Vacinas e resistência aos antibióticos

O simpático Bill Gates lança o alarme das páginas do Washington Post, diário sempre pronto a dobrar-se perante os poderes (e melhor ainda se forem democratas):

Bill Gates
diz que o governo dos EUA está a abandonar de preparar a nação e o mundo
inteiro contra a significativa probabilidade de uma pandemia letal. […] Bill e a sua esposa Melinda alertaram repetidamente de que uma pandemia é a maior ameaça imediata à humanidade. Os especialistas dizem que o risco é alto, porque estão a emergir constantemente novos agentes patogénicos e o mundo está tão interconectado.
Quando o Mundo tem que aceitar aconselhamentos médicos dum técnico informático é sinal de que algo não está bem. Mas na nossa sociedade parece coisa normal porque o simpático Bill “é rico”, e o pressuposto é que uma pessoa rica sabe do que fala. A ideia de que Bill e condigna esposa falem deste assunto unicamente por causa dos pesados investimentos no sector das vacinas parece nem tocar o jornalista, que diligentemente relata cada sílaba proferida pelo magnata. Porque o magnata “é rico” e, enquanto tal, sabe.

Podemos pensar: “Olha só este desgraçado de Bill que quer vender mais vacinas e ficar ainda mais rico”. O que seria um pensamento correcto. Mas incompleto. Porque ao anunciar ao Mundo uma pandemia como “a maior ameaça imediata à humanidade”, Bill e Melinda cometem também outro crime: desinformação. De facto, desviam o olhar público de outra ameaça, infinitamente mais grave: a resistência aso antibióticos. 

Não que uma pandemia seja impossível: pelo contrário, é sempre uma possibilidade. Ninguém estava à espera da gripe espanhola em 1918, depois ela surgiu “do nada” e foi um genocídio. Só que, no caso dos antibióticos, estamos na frente dum genocídio anunciado: não pertence apenas ao campo das possibilidades, é uma certeza já agora. E a responsabilidade é unicamente nossa, não do acaso ou dum exótico agente patogénico que decidiu tramar a humanidade. 

Disso deveria falar o simpático Bill, não das suas raio de vacinas. Mas Bill “é rico” e sabe do que fala quando em jogo está a sua conta bancária: o que poderia ganhar ao dizer “pessoal, consomem menos antibióticos”?

Quem fala de antibióticos, e dos péssimos acordos comercias que ameaçam aumentar ainda mais a resistência a estes medicamentos, é um jornalista e escritor que publica nas páginas do inglês The Guardian.

Claro, não tem a mesma eco duma entrevista a Bill nas páginas do Washington Post, mas não deixa de ser interessante e preocupante. George Monbiot parte do  novo acordo comercial entre Estados Unidos e Reino Unido, algo que ameaça exportar os horrores com os quais os animais são criados na indústria alimentícia dos States.

Parece um verdadeiro apocalipse zumbi. Aquelas bactérias que pensamos ter derrotado começaram a marchar de novo e estão a contornar as várias tentativas de derrotá-las. Depois de romper as paredes externas da cidade, elas ficaram perante as nossas últimas linhas de defesa. A resistência aos antibióticos está entre as maiores ameaças à saúde humana.

As infecções que antes eram fáceis de controlar ameaçam as nossas vidas e os médicos alertam que algumas operações de rotina, como as cesarianas, podem um dia tornar-se impossíveis devido ao alto risco de exposição de pacientes a infecções. mortal. Já na União Europeia, 25.000 pessoas por ano são mortas por bactérias resistentes a antibióticos.

No entanto, os últimos antibióticos ainda eficazes, as nossas últimas defesas, são desperdiçadas de maneira selvagem. Os criadores de gado costumam pulveriza-los no ar ou adiciona-los à ração e à água que alimentam gado, porcos ou galinhas: não para tratar doenças, mas para preveni-las.

Na década de 1950, os agricultores descobriram que pequenas quantidades de antibiótico adicionados à ração faz com que os animais cresçam mais rapidamente. O uso de antibióticos como factor de crescimento – geralmente em pequenas doses – é uma fórmula perfeita para gerar resistência às bactérias. No entanto, muitos Países continuam a tolerar essa prática nefasta. A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA pediu às empresas farmacêuticas que se abstivessem voluntariamente de escrever nos rótulos dos antibióticos “ativador de crescimento”. Ao mesmo tempo, aconselha mudar o nome do produto e vendê-lo com “novas indicações terapêuticas”. Cerca de 75% dos antibióticos utilizados ​​nos Estados Unidos são usados ​​para alimentar animais de criação. A cidade está sob cerco e estamos a derrubar as nossas próprias defesas.

Na semana passada, a Alliance to Save Our Antibiotics (“Aliança para Salvar os Nossos Antibióticos”) revelou que nos EUA são utilizados nos animais cerca de cinco vezes mais antibióticos do que no Reino Unido.

Porquê? Porque o modelo a seguir na criação é: stack ‘em high, sell ‘em low (“empilhá-los alto, vendê-los baixos”), então um número absurdo de animais é criado em condições terríveis nas mega-quintas onde os criadores não conseguem acompanhar os ritmos de produção sem o uso de medicamentos em massa. Os animais são desmamados muito jovens e estão tão enfraquecidos e amontoados que são necessários métodos extremos para mantê-los vivos e cria-los. E o impacto desses métodos não se limita aos Estados Unidos: quando a América espirra, o mundo inteiro fica com a sua Salmonela resistente aos antibióticos.

Há uma necessidade urgente de uma proibição global do uso de antibióticos como tratamento em massa do gado e, em última análise, do uso de qualquer antibiótico na pecuária e na agricultura. Embora difícil para a economia das mega-quintas, a vida humana é mais importante que a produção. Mas está a acontecer o oposto. O governo dos EUA espera usar os seus tratados comerciais para derrubar a resistência de outros Países. E o Reino Unido está no topo da lista.

A União Europeia proíbe a importação de carne produzida com as técnicas utilizadas nos EUA: injeções de hormonas para acelerar o crescimento, alimentação de suínos com ractopamina (um medicamento que aumenta o peso, mas pode causar fraturas ósseas e problemas com as funções motoras) e lavagem de carcaças de frango com cloro. Tudo isso significa carne a preço mais baixo e uma produção que depende em grande parte do uso maciço de antibióticos. Na Europa esta carne não entra, porque uma livre concorrência com o modelo dos EUA colocaria os agricultores europeus na frente da escolha entre o modelo dos excessos americanos (incluindo o continuo uso de antibióticos) ou o modelo mais saudável mas com preços fora do mercado (e consequente falência).

No Reino Unido as coisas atingiram um ponto delicado: o Brexit liberta o País dos laços legislativos europeus e Londres está livre de assinar tratados comerciais segundo os seus próprios moldes. Pode ser bom, pode ser mau: depende de quem governar.

O Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), por exemplo, foi rejeitado na Europa, mas agora o Reino Unido pode assina-lo e Monbiot descreve no seu artigo as grandes manobras que agitam os bastidores: desregulamentação do mercado, interesses pessoais, corrupção e pressões das lobbies são o pano de fundo sobre o qual actua uma classe política cuja improvável missão é resistir aos ataques das corporações.

Não é apenas uma batalha comercial: o capitalismo tem como único objectivo o lucro e em nome disso está disposto a atropelar tudo o resto, saúde incluída. Não seria correcto achar que os criadores dos EUA não pensam nos efeitos duma utilização desconsiderada dos antibióticos: provavelmente conhecem o problema, mas a sobrevivência económica num mercado selvagem fala mais alto.  

Mas, explica bem Monbiot, nem podemos simplesmente apontar o dedo:

Quando as pessoas votaram no Brexit, o esforço para recuperar o controle das suas vidas foi genuíno e profundamente sentido. Portanto, não atiramos toda a culpa aos Estados Unidos ou as multinacionais e os seus servos do governo. Quer tenhamos sido a favor ou contra o Brexit, todos devemos pretender que as negociações comerciais sejam feitas responsavelmente ​​perante os cidadãos e o parlamento, e não escondidas por assustadores lobistas. A nossa vida também pode depender disso.

Praticamente, as mesma palavras de Bill Gates. Ou quase…

Ipse dixit.

Fontes: The Washington Post, Monbiot, Save Our Antibiotics (ficheiro Pdf, inglês)

2 Replies to “Vacinas e resistência aos antibióticos”

  1. Olá Max: não esquece que os "ricos" e famosos são automaticamente cultos e bem informados. Além do mais desinteressados em mentir por dinheiro porque já são ricos.(ihihih)Então um "rico" que fala não é qualquer um.
    Quanto ao tema em discussão, lamento…tarde demais. Desde o advento das penicelinas elas foram usadas (e corretamente utilizadas) contra as infecções, salvando montanhas de bichos humanos e não humanos (recordem as guerras). Mas, como tudo que funciona desperta o delírio pelo lucro rápido e imediato, as doses foram demasiadas, liquidando com as defesas naturais, de forma que ninguém mais sobrevive sem antibióticos, nem bichos nem gentes. Surgiu e se alastrou a infecção hospitalar, aquela que tu entras com uma gripezinha no hospital e sais com 4 ou 5 tipos de pestes incontroláveis (razão pela qual eu já não entro). Como foi dito, do jeito que os pobres animais são criados (commodities) o uso dos ditos cujos os mantém de pé até o abate, e mesmo que tu sofras com as infecções e te negues a aumentar os índices no teu organismo, aqui do outro lado do mundo, toda carne ingerida está irremediavelmente contaminada. O mundo teria que recomeçar usando a fitoterapia indígena, capaz de controlar infecções sem acabar com a imunidade. E aí…bom aí já sabemos.

  2. O Bill que trate primeiro de arranjar vacinas que funcionem para imunizar o sistema operativo que ele criou (o janelas (windows))

    EXP001

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