Falta um dia para o Grande Dia. O Dia dos Dias. O início da Copa do Mundo 2014.
No canal online de Russian Television, um artigo do jornalista brasileiro Pepe Escobar.
Interessante, sobretudo para quem está “de fora” e tenta entender como é vivido o evento.
Aqui vai a tradução integral do artigo.
É febre muito alta em São Paulo. Os holandeses estão a relaxar-se em Ipanema, em frente à praia, os italianos ficam na Riviera pessoal a 100 quilómetros de Rio. Os alemães estão num bunker irregular na costa, onde os brasileiros foram “descobertos” em 1500. Os ingleses visitaram uma favela na Segunda-feira. O país inteiro está lentamente a vestir-se de verde e ouro. Uma festa de delírio está prestes a começar.
No entanto, em todo o planeta, a velha questão permanece: será que os brasileiros conseguirão fazer – literalmente – fogo e chamas para esta Copa do Mundo? Esse espectáculo vale mais de 11 biliões de Dólares? Na verdade, é uma não-questão, feita por aqueles que não sabem como o futebol está ligado à psique brasileira.
Saindo dum SUV à prova de balas para um moderno restaurante japonês, onde foi recebida como Madonna, a minha querida amiga Barbara Garcia – muito provavelmente a melhor crítica social brasileira – ataca à jugular: “Haverá protestos até o primeiro golo de Neymar. Todos, sem distinção, vão ficar fossilizados na Selecção, depois, mesmo que tivessem que ganhar a Copa, os protestos vão continuar”.
Até agora o mundo inteiro sabe que tudo tem sido um glorioso caos – uma novela ainda não acabada repleta de golpes de cena: desde a corrupção nos mais altos níveis do racket da Fifa até a Polícia paramilitar que “pacifica” as favelas estilo bombardeamento de Slaviansk em Kiev; desde a Adidas (duplamente ligada à FIFA) até a Sony, que pontificam subornos para os membros obscuros dos governos locais, dos quais os maiores aproveitadores são as grandes empresas de construção, as maiores lobby brasileiras […].
A espantosa complexidade de como extrair um brilhante carnaval dum incompressível pesadelo logístico é tipicamente brasileira, como um daqueles temas sem sentido posto em cena pelas escolas de samba com quantidades industriais de brilho durante o Carnaval no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a questão legítima não é afastada: porque dar prioridade a esta “experiência” (ou loucura) consumidora de desporto que encaixa perfeitamente na FIFA, em vez de investimentos estáveis e de longo prazo na saúde, educação e transportes público?
Caminhar como um croata
Conduzi um experimento fantástico na passada Quinta-feira: decidi ir desde a beira do velho e decrépito centro de São Paulo até o branco deslumbrante e gloriosamente inacabado estádio Itaquerão – onde a Copa vai começar nesta Quinta-feira – falando apenas inglês, fingindo ser um adepto estrangeiro. Má ideia. Esse foi o dia em que os trabalhadores do metro decidiram iniciar uma greve “por tempo indeterminado”.
Todo os que encontrei foram muito disponíveis, mesmo que apenas com a linguagem gestual. No metro, então, andei muito e até um infernal terminal aberto de autocarros, só para ter a informação de que iria precisar de muita sorte para (quase) chegar ao estádio Itaquerão… e voltar a andar. Isto é o que um croata ou uma das inúmeras tropas inglesas devem esperar esta semana, quando a selecção deles encontrará o Uruguai. Um táxi é impensável: pensam cobrar pelo menos 100 Dólares por viagem de só de ida na altura dos jogos.
Na estação de autocarros conheci um personagem extraordinária: Aden – um controlador – que, interrompido a cada poucos segundos por hordas de pessoas perplexas à espera do autocarro deles, deu-me um curso de uma hora sobre a (não) mobilidade urbana de São Paulo, incluindo exemplos de negligência e corrupção (temporariamente passei ao português para manter a conversa quente).
Finalmente, voltei a caminhar até o centro para tomar o único meio certificado que me levasse ao Itaquerao: o Cup Express Train (os rapazes do Metro não foram capazes de explicar que os funcionários dos comboios não estavam em greve. ..). Bem, posso sempre pensar num Blatter – Sepp, o chefe dos chefes da FIFA, conhecido como “o suíço pegajoso” – que a Força Aérea Brasileira autorizou a quebrar segundo o critério dele, no helicóptero da empresa, o bloco do tráfego aéreo estabelecido durante os jogos da Copa do Mundo.
São Paulo, a Babilónia do Hemisfério Sul, é uma distopía estilo Balde Runner atravessada por 20 milhões de pessoas, portanto uma greve que prejudica pelo menos 4 milhões e meio é um grande problema. Tudo para migalhas. Os 10 mil trabalhadores do metro quer um aumento salarial de 16%, o governo está a oferecer 8 e não mais. Este 8% nem sequer cobre a inflação real. O Brasil poderá estar num nível de emprego total neste momento – europeus e americanos matariam para uma tal condição – mas agora o crescimento do PIB estagna e a inflação aumenta, bem como a agitação social.
Esta greve – ainda em vigor, embora declarada “ilegal” – faz parte de uma onda de movimentos sociais que ocorrem em todo o Brasil. A noite antes da minha viagem para o Itaquerão, 4.000 pessoas filiadas ao Movimento dos Sem-Abrigo estavam a protestar perto do estádio. Este é o Brasil, em poucas palavras: a nova maravilha arquitectónica que podia sentar-se na Alemanha, de mãos dadas com um exército de pessoas desabrigadas. Se as coisas podem piorar, piorarão. As equipas de manutenção da LATAM – a maior companhia aérea da América do Sul – ameaçam uma greve de 48 horas para os próximos dias, o que atingirá Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru. É fácil fazer as contas.
No dia seguinte, em São Paulo, o caos era ainda mais espectacular: o metro ainda em greve (a estação do metro de Itaquerão foi mesmo fechada), chuva torrencial, um recorde de 239 km de filas de carros no período da manhã (no dia anterior só eram 209) e um jogo amigável entre Brasil e Sérvia na hora de ponta. Uma das razões pelas quais o ninho de cobras conhecido como a federação de futebol brasileiro recusou utilizar o estádio do Morumbi para a Copa do Mundo é que este não poderia acomodar mais de 65.000 pessoas, como pretendido pela Fifa. Cerca de 70.000 assistiram ao Brasil – Sérvia … apenas 61.000 poderão assistir ao jogo de abertura na Quinta-feira.
O metro está activo em São Paulo desde 1974 – e percorre apenas 75 km; na Cidade do México, em comparação, são 226. Simplificando, enquanto a população de São Paulo crescia e a urbanização enlouquecia, o investimento nos transportes de massa diminuiu. Os trabalhadores do metro estão a usar a greve como um último recurso, tentaram negociar com o governo do estado de São Paulo durante meses, avisam já há algum tempo que, mais cedo ou mais tarde, todo o sistema entrará em colapso.
Ganhem… e tudo será perdoado?Não significaria nada sem o swing brasileiro. Normal para uma nação que explora o seu efeito simpatia muito melhor do que outros. Ultimamente, no entanto, o cinismo está transformando todo o swing em rap gangsta.
De acordo com uma recente pesquisa, não mais do que 31% dos executivos das maiores empresas do Brasil admite que a Fifa mostra os benefícios a mais ou menos todos os telespectadores e não ao adepto médio, que, no entanto, paga igualmente para os estádios, os (patéticos e inadequados) aeroportos e as “melhorias” para a (não) mobilidade urbano.
E a imagem do Brasil aos olhos dos visitantes estrangeiros? 98% dos executivos entrevistados acreditam que o país nunca esteve pronto para sediar a Copa do Mundo. Não é de admirar que consideram Jerome Valcke, o segundo no comando da Fifa, como o principal actor no drama, ainda mais importante do que a presidenta Dilma Rousseff. Outra pesquisa mostra que 65% dos jovens brasileiros não acreditam em benefícios tangíveis para o país.
Assim, um ano após aquelas manifestações, precipitadas exactamente com a greve da mobilidade dos trabalhadores, que tinham origem em São Paulo, o que mudou? Não muito: poderia ouvir as mesma palavras de Aden dito por agente federal, estadual ou municipal. A sétima maior economia do mundo permanece num preguiçoso 85 º lugar para o desenvolvimento humano. A Copa do Mundo não tem nada a ver com o dias suaves da bossa nova e o lendário Maracanã, envolto num nostálgico preto e branco. A Fifa irá ganhar um bom dinheiro dos racket industriais, enquanto a presidente Rousseff continuará a afirmar que os blocos de investimento público – aeroportos, transporte (não) urbanos – foram feitos “para a nação” e não para a Fifa. Tudo vai ser avaliado cuidadosamente após o circo da Fifa ter abandonado a cidade.
Obviamente há sinais de esporádica melhoria – como o holandês Philip Veldhuis que lidera o Favela Street Projecta no Rio, trazendo o futebol de rua para lugares onde as crianças com um baixo nível de auto-estima vivem ao lado dos traficantes de drogas, num ambiente que transborda de armas, podem chamá-la uma Copa do Mundo alternativa.
A percepção, em qualquer caso, é a realidade. Na semana passada, uma outra pesquisa do Pew Research Center revelou que 72% dos brasileiros acreditam que os serviços e a economia não melhoraram desde 2013.
Este pesadelo de relações públicas vai destruir a imagem suave e sexy do Brasil, com rios de tinta vermelha (e cartões vermelhos). Mas não é tudo. O movimento tropicalista dos anos 60 ainda está vivo, duma certa forma; no final os brasileiros tendem a desenrascar-se na maneira caótica deles e a festa que se segue é de perder a cabeça. O Brasil é como um adoçado Império do Caos – sem as armas pesadas do Império.
Além disso, historicamente, a memória no Brasil é curta, assim que a final será alcançada e ganha (de preferência contra Messi & Co.), tudo será perdoado; caso contrário, o mundo vai ter que apertar os cintos, porque todo o inferno (tropical) irá explodir.
Ipse dixit.
Fonte: RT
Olá Max: adoro o Pepe Escobar, arguto jornalista independente em ação, embora vivendo em Paris e Hong Kong, brasileiro que conhece os seus conterrâneos como poucos. Faz alguns dias escrevi comentando um post teu, dizendo que tudo estava nas mãos do Felipão, coisa surreal, mas o Brasil e nós brasileiros somos mesmo surreais, considerei que na minha opinião, não fora a campanha mediática contra, acrescento, não havia brasileiro que não gostasse ver sediada aqui uma copa do mundo. Só quem nunca viu o triunfo delirante numa tarde de Maracanã poderia afirmar o contrário, só quem nem imagina o que seja o rufar dos tambores no compasso de milhares de passistas de todas as cores e idades em Nilópolis, preparando o desfile da sua escola de samba no suor de fevereiro, supõe que os brasileiros não desejem a copa do mundo no seu quintal. Podemos ser carentes de tudo, mas não de futebol e carnaval, é a nossa alma…e o Pepe sabe disso. E achei ótimo teres encontrado este artigo e divulgares para além dos leitores do Asia Times. Abraços
Alguns reparos. A Questão das Unidades de Pacificação (UPPs) é uma ação do governo do Rio, que tem uma situação diferente de todas as outras cidades do Brasil, pois é cercada por seus morros. A geografia tira a invisibilidade e aproxima os subúrbios. Os protestos são embalados pelos abusos dos policiais, arcaicos com uma visão ainda da ditadura e muitos envolvidos com milícias, que são grupos que tocam o terror, conquistando territórios para cobrar serviços assim como os traficantes fazem, gerando essa reação. O mapa das UPPs sugere realmente um controle desse perímetro urbano para proteger o cartão postal e classe media e alta, mas toca numa questão complexa de retomada de um espaço que surgiu justamente pela falta da presença do Estado.
Quanto a Copa e pós Copa. O Brasil foi campeão em 2002, sendo nesse ano a eleição do Lula. De lá para cá o Brasil perdeu, sendo eliminado antes da final ou semifinal e ,mesmo com imprensa contra e supervalorizando processo do "mensalão", que deu nós jurídicos preocupantes em prol de um exemplo para a nação, não houve troca do partido que está no governo federal. Inclusive São Paulo é governada a mais de 20 anos pelo PSDB (lembrando que o Brasil tem quase o tamanho da Europa sem a Rússia) e a questão do Morumbi foi justamente uma picuinha com o presidenciável governador Serra que torce para o Palmeiras ( adversário do São Paulo, dono do Estádio) para provocar o atraso e caos nessa época por supostos benefícios políticos, coisa os protestos de junho embaralharam. O metrô ficou com obras paradas durante dois anos e retomado ano passado não para Copa e sim para serem inauguradas novas estações durante as eleições. Com todos os erros, vejo que o país percebe que durante esse mês será em parte o centro do mundo, um protagonismo raro que ultrapassa problemas internos e os protestos e reivindicações mantém o arco teso, pois a memoria curta do brasileiro é sentimental e pós Copa, quanto começar o horário eleitoral obrigatório ( uma hora em todos os canais abertos no pior termo que propaganda política pode ter, não sei se há isso em Portugal) os olhos se voltaram para a eleição e a Copa não importará, a não ser que ocorra uma tragédia por conta da organização, crime organizado ou repressão policial. Em todo caso, na capital paulista há uma segurança que muito não se via e ontem os bares boêmios da Vila Madalena se tornaram uma Babel com as ruas lotadas. Para a maioria será um respiro para lembrarmos nosso caráter alegre e acolhedor para as batalhas do resto do ano e próximo que será de ajuste.