O sonho hegemónico

Calma. Vamos reflectir um segundo. Se calhar dois.
Um País qualquer: Portugal por exemplo.

O novo Orçamento de Estado 2013 prevê mais austeridade. Tudo bem.
O problema é que o velho Orçamento 2012 previa austeridade também e falhou os objectivos.
É como pôr a mão em cima do fogo: queima? Sim, queima. Então que faço? Volto a pôr a mão em cima do fogo.
Problema: ou sou masoquista ou simplesmente demente.
Mas há uma terceira hipótese: quero queimar a mão.
Esquisito, não é?
Pois.

Lembramos: a austeridade não é uma escolha de Portugal, é uma pretensão do Fundo Monetário Internacional. Pessoas preparada, que conhecem o ABC e também o D da economia. Possível que pessoas assim não percebam que a austeridade gera outra austeridade? Possível que não consigam observar os nefastos efeitos dum primeiro ano de recessão? Possível que não entendam que o País gera agora menos riqueza e que, consequentemente, a Dívida Pública ao 4,5% do PIB é um resultado ainda mais distante? Porque se a Dívida descer mas o PIB também, nunca será alcançada a meta. É uma questão matemática.

Possível que estes licenciados, economistas, comentadores, especialistas de orçamentos internacionais não consigam tudo isso?
Não, não é possível.

Então somos obrigados a considerar uma hipótese: admitir que a austeridade conseguiu alcançar os resultados pretendidos. Queimar a mão.

Mas quais podem ser estes resultados?
Em primeiro lugar podemos pensar nas privatizações. Faz sentido. O Estado não tem dinheiro, é só vender o património. Tudo bem.
Mas para fazer isso não seria preciso agravar a austeridade. Alguém do governo poderia dizer: “Meus amigos, apesar das recentes medidas, o País fica pobre, muito pobre, e são precisas medidas de venda adicionais para encaixar uns trocos”.
Na óptica doentia do governo e do FMI isso faria sentido.

Mas atenção: não é apenas isso que se passa. Além da austeridade, há outro efeito sempre presente mas do qual nunca se fala: a descredibilização da classe política. Que não é novidade, mas que nestas alturas atinge o máximo.

Em Portugal, a classe política fica debaixo do fogo porque pede sacrifícios (muitos) aos cidadãos mas parece incapaz de cortar na “gordura do Estado”. O que é esta “gordura”? É um conjunto de instituições, associações, fundações estabelecidas ao longo das décadas, a maior parte das quais têm como utilidade representar um reservatório de votos, úteis nas eleições. Assume-se um fulano do qual ninguém de facto precisa, com um bom ordenado: o fulano, na altura das eleições, retribuirá com um voto ao partido. Não é surpresa, é assim que as coisas funcionam.

O problema nasce na altura em que um governo, um qualquer, tenha que “cortar” nestas gorduras: isso significa perder votos. Também o actual governo, liderado pelo simpático Pedro Com o Seu Coelho, afirma “Que se lixem as eleições” mas fica com o pezinho atrás na altura em que seria lógico fechar estas fontes de votos. E fica com o pezinho atrás também quando o assunto for limitar ou eliminar mesmo as mordomias, regalias, mais valias e privilégios da classe política.

Uma vista de olhos fora do País: o que se passa lá fora, no resto da União Europeia (isso é, nos Países da Zona Euro em crise)? Quase o mesmo. “Quase” porque poucos alcançaram o estatuto de “falido” tal como Portugal. Mas em Espanha o caminho é o mesmo. Em Italia também.

Vamos tentar uma operação atrevida em Portugal: vamos pensar que afinal haja outras realidades também.
Agora, vamos considerar o conjunto destas realidades: há uma série de governos que estão em dificuldades porque, sendo a austeridade o novo Santo Graal, têm a complicada tarefa de conjugar os sacrifícios dos cidadãos, os votos dos partidos e os privilégios da elite política.

Falei de “governos” seria mais apropriado falar em “classe política”. Em Portugal, por exemplo, o Partido Socialista grita e injuria contra o governo, mas na altura de poder fazer cair Pedro e o Seu Coelho, pára, olha de lado, observa as pontas dos pés. Porque sabe que uma vez no poder seria obrigado a seguir um rumo não igual mas muito, muito parecido. Os únicos que avançam com iniciativas para a queda do executivo são aqueles partidos que nunca ganhariam as eleições, nem que concorressem sozinhos (Partido Comunista e Bloco de Esquerda).

A austeridade, actualmente, consegue alguns importantes objectivos:

  1. reduz, de facto, o “peso” do Estado com as privatizações, os cortes nos serviços, nos ordenados, nas pensões, a venda do património, etc.
  2. aumenta o mal estar económico do País, dado que a austeridade gera só e unicamente pobreza (quem afirmar o contrário ou mente de forma descarada ou não é terrestre), confirmando a falsa tese segundo a qual é toda culpa da Dívida Pública e dos governos que atiraram pela janela fora comboios de dinheiro.
  3. enerva o cidadão com uma classe política empenhada nos jogos de poder do
    costume mas incapaz de defender os interesses dos cidadãos.

Do primeiro ponto nem vale a pena falar. Do segundo já foi falado abundantemente. Mas o terceiro é o que interessa hoje.

Quem seguir o blog sabe (e provavelmente partilha) o desgosto pela actual classe política, não apenas portuguesa. Mas uma coisa é o desgostos em relação aso políticos, outra coisa é recusar conceitos como Democracia, Estado.
Já fala-se em Portugal da possibilidade dum “governo do presidente”. Um governo de técnicos.
Meus amigos: o que é um “governo do presidente”? É um governo de pessoas não eleitas, nomeadas pelo presidente da república, o Grande Adormecido.

Não eleitas. Isso significa pessoas não escolhidas pelo povo. Já agora os políticos são o que são, afastados da realidade e com uma implícita autorização para fazer o que lhes apetecer com o mecanismo da democracia representativa. Mas um governo de não eleitos é algo que vai mais longe.

É como falar de Mario Monti, o actual Primeiro Ministro italiano, homem da Coca-Cola e da Goldman Sachs, que nunca foi eleito e que também foi indigitado pelo presidente da república.
É como falar da Comissão Europeia, único real centro decisional da União
Europeia e formada por pessoas que ninguém alguma vez elegeu.

Qual efeito terão as contas públicas na próxima Primavera?
O PIB estará em queda, o desemprego sempre em aumento, as famílias cada vez mais pobres: a incapacidade do governo estará cada mais uma à mostra e os políticos serão a representação de pessoas presas de forma indissolúvel aos jogos de poder.
Todas coisas verdadeiras, que fique claro: mas porque um FMI deveria apostar nisso? Qual o possível resultado?

O possível resultado é nada mais do que o antigo sonho hegemónico europeísta: não um conjunto de Estados soberanos, mas um único governo de “sábios” em Bruxelas. O que não foi possível com a aprovação (falhada) da Constituição Europeia de 2005, será possível em breve com a crise.

Único problema: deve acontecer tudo com uma certa pressa, pois o Euro está cada vez pior. E sem Cavalo de Tróia, a hegemonia europeísta arrisca ser coisa para poucos. Ou não ser mesmo.

Ipse dixit.

6 Replies to “O sonho hegemónico”

  1. olá Max: "enerva o cidadão com uma classe política empenhada nos jogos de poder do costume mas incapaz de defender os interesses dos cidadãos." E os caras de Bruxelas pensam…e pensam muito bem, a partir das experiências eleitorais recentes em países da América Latina (Venezuela, Equador, Bolívia e, parcialmente, Argentina, Uruguai, e até Brasil)de como governantes populistas (chamados por eles de ditadores) conseguem reverter toda esta situação que descreves acontecer em Portugal e similares. Então, sabiamente, conduzem a opinião pública a desacreditar na política democrática, para aceitarem como alternativa viável uma espécie de democracia tecnocrática, mesmo que de fato seja totalitarismo tecnocrático. Abraços

  2. @ Anónimo:

    Mas aquele é um livro! A ideia é boa. E gostaria, sim senhor. Uma espécie de programa, ponto de encontro de opiniões, plataforma para o começo dum debate maior. Sem dúvida, gostaria.

    Mas escolhi começar aos poucos. O discurso é complexo, encara temas acerca dos quais as pessoas não estão interessadas. Ou melhor: acham não estarem interessadas (o que é bem diferente!). Por isso, pequenas doses semanais, na esperança de que no futuro (não muito longe) seja possível algo mais.
    Vou guardar o link como ponto de referimento.

    E obrigado!

    @ Maria:

    Por aquilo que consigo ver a partir daqui, a América do Sul é uma espécie de laboratório, com algumas soluções que no curto prazo podem gerar algo importante.

    É exactamente isso que em Bruxelas ninguém quer.

    A politica estrangeira de Washington (com os vários Brezinski) identificou na Eurásia o objectivo principal e isso deixou margem de manobra aos Países da América Latina. A esperança é que nos EUA continuem a pensar assim, com a Eurásia, e que deixem crescer os vários Uruguai, Bolívia, Equador, Brasil.

    Pode ser que depois seja demasiado tarde para inverter as tendências. Também o resto do mundo poderia beneficiar do efeito.

    Grande abraçoooo!

  3. É isto que o Nigel Farage anda a dizer há muito tempo, indo ainda mais longe ao afirmar que a panhdilha de Bruxelas devia ser toda corrida.

    Eu vou ainda mais longe que o Nigel Farage: Corrida a pontapé ou coisa pior ainda.

    Krowler

  4. Ó Krowler, sabia que agora, até o Nigel Farage já começa a dizer que já acredita em conspirações?…

  5. Maria… eu não incluiria o Brasil nesse grupo não… enquanto Argentina, Equandor, Venezuela… realmente viraram a mesa, o Brasil apenas fez um jogo de cadeiras… trocaram para o lado… tira-se Clube de Paris, tira-se Rotschild Bank… coloca-se Itaú… coloca-se Bradesco… e ambos suportados por Santander e HSBC… que, em suma, acaba aqui na Europa… como antes!

    Não sei exatamente o que tramam essas ditaduras Belgas, Italianas… mas é triste… muito triste… ver uma sociedade, que, após milhares de anos de humanidade, havia alcançado um elevado nível de dignidade, igualdade e segurança… deixar tudo cair… à troco de… NADA!

Obrigado por participar na discussão!

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