, mas adorava o meu avô, então de vez em quando vestia-a para que ele pudesse ver que a prenda tinha sido bem pensada, para dar-lhe prazer. A mim só apetecia pôr um cartaz nas costas com escrito “Não foi eu que escolhi, é prenda do avô”. Mas o meu avô ficava contente e era isso que interessava. O “dom de Deus” faz-me lembrar a blusa do meu avô: temos que carrega-la sempre, que se goste ou não. Não acho correcto. Pelo que: viver ou não viver deve ser uma livre escolha.

    Não estou a empurrar as pessoas para que tirem as suas vidas. Isso não dava jeito: ficaria como autor e único Leitor do blog, o que seria um pouco monótono (embora seja verdade que teria uma taxa de aprovação de 100%). Pelo contrário: a vida é um bicho estranho, curioso, que vale a pena continuar a experimentar também para ver como se desenrasca e para onde vai. Às vezes pode ser um verdadeiro inferno, mas também pode mudar dum minuto para outro, pode pegar caminhos que nunca teríamos imaginado. Porque a noite nunca é tão escura como parece. Afinal depende de nós, só de nós e de mais ninguém.

    Por isso fiquei abalado. O conhecido escondeu as mágoas, não falou, não desabafou. Todos aqui no bairro ficámos abalados, ninguém estava à espera. O não falar, o ficar fechado, alimenta outro bicho, aquele do desespero, aquele do “não há saída”. Há saída, mais do que uma. Suicidar-se é para mim uma opção lícita, mas só depois de ter excluído qualquer outra alternativa. E acho haver quase sempre alternativa. Quase.

    Quem fica faz companhia às dúvidas. Deveria ter entendido algo? Deveria ter puxado mais a conversa? Deveria, talvez, “se”… Dúvidas estúpidas. Os problemas fazem parte da vida de todos, é difícil entender quando se está a aproximar o ponto de roptura. Dos outros e até nosso.

    Bom, pessoal, vou ao velório. Amanhã o blog retoma. Mas antes tenho que dar uma má notícia: Jandrei não vai para a Sampdoria, fica na Chapecoense. Pena, é bom guarda-rede. Raio de vida, não é?

    Abraço para todos!

  6. Lamento a tua perda, quem vai deixa um pouco de si e leva um pouco de nós, quem lhe deu o dom da vida deu-lhe a liberdade de a poder terminar. Quem chega a esse ponto já sofreu muito e atingiu um estado de sensibilidade que não lhe permite continuar neste mundo, não podemos compreender nem podemos condenar, apenas respeitar.

  7. Acho que muita gente já passou por esta situação de vazio e esgotamento total que precede o suicídio, e ainda está por aqui, Max. Porque? Creio que a quebra da solidão é a resposta. De repente, alguém que diz uma palavra adequada e desperta ainda um motivo, ainda um gosto. Ter de fazer alguma coisa que ninguém fará por si, como cuidar de um cão que o toma por dono. Para este você é insubstituível. Provavelmente as estatísticas de suicídios sejam maiores do que sabemos. A solidão é silenciosa e envergonhada.E quanto mais a “comunicação” se faz, mais solitárias, vazias e indiferentes a qualquer coisa vão ficando as pessoas. Grande abraço.

  8. Max, sinto pela perda do seu colega. Imagino que seja um caso de depressão. Essa doença está cada vez mais presente na vida de todos, ouso dizer que tomo mundo tem algum porcentual de depressão, seja pouco ou muito. O mundo está mudando muito rápido e não estamos sendo capazes de acompanhar esta velocidade. Espero que fiques bem. Grande abraço.

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