Poder e obediência – Parte II

A chave para entender os resultados da experiência de Milgram tem um nome: heteronomia.

Palavra de origem grega, a heteronomia indica uma condição na qual um sujeito (que é individual mas pode também ser colectivo) actua recebendo “de fora dele” as regras e as razões da sua acção; portanto atribui a culpa, a responsabilidade, a vergonha etc. a outros, não a si mesmo.

Ficção científica? Manipulações mentais da CIA? Nada disso: um comportamento perfeitamente humano, fruto dum condicionamento social muito antigo, que quase faz parte do nosso DNA.

Na experiência de Milgram, é presente uma autoridade reconhecida, neste caso o experimentador (aquele que coordena a experiência), ao qual os sujeitos (os “professores”, que subministram os choques) atribuem a culpa e as consequências das suas acções. Os sujeitos, portanto, exploram a presença da autoridade para abdicar temporariamente das suas normas éticas, das consciências, e actuam porque não se consideram responsáveis, uma vez que limitam-se a obedecer às instruções recebidas de uma autoridade.

Naquele momento, os sujeitos tornam-se partes duma máquina. Desta forma, Milgram demonstra que uma pessoa “comum” pode começar a fazer coisas terríveis se sente que as ordens que guiam as suas acções vêm de uma autoridade superior e legítima. Isso explica muito bem vários horrores que podemos encontrar em episódios bélicos até recentes: pais de famílias, pessoas “de bem”, que durante particulares condições tornam-se autênticos monstros.

Pensamos numa guerra civil, numas imagens de massacres transmitidas pelos telejornais perante as quais cada um de nós exclama “Mas como é possível? Como podem fazer isso?”. Podem, e agora temos a explicação, pelo menos uma delas.

Há nos seres humanos a tendência para reconhecer, em situações específicas, líderes aos quais a obediência é devida, e Milgram explica este mecanismo psicológico argumentando que em parte é devido à composição social da nossa civilização, cuja dinâmica complexas necessita de estruturas hierárquicas.

Todos os seres humanos, a partir da tenra idade, são educados para reconhecer e obedecer às autoridades. Na ordem: família, escola e ambiente de trabalho. Este hábito é tão introjectado ao ponto que a obediência fica anexada à própria consciência.

Além disso, não podemos esquecer que o homem é um animal (alguns mais do que outros…), nomeadamente um mamífero, e a zoologia sugere uma pista importante.

Os mamíferos, de facto, podem ser divididos em dois grupos: aqueles que levam uma vida maioritariamente solitária, marcando o seu território, caçando e comendo sozinhos, e aqueles que vivem em manadas, em grupos sociais complexos dentro dos quais são desenvolvidas hierarquias. O Homem pertence ao segundo grupo e característica de cada “manada” é a presença dum ou mais líderes, cujas decisões são seguidas pelos restantes membros do grupo sem hesitação.

Não é um acaso o facto do Homem ter conseguido domesticar apenas os mamíferos que pertencem à segunda categoria, uma vez que apenas substituindo o papel de líder natural o Homen pode submeter os animais à sua vontade, dando ordem que são realizados de forma pacífica.

É raro ver um coelho rebelar-se e atacar um homem; já é um pouco mais complicado convencer um tigre a entrar na casota dele.

O Homem pertence mais ao segundo grupo (as “manadas”) do que ao primeiro (os “solitários”); também cria hierarquias onde reconhece líderes que têm autoridade. Mais uma vez: família, escola, trabalho, aos quais podemos acrescentar exército, sistema político, religião.

Em que medida muda a atitude do indivíduo a segunda que ele actue de forma independente ou sob o impulso de uma autoridade reconhecida? O experimento Milgram demonstra qual o resultado no segundo caso. Quando as ordens recebidas duma autoridade entrarem em conflicto com a ética, a grande maioria das pessoas escolhe a obediência. O grande jogo do poder sempre foi e ainda é inserir-se neste mecanismo para reivindicar a legitimidade na tomada de decisões, assumindo também a função da consciência colectiva dos submetidos.

Como afirma Lord Varys, personagem da saga literária Crónicas do Gelo e do Fogo:

O poder está onde um homem acredita este residir. Nada mais, nada menos.

Breve nota final: para mais informações, esqueçam Wikipédia versão portuguesa. A avaliação crítica à experiência de Milgram apresenta conclusões que são o exacto contrário daquelas que o mesmo Milgram individuou e que foram confirmadas por sucessivas experiências (apenas dois exemplos mais recentes: em 2006 em A Virtual Reprise of the Stanley Milgram Obedience Experiments, em 2009 em How Violent Are You?).

Por razões desconhecidas, Wikipedia apoia unicamente as críticas que alguns sectores científicos norte-americanos dirigiram contra a experiência de Milgram, esquecendo assim as conclusões às quais chegaram (e ainda chegam) a maioria dos especialistas. 

Ipse dixit.

Relacionado: Poder e obediência – Parte I

Fonte: Tra Cielo e Terra

2 Replies to “Poder e obediência – Parte II”

  1. É um bocado assustador perceber que provavelmente a grande maioria da população obedece cegamente a qualquer ordem que lhe seja dada, por uma "autoridade", quer esta inflija dano, ou não, noutro ser humano ou animal. Acho que independentemente do estatuto de quem dá a ordem, devemos primeiro pensar nas consequências dessa ordem.
    Mas, assim como o Max referiu, podemos ver isso a acontecer nos militares, polícias, médicos, cientistas, até num cidadão comum a quem o governo disse para vigiar o vizinho, ter cuidado com ele porque pode ser algum "terrorista". A grande maioria deles obedece a ordens que põem em causa a vida doutros seres humanos, e executam-nas sem qualquer remorso. Pelo menos é isso que a maioria demonstra. A continuar assim onde vamos parar?

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