O Código de Hammurabi |
Bom, meus Senhores: estamos certos de que a Antiguidade fosse imunes aos nossos males?
O dinheiro, os juros, o ouro…não, claro que não, sabemos disso. Mas até a que ponto os mesmos males de hoje atingiam os tempos antigos? Em qual medida? Eram mesmo os “bons tempos idos”? Ou será que certas coisas afinal nem pioraram tanto como podemos imaginar?
Começa hoje um novo artigo, daqueles aborrecidos, que fazem adormecer grandes e pequeninos. Vou tentar sintetizar, pois o material é muito, mas nada de ilusões: sempre aborrecido é.
As escavações arqueológicas de Sir Leonard Wooley (1920) trouxeram à tona a existência dum antigo sistema de transacções e pagamentos entre comerciantes baseado em tábuas de argila. Isso é importante, porque não podemos esquecer, entre outros, o que encontramos no antigo código de leis de Hammurabi (século 3 a.C. ).
Hammurabi era o sexto rei de Babilónia, a zona do actual Iraque, e era um fulano esperto também: unificou o território da Mesopotâmia, até então divido em duas partes; estabeleceu Babilónia como capital; começou a pôr ordem no Estado e na religião; e, sobretudo, definiu um Código, um conjunto de leis no âmbito penal e civil, importante porque muito abrangente (contrariamente a outros exemplo da mesma altura).
O que interessa aqui é o Artigo 7 º do Código, onde encontramos a proibição para os comerciantes “não autorizados” a criar tábuas de argila e pô-las em circulação. Como vimos, as tábuas de argila faziam parte do sistema de transacções e pagamentos (uma espécie de cheques da altura): mas o que significa “mercantes não autorizados”?
Vamos ver. Em ocasião das grandes feiras dos comerciantes da região, existia um sistema de pagamento que era projectado para gerar um enorme volume de negócio com um deslocamento mínimo de moedas e de objectos preciosos. Era um sistema de segurança: as pessoas não eram obrigadas a transportar objectos de valor (havia sempre o risco de assaltos, roubos, etc.): havia um “banco da feira” que emitia as tábuas de argila sob pedido. Estas, portanto, funcionavam como promessas de pagamento.
Exemplo: o nobre Max via na feira um lindo cão, um pouco atrasado mentalmente, de nome Leonardo. Em vez que paga-lo em ouro ou pedras preciosas (ou até em moedas), o nobre Max ia ao banco da feira e dizia “Homem do banco, quero uma tábua de argila como promessa de pagamento para o comerciante que vende o cão Leo”. O banco emitia a tábua no valor pedido, o nobre Max entregava a tábua ao comerciante e ficava com o Leo, o cão atrasado. Depois, claro, o nobre Max tinha que pagar com um valor real, ouro, moedas, etc., mas isso era feito com calma, após a feira.
Coisa ainda mais importante: o sistema das tábuas era válido também nas trocas entre os comerciantes (fornecedores, retalhistas), onde os montantes eram muito mais elevados. E o sistema vigorava apenas durante o período da feira ou pouco depois desta acabar: na prática, após a feira as dívidas eram pagas e as tábuas perdiam valor, não podendo ser reutilizadas, pois o sistema era rigidamente controlado).
E porque era controlado? Porque os mercantes reconheciam ao banco da feira o direito da emissão das tábuas e pagavam para aceder a este sistema de pagamento. Pagavam o quê? Uma comissão, uma percentagem: um juro.
Este é a primeira vez na história que aparece (de forma documentada) o conceito de juro em favor de quem emite um sistema de pagamento. E os mercantes aceitavam isso. Porquê? Porque desta forma podiam utilizar as tábuas de argila e, como vimos, evitar de transportar bens preciosos, com todos os perigos que isso implicava. Mas havia outra razão, ainda mais importante: as tábuas eram utilizadas por todos, portanto ter o direito de vender ou comprar com tábuas significava poder entrar no “jogo” da feira. Era um privilegio.
E era mesmo: porque os comerciantes compravam e vendiam e, no final da feira, eram feitas as contas. Dum lado as tábuas que representavam as dívidas do comerciante, do outro as que constituíam os créditos. Os valores das tábuas activas e daquelas passivas anulavam-se e só o que sobrava era pago com precisos, que portanto representavam uma percentagem mínima dos bens negociados.
Este é um sistema que nunca mais foi abandonado. Entre 1456 e 1459, um banco de Genova recebeu do estrangeiro 160.000 Lire (algo enorme na altura) em cartas de crédito, algo que o banco teria que pagar. Mas como pagou? 92,5 % deste montante foi pago com deslocamentos internos nas contas correntes (isso é: nas contas do credores era depositada outra promessa de pagamento que o banco de Genova detinha e que tinha sido emitida por outro banco no âmbito de outro negócio), só o restante 7,5% foi pago em dinheiro.
Um “cheque” de argila babilónico |
Na época da argila em Babilónia, este sistema funcionava exactamente da mesma forma, com as
tábuas que funcionavam como os modernos cheques, sem necessidade de mexer em bens preciosos ou até em moedas.
Agora, tudo isso tinha consequências. Os homens do banco da feira (mas também o círculo dos comerciantes mais ricos que aderiam ao sistema) tornaram-se tão poderosos que o rei-sacerdote viu-se obrigado a conceder-lhes um lugar no Palácio, como guardiões dos tesouros do Templo.
Simples imaginar o “controle remoto” que esta elite de comerciantes tinha na produção e distribuição de armas, ou de bens básicos: afinal, tudo passava pelas mãos deles. O seu poder era equiparável ao do governante.
Não só. Mas este grupo tinha o interesse para que os reinos que caíam sob a sua influência transformassem o seu sistema monetário num baseado em prata e ouro.
Stop! Como “prata e ouro”? Não teria feito sentido um sistema baseado na tábuas de argilas? Afinal era com isso que trabalhavam e prosperavam em Babilónia.
Sim, verdade. Mas pensamos nisso: o sistema das tábuas enriquecia e os mercantes (e sobretudo o banco da feira) da Mesopotâmia não queriam ver os outros tornar-se mais ricos. Queriam, pelo contrário, que o sistema para enriquecer ficasse nas mãos deles, isso enquanto fora de Babilónia continuava-se a utilizar as trocas de ouro e prata que, paradoxalmente, era um instrumento lento e incómodo: algo que mais facilmente provocava instabilidade económica.
Obviamente, o conhecimento das tábuas de argila não era o verdadeiro problema: o segredo estava no juro que o banco recebia em troca da criação da tábua. O juro era 100% lucro, que aumentava consoante o aumento das transacções, inclusive a transacções de metais preciosos. O ideal para os mercantes da Mesopotâmia era um sistema onde as tábuas de argila deles fossem aceite internacionalmente, enquanto no estrangeiro a base do comércio eram o outro e a prata, mas onde eram também aceites as tábuas de argila criadas em Babilónia.
E foi mesmo isso que aconteceu.
A adopção deste sistema baseado no ouro e na prata forçou os governantes de todo o mundo numa corrida para obter metais preciosos: no sexto século a.C. é evidente a preocupação com que Xenofonte apela ao governo de Atenas para comprar 10 mil escravos, a serem utilizados nas minas de Laureion, onde, no entanto, parece que a prata já tinha começado a exaurir-se.
As inúmeras tábuas de argila que foram encontrados em Atenas e relativas aos anos seguintes, mostram que a exportação de prata para o Oriente tinha esvaziado as cidades-estados da Grécia de dinheiro (que na altura era feito com metais preciosos); mas as cidades estavam cheias da argila criada pelos banqueiros para os seus pagamentos.
Dúvida: mas algo parecido poderia acontecer nos nossos dias?
A resposta é simples: não, de certeza. E a melhor prova é o facto de ninguém utilizar argila para os pagamentos.
Ipse dixit.
Fontes: na última parte
Muito bom, gostei muito, mas não se esqueça de escrever sobre as punições de quem não seguia o código .
O problema no passado complicar-se-ia mais se as pessoas que maioritariamente beneficiavam desse sistema de "barro" tivessem uma ideologia asquerosa, em que "discretamente" se considerassem uma raça superior aos restantes concidadãos, e únicos dignos de existir. Considerando as restantes pessoas, seres desprezíveis que deveriam ser escravizados e degenerados, ou mesmo destruídos, utilizando assim o seu discreto poder nos seus propósitos obscuros.
Um sistema tão antigo e que funciona tão bem. Muito interessante, que pena que isto não se ensine nas escolas…