A OCDE e o trabalho

A liberalização económica cria trabalho?
Falamos, é claro, duma extrema liberalização.

É um facto conhecido que quando dois fenómenos ocorrem simultaneamente há uma relação causal entre elas. Parece ser este o caso dum artigo publicado recentemente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) no qual são relatados os benefícios da liberalização em termos de trabalho.

Não é um mero acaso que este relatório apareça agora, mesmo na altura em que o debate acerca das privatizações está ao rubro: é outro canal com o qual a propaganda tenta convencer os cidadãos de que as privatizações maciças são uma improrrogável necessidade.

O artigo começa com uma pergunta estúpida: “o comércio internacional reduz ou cria empregos?”.
Depende. Depende do contexto histórico, depende do País, do tipo de comércio, em quais circunstâncias.
Uma empresa que transfira a produção na China pode provocar o desemprego na Europa ou na América. Sim que globalmente o volume de trabalho permanece inalterado, mas tentem explicar isso aos que ficaram sem salários.

Mesmo assim, aceitamos as hipóteses do documento, que são as seguintes:

  • as economias abertas, ao contrário daquelas protegidas, alcançam níveis mais altos de crescimento
  • a abertura comercial tem contribuído para a criação de emprego
  • a estabilidade do trabalho global pouco foi mudada.

Será? Vamos ver.

Os “outros” dados

Em primeiro lugar: donde chegam estas informações? Porque feitas tais afirmações é depois preciso argumenta-las, não é?

Nós podemos ler os dados do CEPAL e do Bureau de Estatísticas do Trabalhadores dos Estados Unidos que, olha só, contam uma história um pouco diferente.

Nos últimos 20 anos a taxa de desemprego cresceu da seguinte forma:
EUA 71%, Japão 140%, França 17%, Alemanha 44%, Italia 22%, Suécia 361% Inglaterra 11%.

E o volume da produção industrial, no mesmo período? Diminuiu:
EUA 20%, Japão 26%, França 17%, Alemanha 1.4%, Italia 5.4%, Suécia 30%, Inglaterra 37%.

Falamos dos últimos 20 anos porque podemos definir o início dos anos 90 como o começo duma espécie de febre da liberalização e, neste contexto, é útil observar os efeitos de longo prazo dessas medidas.
Esta é a era do fim da bipolaridade, do triunfo do Capitalismo aberrante (que, repito mais uma vez, pouco tem a ver com a versão original) que derrota qualquer outra alternativa.

Na América Latina já sabemos quais forma as consequências das políticas que foram hegemônicas nos anos 90. O caso da Argentina é o mais impressionante, mas não é o único. No Brasil a taxa de desemprego em 2008 foi cerca do dobro da de 1995, no México praticamente ficou na mesma, apenas no Chile caiu 2%.

Estes dados sozinhos não podem explicar tudo, tal como os dados da OCDE. Mas mostram que o lema da liberalização não traz aquelas melhorias substanciais que a mesma OCDE apresenta.

Discurso fechado então? Não, porque não podemos cair no mesmo erro da OCDE. Como afirmado, os dados não conseguem explicar tudo. Não incluem, por exemplo, os efeitos da crise começada em 2008 e ainda não acabada. O discurso é mais complicado porque as variáveis em jogo são muitas. Não é possível analisar a questão colocada pelo artigo simplesmente mostrando uma correlação entre abertura económica e do trabalho, assim como os dados acerca do desemprego na América Latina não contam tudo.

O trabalho “internacional”

É verdade que, nos últimos anos, a tradicional divisão internacional do trabalho na troca das mercadorias entre a “periferia” e o “centro” foi substituída por um processo em que a periferia também está envolvida na produção e na exportação de produtos acabados, com um aumento significativo também na exportação de produtos com um alto conteúdo tecnológico.

Em termos muito esquemáticos, algumas empresas com a capacidade de operar além das fronteiras tiveram a oportunidade de transferir inteiros segmentos da cadeia de produção para a “periferia” (caso da China, por exemplo), usando estes Países periféricos como uma plataforma de exportação.

A razão é simples: baixar os custos. Há de facto uma nova divisão entre o centro, onde ficam as actividades “intelectuais” (o capital) e a “periferia”, onde ficam os músculos (a força de trabalho). É toda a “fábrica do mundo” que está a mover-se do centro para a periferia.

Há um processo de expansão da relação salarial, onde a fábrica do mundo mudou a partir do “centro” para a periferia capitalista. Este é o papel desenvolvido cada vez mais pela China no mundo contemporâneo. Consequências? Uma, importante na óptica do nosso discurso: é verdade que o total global dos lugares de trabalho permanece inalterado (uma empresa que antes empregava 100 Espanhóis agora pode empregar 100 Chineses), mas o que muda são os salários, muito mais baixos.

É exactamente o que aconteceu nos últimos anos: crise no mundo do trabalho ocidental, com mais desemprego, e ao mesmo tempo crescimento na “periferia” (China em primeiro lugar, mas também Índia e Ásia no geral) com custo do trabalho em queda.

E mesmo que o trabalho aumente (a China não vive apenas de trabalhos “importados” mas tem as suas próprias empresas também), o custo global do trabalho será cada vez mais baixo.

Esta queda do custo tem consequências no Ocidente também: mais desemprego significa mais poder contractual dos empresários e menor poder dos trabalhadores. E, sobretudo nas grandes empresas, os que continuam a trabalhar vivem na constante ameaça da deslocação da empresa, o que leva a aceitar condições de trabalho menos gratificantes.

Outra consequência, particularmente sentida nestas semanas no Velho Continente, é o mal estar social: não é possível pensar que este processo possa desenvolver-se sem resistências e em perfeita harmonia. Pelo contrário, greves e manifestações ocupam as ruas, frutos directos duma política que decidiu submeter-se à lógica do mercado selvagem, esquecendo as prioridades pelas quais em teoria existe.

Então, uma extrema liberalização económica pode até ter contribuído à criação de emprego (e já isso é muito discutível), mas com custos sociais enormes e ainda não totalmente quantificados.

Diz a OCDE: 

A abertura dos mercados ao comércio internacional e às políticas de investimento pró-crescimento oferecem benefícios significativos para todas as economias, mas deve ser acompanhada por uma melhor educação, uma política do mercado de trabalho, políticas de ajuste estrutural e políticas sociais.

Pois, o problema é quando falta toda a segunda parte e quando alguém, como a OCDE, continua só com as boas intenções…

Ipse dixit.

Fontes: Alainet, BLS, OCDE

One Reply to “A OCDE e o trabalho”

  1. Juntando o que os dois últimos posts me permitem pensar:
    Como os intelectuais que trabalham a serviço dos grupos neoliberais ampliadores de suas fortunas e corporações neo conservadoras de suas riquezas devem ser bem preparados, tamanho o sucesso dos globalistas!!
    Quanto mais os centros de trabalho manual e semi manual migram para os lugares densamente povoados e empobrecidos,como a Ásia, maior a procura por trabalho e menores os rendimentos dos trabalhadores.Logo, sucesso garantido para os grandes empreendedores capitalistas globalizados.
    Quanto mais desemprego em lugares altamente desenvolvidos socialmente, pouco tempo atras, como a Europa, mais migração daqueles com mais recursos intelectuais e laborais, ou seja mais desintegração social, que poderá ocasionar novos nichos de trabalho barato.
    A fé cega na qual os pobres foram educados, no trabalho assalariado como fonte de dignidade, renda e segurança, hoje só é bom para quem emprega, mas deixa os trabalhadores, agora destituídos de sindicados combativos, totalmente escravos do poder de manipulação dos ricos. Tal é o exemplo daquela fila de destituídos de tudo em busca de um abrigo contra o frio.
    Qualquer um de nós, se reduzidos a esta situação, deixaríamos de atender ao chamado da privatizada indústria de guerra, de segurança, ou qualquer outra indústria da morte dos conglomerados globalizados que promovem, mantém a guerra e o terrorismo, e até mesmo as chamados catástrofes naturais, e a reconstrução destes cenários espalhados pelo mundo??
    Por acaso estaríamos em condições de escolher salário??
    Me parece que só grupos independentes e auto sustentados e/ou estados fortes, com democracia participativa e/ou direta, cuja soberania seja tão forte a ponto de manter sobre controle o uso do seu território e da sua gente pelos conglomerados econômico financeiros globalizados poderia fazer frente ao deteriorar deste estado de coisas para as populações. Pena que não sei de nenhum Estado que mantenha equilibradas essas condições, que levariam ao insucesso os neo conservadores de imensas fortunas.E é por isso mesmo que quando um Estado se prepara para se independentizar de verdade, corre risco sério da infiltração intelectual e política destes abutres. Quanto a grupos inteligentes, feito ilhas de sobrevivência, é claro que existem, e possivelmente estarão em franco crescimento nas próximas décadas. Mas também é claro que operarão ao nível da sobrevivência grupal, não ao nível da superação deste estado da arte no mundo. Abraços

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