EUA & Reino Unido: espionagem recíproco

GCHQ, espionagem do Reino Unido

Muito se fala nestas últimos anos de espionagem ao mais altos níveis. Numa comunicação pública, o Government Communications Headquarters (GCHQ, a agência governamental inglesa que trata da inteligência) pronunciava-se acerca da acusação feita por uma antigo juiz dos EUA, segundo o qual o GCHQ teria espiado o Presidente Donald Trump por conta da Administração de Barak Obama, em 2016:

As acusações mediáticas do juiz Andrew Napolitano contra o GCHQ, que teria espiado o então Presidente eleito não fazem sentido. São absolutamente ridículas e devem ser ignoradas.

O que é ridícula é a resposta do GCHQ, por três razões.

  • Os serviços secretos existem para praticar também a obra de espionagem. Um serviço secreto sem espionagem poderia limitar-se a ler os diários e pouco mais. E o GCHQ trata mesmo disso: espionagem.
  • Dados históricos demonstram como a prática da espiar os aliados e os relativos cidadãos é prática comum.
  • Existem muitas leis nacionais que impedem que um serviço secreto possa espiar os seus concidadãos: recorrer aos serviços dum outro País é um truque que permite “evitar” tais leis.
NSA, espionagem dos EUA

Um caso “clássico” é aquele ocorrido em 1983, quando dois membros do governo britânico foram
espiados por uma agência do Canada: Margaret Thatcher usou a rede de
vigilância mundial para controlar dois membros do seu gabinete, porque
não acreditava que eles fossem leais. O ex-agente do Canadian Communications Security Establishment, Mike Frost, confirmou que cinco Países (EUA, Canada, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia) contornam as leis nacionais contra a espionagem dos cidadãos pedindo que os outros membros da aliança façam isso.

No caso inglês, um dos ministros era Francis Pym, um conservador moderado que, ironicamente, era o chefe do GCHQ e do MI6. Mas exemplos não faltam ao longo das décadas.

Nos anos ’60, quando o Presidente francês Charles de Gaulle fez causa
comum com o movimento de independência do Quebec, a agências canadiana
SIGINT pediu aos noruegueses, dinamarqueses e suecos para monitorizar as
comunicações entre Paris e o Premier do Quebec, Rene Levesque, e o seu
movimento separatista movimento Parti Quebecois.

No início dos anos ’70, NSA e GCHQ relataram que tinham colaborado com
escutas telefónicas ilegais das comunicações feitas pelo vocalista dos
Beatles John Lennon.

Nos anos ’80, os canadianos foram utilizados pela norte-americana NSA
para realizar a vigilância ilegal de cidadãos norte-americanos que
acreditava-se trabalhassem para os soviéticos. A agência canadiana espionou o telefone do carro do Embaixador dos
Estados Unidos em Ottawa, com os oficiais da NSA plenamente conscientes
disso.

CSCI, espionagem do Canada

Em 1998, foi revelado por Margaret Newsham (um ex-empreiteiro da Lockheed para a Agência de Segurança Nacional) que NSA e GCHQ estivam envolvidos na vigilância (sem regular mandado judicial) das chamadas telefónicas internacionais feitas pelo senador dos EUA Strom Thurmond.

No final dos anos ’90, dispositivos de espionagem da NSA foram descobertos no router do correio electrónico do Parlamento Europeu em Bruxelas. Entre os e-mails interceptados havia também aqueles dos deputados britânicos.

Em 2007, o Departamento da Defesa, que supervisiona a NSA, confirmou que
a mesma NSA tinah descarregado as conversas da Princesa Diana (até 1997, data da sua morte), mas insistiu em dizer que isso era apenas parte duma
operação de segurança com outros objetivos. Na verdade, a lei inglesa proibiu que o GCHQ monitorizasse Diana, pelo que o trabalho foi delegado aos agentes da norte-americana NSA.

Em 2015, o então Primeiro-ministro da Nova Zelândia, John Key, foi vigiado pelo Australian Signals Directorate (ASD) em Canberra (Austrália). As transcrições não foram
transmitidas apenas ao governo australiano, mas também à NSA (EUA) e ao Government Communications Security Bureau (GCSB) da Nova Zelândia. A espionagem australiana visava estabelecer qual a real posição nas negociações com a Pharmac (a agência governamental para a compra de medicamentos) e no acordo comercial Trans Pacific Partnership (TPP). Em Dezembro de 2016, Key renunciou abruptamente ao cargo por “razões pessoais”. E sempre no âmbito do TTP,  a ASD vigiou o escritório de advocacia de Chicago Mayer Brown, em nome da NSA, que em 2013 representou o governo da Indonésia nas negociações comerciais com os Estados Unidos.

ASIO, espionagem da Austrália

O trabalho legal das operações de vigilância é descrito numa directiva de 2005, intitulado “Recolha, elaboração e difusão de comunicações aliadas”, revelado por Edward Snowden.
A directiva afirma:

O acordo (UKUSA 1946) passou a incluir o entendimento comum de que ambos os governos não supervisionem cidadãos e pessoas da contraparte. No entanto, se for de interesse de toda a nação, reserva-se o direito de realizar acções unilaterais COMINT (inteligência de comunicações) contra cidadãos e pessoas da contraparte. […] Em algumas circunstâncias, pode ser aconselhável e autorizado supervisionar unilateralmente pessoas e sistemas de comunicação de segundas partes, se no melhor interesse dos Estados Unidos e se necessário para a segurança nacional dos Estados Unidos. […] Há circunstâncias em que vigiar pessoas e sistemas de comunicação de segundas partes, com o pleno conhecimento e cooperação duma ou mais segundas parte, é permitido se no melhor interesse de ambas as nações. Esta vigilância deve corresponder às orientações estabelecidas na presente directiva.

Numa reunião das agências, na sede do GCHQ (22-23 de Abril de 2008), foi acordado que as cinco agências iriam partilhar os dados interceptados pelos outros, até mesmo os dados dos seus próprios cidadãos. O Departamento Australiano de Defesa Eletrônica (DSD), agora ASD, mostrou a menor preocupação com o seu interesse em compartilhamento de dados. Os australianos até pareciam bem pouco preocupados com os dados privados, estando dispostos a compartilha-los até com agências não de inteligência, como por exemplo a Polícia Federal Australiana.

O acordo funcionou já em 2009, no summit  G20 de Londres. Os membros das delegações de Canadá, EUA e Austrália tiveram telefones, e-mail e celulares interceptados pelo CSEC (Communications Security Establishment Canada, a agência governamental de criptografia), que realizou as operações em solo inglês. Um documento classificado Top Secret Strap 1 indica que as interceptações foram conduzidas pelo canadiano CSEC em nome do inglês GCHQ:

para garantir que a inteligência relevante de HMG (Sua Majestade) desse ao governo os resultados desejados com a sua presidência do G20, alcançando os convidados no momento certo e na forma que permita a plena utilização.

GCSB, espionagem da Nova Zelândia

Um truque legal semelhante foi utilizado em ocasião dos G8 e G20 de Toronto em 2010, onde as operações foram conduzidas pela NSA na Embaixada dos EUA em Ottawa, tendo como alvos os membros da delegação canadiana, inglesa e australiana. Ao mesmo tempo, a canadiana CSEC, a partir da sua sede em Leitrim, perto de Ottawa, interceptou as comunicações dos delegados norte-americanos, britânicos e australianos. Tecnicamente, nenhuma lei foi violada.

Mas o acordo original é bem mais antigo: conhecido antes como BRUSA, assinado pelas agências de espionagem de EUA e Reino Unido em 1943, com o tempo foi ampliado até passar a ter o nome de UKUSA, que comprende também Canada, Austrália e Nova Zelândia. 

Voltando ao assunto Trump: pouco importa se o GCHQ desmente publicamente a ideia de estar envolvida numa espionagem política. Aliás, paradoxalmente isso faz pensar que tenha sido apanhado em flagrante e que tente afastar as suspeitas, pois existem um histórico que bem demonstra a prática de mútua espionagem e um acordo entre EUA e Reino Unido no sentido da cooperação no mesmo sentido. É o mesmo acordo que irá explorar o Presidente Trump.

Ipse dixit.

Relacionados: A Grande Orelha

Fontes: Edward Snowden – Top Secret Strap 1 Comint, BBC News: Thathcer spied on ministers, History Commons, The Guardian (1 ,2 e 3), CBC News, The New York Times, Strategic Culture

2 Replies to “EUA & Reino Unido: espionagem recíproco”

  1. "Eu nunca disse que os serviços secretos (S.S. para encurtar) não deveriam existir. São parte integrante da estrutura dum qualquer Estado, parece-me óbvio, e não desde hoje. Pensar num País, um qualquer País, sem S.S. é uma romântica ingenuidade.
    Todavia aqui surge o problema dos tais "moldes", porque os S.S. devem sim recolher dados, operar de forma "encoberta", espreitar lá onde outros não podem/conseguem, antecipar (sobretudo isso), tudo em prol da nossa segurança. Mas sem esquecer que fazem parte dum Estado regido (em teoria…) por regras democráticas.
    Os S.S. devem poder ir além destas regras? Não, nunca. Uma organização que opere fora dos limites da legalidade é uma organização ilegal e, como tal, não pode ser parte do Estado. Devem ser as leis a definir os moldes nos quais os S.S. podem operar. É lógico que, em nome da segurança do Estado (e de todos os cidadãos), podem existir situações nas quais os S.S. devem ser autorizados a praticar acções que podem quebrar determinados valores (por exemplo: a privacidade), mas tudo deve ser sempre:
    previsto pelas leis (excepções, encarregados, modalidades, duração, etc.)
    expressamente autorizado por parte dum órgão de controle
    Portanto, os S.S. não seguem as pessoas quebrando as leis: fazem isso porque as leis preveem situações nas quais a privacidade dum cidadão deve ser ultrapassada, sempre em favor do bem comum.
    Todavia há um pormenor: no sistema judicial ocidental (pelo menos na maior parte dos casos), parte-se da ideia de que um indivíduo é inocente até prova contrária (julgamento em tribunal). Portanto: a privacidade dele deve ser "quebrada" só se existirem fortes indícios da sua culpa. E isso deve valer também no caso da vigilância executada por parte dos S.S.."
    Isso tu dizias, Max,ano passado aqui no blog, e eu concordo totalmente.
    Só que na prática, como as democracias estão viciadas e esgotadas, o mesmo acontece com tudo, inclusive os serviços secretos. Privacidade e liberdade não existem e o desrespeito às pessoas e às nações extrapolou todo e qualquer limite em qualquer lugar
    Então que se faz? Ou se desaparece no mundo, e isso implica em esquecer nome, qualquer identidade, qualquer relação com qualquer instituição, qualquer uso de tecnologia de comunicação e ou informação ou entretenimento, e sumir no mar ou no mato de preferência, para sobreviver como qualquer outro animal dito selvagem, ou vivemos como vivemos. E, como aprendemos a detestar a solidão, como nos ensinaram a abrir a boca e despejar nossa angústia, continuaremos a ser objetos de leitura disponíveis até morrermos.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: