Sábado? Um post um pouco diferente.
Um dos melhores e mais conhecidos cantores e autores em Italia foi Fabrizio De André (1940-1999), ao qual sou particularmente ligado porque nasceu em Genova e foi autor de muitas letras no dialecto da minha cidade.
Pergunta: música é apenas passatempo? Não, como é óbvio. A música é muito mais do que isso: é cultura, espelho dos tempos, inspiração, reflexão. E este artigo quer dizer exactamente isso.
A canção aqui apresentada é uma das mais profundas de De André e fez correr muita tinta quando saiu porque precisa de análise. Trata-se duma fotografia da nossa sociedade, escrita no começo dos anos ’90 mas ainda terrivelmente actual. Parte da queda do Muro de Berlim e o fim dos regimes pseudo-comunistas. É uma fotografia crua e complexa, que não deixa muito espaço para a esperança. Mas é sempre a nossa história e a nossa sociedade.
Vou apresenta-la também porque a música no geral sempre teve um papel importante na minha vida e porque, como já afirmado, notas e letras podem ser ocasião de reflexão. Neste caso, as letras são de De André enquanto a música é do amigo dele Mauro Pagani (Premiata Forneria Marconi). Além disso, se as letras são densas de referências à condição Italiana (e por isso necessita duma explicação), é também verdade que o discurso é muito mais amplo, abrangendo toda a nossa sociedade.
O título é um jogo de palavras: o Domingo de Ramos em italiano é Domenica delle Palme, mas muda-se uma letra e torna-se Domenica delle Salme (“dos cadáveres”). A canção é contida no álbum Le Nuvole, que conquistou logo o primeiro lugar nas classificações dos discos mais vendidos em Italia e ganhou vários reconhecimentos.
Antes é apresentada a versão em Italiano, a seguir a versão traduzida e por último a análise do texto.
o
poeta da Baggina
cama
conseguiu
escapar de sua barba
de combate
não morreram
imediatamente
aos últimos semáforos
os
traficantes de sabão
a barriga para o leste
noventa
noventa e um
o
macaco do Quarto Reich
cima do muro
cu
a
pirâmide de
Quéops
naquele dia de
festa
comunista
No
domingo dos cadáveres
tiros
as ruas
cadáveres
“tua culpa”
cabeleireiros
da pátria
de Sebo
que era o
primeiro
ao amanhecer
e um burro
amputação da perna
o
ministro dos
trovões
trombones
mãos e as mãos sobre as bolas
cidade
onde na altura do coquetel
derramamento de sangue
meu ilustre primo
De Andrade
cidadãos livres
famosa cidade
civil
canhão no pátio
No
domingo dos cadáveres
aleijado
ideal
envelhecer
Os
últimos peregrinos
e olharam-nos
cantar
sobre trampolins
e de joelhos
a bandoleira disfarçados de Pinóquio
centralistas
e para o dinheiro
vozes potentes
línguas
treinadas a
bater o tambor
tomar no cu”
No
domingo dos
cadáveres
saudade
flautas
de Utopia
cadáveres
muitos
sinais
A garrafa de água de cevada tem um duplo sentido: nos anos ’80 um conhecido slogan publicitava “Milano para ser bebida”, o que se tinha tornado quase o mote do partido que geria a cidade, o Partido Socialista. Ao mesmo tempo, durante o Inverno, Milano é muitas vezes envolvida no nevoeiro, que faz lembrar a água de cevada.
o
poeta da Baggina
cama
Um facto de crónica reporta que na época um grupo de idiotas atirou fogo contra um sem abrigo. O interessante aqui é a definição de “poeta da Baggina”: De André escreveu estas palavras em 1991 e só no ano seguinte eclodiu o escândalo do Pio Albergo Trivulzio (uma instituição de caridade), no bairro da Baggina, que deu origem ao fenómeno Mani Pulite (“Mãos Limpas”), terramoto de corrupção que em 1992 irá destruir quase por completo a classe política italiana (em primeiro lugar o Partido Socialista). Mas em 1991 ninguém ainda suspeitava algo parecido.
conseguiu
escapar de sua barba
de combate
Versos com muitas referências. De André tinha-se preocupado muito com as Brigadas Vermelhas no final dos anos ’60 e a Universidade de Trento (em particular na faculdade de sociologia: de facto, o meu pai estava a tirar a licenciatura naqueles anos e naquela mesma universidade, tendo conhecido muitos dos futuros líderes terroristas ou extra-parlamentares) era na altura um dos principais fogos da contestação juvenil. Aí surgiram muitos dos líderes “revolucionários” dos anos ’70.
“Barba” em italiano é também sinónimo de “seca, aborrecimento”: nos anos ’70 o Partido Comunista Italiano encontrava-se parado nas posições dogmáticas de Moscovo. O “pisco-de-peito-ruivo
de combate” era quem, mesmo que longe da revolta armada de matriz terrorista, tentava ser uma alternativa ao estático Comunismo institucionalizado.
não morreram
imediatamente
aos últimos semáforos
A Polónia tinha sido um dos primeiros Países a sair do controle soviético. Não poucos Polacos vieram para Italia, acabando muitas vezes nos cruzamentos a limpar os vidros dos carros. Entretanto, de Milano, nos fins de semana as famílias punham-se em viagem para alcançar as praias da Liguria: as “prostitutas do regime” são os carros.
traficantes de sabão
a barriga para o leste
Conta a lenda que os Nazistas utilizavam os corpos dos hebreus para fazer sabão que era vendido no Leste Europeu: neste caso, a expressão indica os capitalistas que assaltaram os Países do ex-bloco soviético, criando instabilidade política e explorando os trabalhadores. A Alemanha do Oeste (os netos dos Nazistas) foi aquela que mais negócios conseguiu na altura.
noventa
noventa e um
Quem se tornava comunista em 1990, já não era tal em 1991, após a queda da URSS.
macaco do Quarto Reich
cima do muro
As marionetas do novo imperialismo (o “macaco do Quarto Reich”) festejavam a queda do Muro de Berlim: mas em 1991 já todos conheciam os defeitos e as vergonhas do Capitalismo.
O macaco do Quarto Reich lembra também uma poesia de D.H. Lawrence, na qual um macaco (que simboliza quem quer alcançar o topo da sociedade) consegue subir a escada toda mas assim mostra não ter testículos.
pirâmide de
Quéops
naquele dia de
festa
comunista
O mesmo De André explicou que a pirâmide aqui simboliza um monumento à inutilidade. Também a forma piramidal faz lembrar a estrutura hierárquica, com a vitória do livre mercado, construída com grandes sacrifícios. O contrário da utopia comunista, teoricamene igualitária.
domingo dos cadáveres
tiros
as ruas
cadáveres
“tua culpa”
cabeleireiros
da pátria
de Sebo
que era o
primeiro
ao amanhecer
e um burro
amputação da perna
Um carcereiro pergunta ao outro se a execução pode ser feita no dia seguinte, de manhã cedo, de
forma que não dê nas vistas (Bigodes de Sebo representa aqui o principal político do PCI da altura). Todavia, o Poder escolhe a atitude contrária, tornando tudo uma “festa” do Estado e uma vitória das instituições.
O executado é Renato Curcio, principal teórico das Brigadas Vermelhas (em prisão desde 1974). Em 1991, o então Presidente da República propõe ao Parlamento o perdão de Curcio, mas o governo, com o apoio do Partido Comunista, recusa.
De André já nos trabalhos anteriores tinha condenado a violência (tendo sido por isso duramente contestado pela Esquerda extra-parlamentar nos espectáculos ao vivo durante os anos ’70): fundamentalmente ele sempre foi um anárquico e sublinha o comportamento “anómalo” do PCI que, desta forma, rasga (eis a amputação da perna) o “álbum de família” (a família da Esquerda) do qual Curcio faz parte. É importante realçar como nos primeiros anos do terrorismo em Italia, o PCI tinha mantido uma atitude muito ambígua em relação ao fenómeno: os sindicatos de Esquerda, por exemplo, olhavam com simpatia para o terrorismo e foram precisos anos antes de ter uma condenação definitiva do PCI contra este tipo de violência.
ministro dos
trovões
trombones
mãos e as mãos sobre as bolas
O ministro da confusão e das mudanças repentinas decide fechar duma vez por todas com o Comunismo e invoca a democracia. Mas as mãos estão numa posição de superstição: a escolha pode ser arriscada e bem sabe que não é a democracia o verdadeiro objectivo.
cidade
onde na altura do coquetel
derramamento de sangue
Bastante claro. De André deseja uma cidade (sociedade) pacífica e limpa, mas não uma paz forçada e inerte.
meu ilustre primo
De Andrade
cidadãos livres
famosa cidade
civil
canhão no pátio
De André definiu “primo” dele De Andrade por causa da semelhança dos apelidos e das ideias. O poeta brasileiro José Oswald de Andrade Souza defendia que a única maneira de ser livres numa cidade violenta é aquela de ter um canhão do pátio.
Disse De André:
Entre os muitos poetas sul-americanos que conheço, Oswald de Andrade é um dos meus favoritos, provavelmente pela atitude comportamental bem como poética, totalmente libertária, pelo seu anti-conformismo formal que o torna algo mais e algo menos, e em qualquer caso diferente dum poeta no sentido clássico. Depois é dotado dum humor cáustico, difícil de encontrar em outros poetas do início do século XX.
No
domingo dos cadáveresninguém ficou
aleijadotodos seguiam o caixãodo falecido
idealno domingo dos cadáveresouvia-se cantar
quanto é linda a juventudenão queremos mais
envelhecer
É o mito do eterno bem-estar na sociedade dos consumos. “Quanto é linda a juventude” é uma citação dum soneto de Lorenzo de’ Medici (séc. XV): “Como é bela a juventude, que no entanto foge! Quem deseja ser feliz que o seja, pois do amanhã não há certeza”. Todavia, refere-se também ao hino do Partido Nacional Fascista (década dos anos ’20): “Juventude”.
últimos peregrinos
e olharam-nos
cantar
Esta é uma crítica contra uma parte dos cantantes como o mesmo De André: com o tempo desligaram-se da realidade e começaram um percurso vazio feito de auto-referências.
sobre trampolins
e de joelhos
a bandoleira disfarçados de Pinóquio
centralistas
e para o dinheiro
vozes potentes
línguas
treinadas a
bater o tambor
tomar no cu”
Outros, mais simplesmente, venderam-se. Pelo dinheiro, tocando para todos ou por nada (pela Amazónia: U2, Sting, etc.). Apesar de terem os instrumentos para cantar, criticar a realidade e propor algo novo, abdicaram do papel de crítica contra o Poder.
domingo dos
cadáveres
saudade
flautas
de Utopia
cadáveres
muitos
sinais
A Utopia (uma das muitas possíveis) morreu e sobraram apenas alguns nostálgicos. Um dia aparentemente como todos os outros; no entanto, nas estradas há um silêncio assustador, forçado, privo de ideias e ideais.
De André gravou também um dos seus poucos vídeos oficiais, realizado pro Gabriele Salvatores.
Bom fim de semana para todos.
Ipse dixit.
"A Utopia (uma das muitas possíveis) morreu e sobraram apenas alguns nostálgicos. Um dia aparentemente como todos os outros; no entanto, nas estradas há um silêncio assustador, forçado, privo de ideias e ideais."
Uma das últimas utopias que vi desenvolver-se e morrer no meu país surgiu da crença ferrenha de uma governante de trazer a público todas as maracutaias envolvendo quem quer que fosse, para que "os malfeitos", segundo elas fossem punidos e houvesse um pouco de ética na política e na sociedade em geral.
Resultado:se na Itália" terramoto de corrupção que em 1992 irá destruir quase por completo a classe política italiana (em primeiro lugar o Partido Socialista)." , no Brasil, terremoto de mais e mais mentiras e intrigas, falsidades e escárnio, capitaneadas pela rede Globo, jornal O Globo, Veja, ou seja organizações Roberto Marinho (já morto, mas os 3 filhos continuam vivos, com o pormenor que não têm a inteligência do pai) e por uma chusma de juízes, corregedores, desembargadores, promotores, delegados e fiscais (que dizem que aumentar 7 reais na bolsa família é eleitoreiro, mas pagar 70 mil mensais para um juiz é preservar a dignidade do cargo), levando à total impossibilidade de exercer a governança.(inclusive com a paralisação do parlamento, impedido de votar o orçamento para o próximo ano). Eis o estado da arte para uma governante que sonhou um país menos indecente.Teus compatriotas exclamariam: "É MORTA!!"
A letra está acima do melhor. Depois bem explicada e contextualizada pelo sr. Genovês.
Maria a utopia pode acabar, o que não acredito acho algo inerente ao ser humano.
"É MORTA!!" sim mas o rebanho nem sabe o que virá a seguir e é bem normal. Mas quando acordarem é tarde. E depois vamos a ver quem era ou não utópico, não só aí, mas a nível global e vão chorar pela sua condição.
E espero estar bem errado.
Mas num mundo fast food/fast dumb thinking…sei não.
É isto que a classe ou elite sempre dominou os outros paradoxalmente com estes meios, nunca existiu tanta manipulação de tudo e todos até à privacidade é algo em perigo….
Nuno
Grato por relembrar a obra de Fabrizio De André, poeta-cantor que descobri há cerca de 4 anos fascinando-me os poemas sobre o proletariado italiano, o seu dia a dia, a realidade com as suas injustiças, a forma bela como cantou as Prostitutas; foi sem dúvida um grande compositor.
Infelizmente é praticamente desconhecido, no país sombrio e bafiento, como é Portugal.
Outra grande música de Fabrizio De André: