O que é a homossexualidade? – Parte II

Até agora foi-se falando da homossexualidade masculina. Mas a feminina?

Aqui as coisas complicam-se, pois as sociedades antigas (ocidentais e boa parte das asiáticas) eram fortemente patriarcais. Às mulheres era reservado um papel de segundo plano, mesmo quando o assunto era o relacionamento homossexual.

No mundo grego é lembrado o papel de Safo, da ilha de Lesbo (da qual a definição de “relacionamento lésbico”), mas esta representa a típica excepção que confirma a regra, ao ponto de não existir outros explícitas referências (acho existir apenas uma breve citação de Ovídio acerca disso, mas nada mais).

Isso porque, mais uma vez, a homossexualidade nas antigas culturas ocidentais não é comparável com a homossexualidade moderna. Não era sinónimo de “liberdade”, bem pelo contrário: em Roma, a sodomia, por exemplo, era entendida como acto que reforçava a virilidade masculina, um sinónimo de poder.

Não por acaso, o papel passivo num relacionamento homossexual era visto como uma renuncia da virilidade e, pro isso, vergonhoso, em particular se era um cidadão romano a desenvolve-lo. Como afirmava Séneca (e já estamos no I século d.C., na época imperial) a desejo de ter um relacionamento homossexual passivo era “um crime para quem nasce livre, uma necessidade para o escravo e um dever para o liberto” (o liberto era um escravo libertado que, todavia, continuava a viver na casa do ex-dono, tendo algumas obrigações ou económica sou morais com ele).

Nas outras culturas antigas

Depois há o discurso ligado às outras culturas, como lembrado por uns Leitores.

Este é um assunto desprovido de qualquer fundamento, pela simples razão que a nossa bagagem cultural e o conjunto de valores derivam directamente do mundo clássico ocidental e, em medida muito mais limitada (tendo sido “filtrada”), do Oriente Médio.

A antropofagia (o canibalismo), por exemplo, foi documentada em várias comunidades como os Anasazi (América do Norte), os Wari (Brasil), os aborígenes australianos, os Melanésios (os mesmos que aceitavam a homossexualidade), Madi,  Barambu, e Zande (África) e ainda hoje é praticada pelos Agori, na Índia. Em resumo: em quase todos os continentes (todos, se considerarmos a antropofagia europeia pré-histórica) houve ou ainda há antropofagia.

É uma prática não natural? Pelo contrário, não faltam exemplos na natureza: as abelhas praticam o canibalismo, tal como algumas aranhas e alguns mamíferos. E, em condições muito particulares (como na conhecida queda do avião nas Andes, nos anos ’70), foi praticada por ocidentais também, sem alguma consequência, sinal de que o nosso corpo está predisposto para receber a carne dos nossos similares.

É muito provável, quase certo, que a antropofagia fosse praticada em época pré-históricas: não como simples “moda” ou “tradição”, mas como necessidade, algumas vezes de valor também simbólico.

Porque hoje no Ocidente não há comunidades que reclamam o direito e o prazer de comer um bom prato de bíceps com batatas fritas (lembramos: há também exemplos na Natureza desta prática, embora sem batatas)? Nem seria preciso matar ninguém, poderiam ser utilizados os cadáveres (é o que fazem os Agori na Índia). O que há de “anti-natural” no canibalismo?

Mais: significaria libertar o espaço actualmente ocupados pelos cemitérios (que poderiam ser
convertidos em hortas produtivas), representaria uma fonte alternativa de proteínas (com consequente poupança de inocentes animais e ajuda naqueles Países onde a fome é um problema mortal) e diminuiria o impacto humano no meio ambiente.

A razão é que a nossa cultura exclui categoricamente (e desde os tempos antigos) a possibilidade de comer um outro ser humano, coisa que não acontece (ou aconteceu) com outras culturas. Não há nenhuma razão “natural” que exclua o canibalismo dos cadáveres: pelo contrário, seria a maximização dos recursos e, como já afirmado, uma ajuda fundamental no caso das comunidades afectadas por carestias (que matam milhares, talvez milhões de indivíduos).

Mas se o canibalismo é um exemplo banal (e que contém um de conceito), seria possível trazer exemplos ligados à pedofilia, aceite em outras culturas. E raízes históricas, antropológicas, “naturais” ou exóticas para justificar uma tal prática não faltam. Não por acaso, o Movimento Gay dos Estados Unidos ao longo de alguns tempos aceitou o movimento pró-pedofilia nas suas fileiras: estes são os riscos de visões históricas distorcidas e extremistas.

Mas a cultura ocidental é o nosso ponto de referência e desta temos que falar quando o desejo for enfrentar o problema da homossexualidade moderna. Qualquer referência aos costumes de povos que moram em perdidas florestas do Zimbabwe é perfeitamente descontextualizada, empírica e não honesta.

Se o desejo for resolver os problemas da homossexualidade, aqui e hoje, temos que olhar para a nossa cultura, não para aquelas dos outros.

Desde o Cristianismo

A última parte do Império Romano viu a implementação do Cristianismo. Afirmar que o Cristianismo subverteu a sexualidade é um exagero: já na Antiga Grécia não faltavam pensadores violentamente anti-homossexuais e o mesmo acontecia em Roma, pois a prática homossexual estava bem longe de ser “normal” ou “naturalmente aceite”. Em caso de dúvidas, não seria mal uma leitura paralela de Séneca e de escritores cristãos da época Baixa do Império: as convergência são mais do que muitas.

O que os cristãos fizeram nem foi tornar a homossexualidade um crime, pois, como vimos, este já era em determinadas condições. Mas a anti-homossexualidade tornou-se um valor, sob forma de pecado, e um dos mais importantes.

Ao longo de toda a Idade Média, a presença da homossexualidade torna-se obrigatoriamente “flutuante”, o que é lógico considerada também a severidade das penas infligidas (penas civis e religiosas). Em 1407, em Venezia, houve um processo contra 35 sodomitas, mas é muito complicado definir que tipo de homossexualidade fosse esta. 

Algo muda no Renascimento: todavia, neste caso era reservada aos mais ricos e tinha um forte elemento estético (homossexualidade estética): pode pensar-se à produção de Miguelângelo como exemplo no âmbito artístico.

De certeza havia a prostituição homossexual, como testemunhado por uma carta de Maquiavel de 1514. Mas, mais uma vez, estamos bem longe do conceito de homossexualidade moderna: a homossexualidade da altura previa um relacionamento sexual entre um adulto e um rapaz de 14-18 anos, algo que faz lembrar a homossexualidade pedagógica da Antiga Grécia. Aliás, a homossexualidade era utilizada como fonte de rendimento (neste caso temos uma carta de Miguelângelo, sempre do ano 1514, que fala disso).

O Iluminismo e os primeiros movimentos

Para encontrar relatos de homossexualidade não ligada à prostituição é preciso esperar a chegada do Iluminismo, que aboliu (1791) os assim chamados “crimes imaginários”, entre os quais havia a sodomia.

O sucessivo Código Napoleónico reforçou esta ideia e, de facto, abriu as portas para uma homossexualidade já não limitada à prostituição e escondida. Isso em linha teórica, pois a realidade ainda chocava com os princípios religiosos, muito fortes na altura.

No final de 1800 o assunto chega ao parlamento alemão com a acção do Wissenschaftlich-humanitäres Komitee (Comité cientifico-humanitário) de Magnus Hirschfeld (que era…exacto: hebraico), cuja finalidade era promover uma campanha em favor dos direitos dos homossexuais. E foi mesmo Hirschfeld que inventou o termo “transexual”.

Os resultados em termos legislativos foram escassos (também porque pouco anos depois chegou o Nazismo…), mas o sentido da acção não apenas ficou como também encorajou análogas experiências em outros Países.

Portanto, uma vez acabada a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente encontrava-se pronto para discutir da problemática homossexual de forma séria e construtiva.

Mas disso, juntamente com outros aspectos, será o assunto da terceira e última parte do artigo.

Ipse dixit.

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