Notas para uma Nova Esquerda. E uma carta.

Os recentes acontecimentos no Brasil, inerentes ao caso Battisti, obrigam a reflectir.

O mundo, não apenas o Ocidente, precisa desesperadamente duma Esquerda. O problema é que as Esquerdas agora existentes falam uma linguagem arcaica, que nada tem a ver com a realidade.

As três Esquerdas

Hoje em dia podemos distinguir três tipos de Esquerda:

1. A Esquerda dos Dinossauros
2. A Esquerda dos Neanderthal
3. A Esquerda de Direita

A primeira categoria inclui as ruínas viventes do Comunismo clássico. Cuba, a Coreia do Norte, mas também alguns partidos ocidentais (Partido Comunista Português, por exemplo). Já tratámos deles: vivem num mundo à parte, feito de Livros Sagrados (Marx, Engels, Lenine), palavras de ordem (Camarada) e mantêm pendurados os retratos do Che.

Representam um caso sem possibilidade de tratamento.

A segunda categoria, a Esquerda dos Neanderthal, é composta por pessoas que leram os Livros Sagrados mas, por um qualquer estranho motivo, acharam que fosse preciso ir além disso. Recusam utilizar o termo “comunista” para definir-se, têm de si próprios uma visão vanguardista com tiques de intelighenzia, são ecologistas (aliás, consideram que qualquer ecologista tem de ser rigorosamente de Esquerda).
Em Portugal o caso mais representativo é o Bloco de Esquerda, em Italia os Democratici di Sinistra.

Na verdade são Comunistas clássicos que tentam conjugar o Marxismo com uma espécie de New Age Política acerca da qual ninguém consegue perceber algo.

A terceira categoria é sem dúvida a mais perigosa: a Esquerda de Direita leu os Livros Sagrados mas recusa in toto qualquer ligação com o Comunismo. E para demonstrar que nada tem a ver com o extremismo de Esquerda, abraça com olhos fechados as políticas de Direita.
São perigosos porque enquanto se apresentam como defensores do povo, conseguem recolher muitos votos mas na realidade acabam com o provocar mais prejuízos do que um governo de Direita.

Exemplo: Partido Socialista em Portugal, Partido Socialista em Espanha.

É claro que nenhuma destas Esquerdas pode encarnar a real alternativa, pois todas têm como base ou a religião doutrina marxista, velha de 150 anos, ou, ao recusar esta, caem na direcção oposta.

O podre e o vazio

Há portanto um vazio que ninguém consegue preencher. Porquê?

Porque o Marxismo-Leninismo é, por sua natureza, anti-democrático: ficou com o monopólio da Esquerda e não admite discussões.

Qualquer pessoa que tente ir além das bandeiras vermelhas é tratado como um pária, marginalizado, considerado uma espécie de brincadeira da natureza. Qualquer discussão é obrigada a morrer no berço.

É paradoxal, mas o maior inimigo da Esquerda hoje é o Marxismo-Leninismo, pois não permite mudanças.

Alguém teria a coragem de deixar-se operar nas condições do século XIX?
Alguém quer substituir o próprio carro por uma carroça e dois cavalos? 
Alguém tem vontade de trabalhar 12 horas por dia, sem feriados ou sem previdência social?

Claro que não: medicina, tecnologia, condição de trabalho mudaram nos últimos 150 anos.
Mas o Comunismo não, não pode mudar. É cristalizado, sempre igual a si mesmo desde o nascimento.
Um perfeito exemplo de desenvolvimento bloqueado.

E por isso, numa altura como esta na qual é levado um ataque sem precedente aos direitos dos cidadãos, não há ninguém capaz de opor resistência.

Em Portugal, por exemplo, o Partido Socialista (a Esquerda de Direita) com o principal partido da oposição (o PSD, centro-direita), conseguiu implementar medidas que até poucos anos atrás teriam despoletado uma meia revolução.

Hoje? Hoje temos a engraçada cena do Partido Comunista Português (a Esquerda dos Dinossauros) e do Bloco de Esquerda (a Esquerda dos Neanderthal) que protestam no Parlamento, os sindicatos que organizam uma “oceânica” manifestação nas ruas e depois? Depois nada, tudo volta à normalidade.

Só isso? Só isso.

A oposição na cantina

Porque da suposta fractura entre cidadãos e política, quem acabou por pagar a conta mais alta foi sem dúvida a Esquerda. É natural que assim seja.

Se um partido se apresenta como “defensor do povo” mas na realidade fica fechado na cantina do Parlamento ou em qualquer comício para adeptos, é lógico que perca o contacto com a realidade.

E se, perante os gritos de socorro da sociedade, sabe responder só com receitas do século XIX, então é clara a escolha: um partido para reformados.

A Direita, neste sentido, é mais honesta. Precisa muito menos do “povo”, as suas referências podem ser encontradas mais provavelmente nos conselhos de administração. Não precisa lembrar a cada passo “quanto fomos bons” contra o Salazarismo (em Portugal), os nazistas e os terroristas (em Italia), o Franquismo (em Espanha) para justificar a própria existência.

As actuais três Esquerdas hoje nem têm os instrumentos para entender a sociedade.
Um cirurgião não possui os meios de produção e trabalha para um patrão: deve ser considerado um operário?
O dono duma loja de verdura, que mal consegue juntar um salário mínimo, é um capitalista?
Há um ampla classe da sociedade que, simplesmente, não é representada. Ou é representada mal.

Resultado: os bancos podem continuar a enviar ordens para os políticos, com a certeza que ninguém poderá perturbar os planos deles.

Uma Nova Esquerda

Eu acho que há espaço, muito espaço, para uma Nova Esquerda. Uma Nova Esquerda que possa realmente ser representativa das exigências dos cidadãos, dos trabalhadores, duma nova maneira de encarar a sociedade.
Mas como fazer?

Em primeiro lugar, deitar fora todas as imagens das seguintes personagens: Marx, Engels, Lenine, Stalin, Mao, Fidel Castro, Che Guevara.

Sim senhor, grandes homens, coisas maravilhosas, mas agora, por favor, desapareçam duma vez por todas. Sem retirar estes esqueletos dos armários não é possível ir para lado nenhum.

Segundo: ouvir as pessoas. Ir para as ruas, ouvir (sem falar!!!), perguntar o que querem, as sugestões delas, tomar notas das ideias, das reais condições em que se encontra a sociedade, por exemplo.

Terceiro passo: pôr no programa (terá que existir um programa, mas não um manifesto) três pontos essenciais.

1. o centro primário da política da Nova Esquerda não são as ideias mas os Homens. Não as classes sociais, mas os Homens enquanto seres humanos.

2. o segundo centro da Nova esquerda é uma política de sustentabilidade: ecologia, energias renováveis, poupança., luta ao desperdício. Temos de aprender a viver duma forma responsável e não como vírus.

3. explicar aos cidadãos (todos, sem distinção) como realmente funciona a sociedade em que vivemos: o papel dos bancos, as Bolsas, o que é uma dívida pública, o que é realmente esta União Europeia, quem realmente manda no Mundo, o que fazem as casas farmacêuticas, porque os Países subdesenvolvidos continuam subdesenvolvidos, etc. etc. As pessoas têm o direito de saber a verdade, só assim podem escolher.

Sem uma oposição

Nada mais? Claro, deveria haver muito mais do que isso que é só um esboço e que trata apenas dos princípios básicos. Mas acho estes importantes enquanto pilares de qualquer movimento de Esquerda que deseje propor-se como uma força nova.

Existe um partido assim? Não. E esta é uma das actuais tragédias do mundo ocidental.

Um sistema amplamente imperfeito como o nosso precisa dum ou mais partidos de governo e de outro(s) partido(s) na oposição.

Sempre considerei a oposição a parte mais importante da democracia, como é óbvio: é a oposição que tem de vigiar, controlar, propor alternativas.

Sem oposição não há democracia. Pode haver só uma classe política que faz o que lhe apetece ou que executa as ordens recebidas.

O que, olha o caso, é a situação que estamos a viver.

A carta

Estava perto do publicar este artigo quando encontrei uma carta que bem complementa quanto escrito até agora.

Breve explicação: alguns sindicatos assinaram um novo acordo inerente a unidade produtiva da Fiat em Pomigliano d’Arco, Sul de Italia. Alguns sindicatos, mas não todos. A Fiom, o mais antigo sindicato dos metalomecânicos e emanação da Esquerda italiana, critica duramente a assinatura, fala de traição, ameaça novas greves.

O que a Fiom e a Esquerda não esperam é uma reacção dos trabalhadores. Reacção que concretiza-se nesta carta, escrita no dia 29 de Dezembro de 2010, e enviada para os maiores diários do País.

Caro Pier Luigi Bersani, Nichi Vendola e Antonio Di Pietro [todos exponentes de partidos da Esquerda, NDT], agora fazem seis meses ao longo dos quais observámos todos os dias e sofremos um científico e perpetuo ataque por parte dos dirigentes dos vossos partidos. A questão da Fiat, ontem Pomigliano, hoje Mirafiori e amanhã quem sabe, não pode incluir sempre uma ofensa à inteligência dos outros.

Nós, os que votaram “sim” a esse acordo, estamos cansados de constantes declarações que visam apoiar aqueles que não tinham alternativas viáveis para propor. Nós, que cada dia vamos para a fábrica para 1.200 euros por mês e que trabalhamos na linha de montagem, já não aceitamos esta hipocrisia da vossa parte.

Gostaríamos de fazer algumas perguntas:

1) Na vossa opinião, estamos felizes de trabalhar numa fábrica?

2) Na vossa opinião, nós que ganhamos 1200 € por mês, não gostaríamos de ganhar mais dinheiro trabalhando menos?

3) Na vossa opinião, além da proposta Marchionne [Administrador delegado da Fiat, NDT], existia outra?

4) Na vossa opinião, se a Fiom tivesse proposto uma alternativa ao plano de Marchionne, ao invés de simplesmente questionar a legalidade e dizer apenas “não”, não a teríamos escolhido?

5) Na vossa opinião, se tivéssemos uma lei para proteger os trabalhadores com doença (isto é, incluindo os três primeiros dias), não teria sido melhor? Porque não reformaram a Lei do Código Civil 2110 quando estavam no governo?

6) Na vossa opinião, se tivéssemos uma lei que prevê mais pausas durante o trabalho, não seria melhor? Porque não reformaram o decreto 66/2003, quando estavam no governo?

7) Vocês acham que justo que aos outros sindicatos na Fiat não é reconhecido o número de horas permitidas enquanto à Fiom é reconhecido tudo? Porque dois pesos e duas medidas?

8) Na vossa opinião, continuar a dizer que os outros sindicatos CISL e UIL são servos dos patrões ajuda a classe trabalhadora?

9) Na vossa opinião, os trabalhadores esqueceram de quando votaram no Parlamento o início do trabalho precário do “Pacote Treu”?

10) Na vossa opinião, defendendo unicamente as razões Fiom , estão a respeitar os trabalhadores não inscritos na Fiom?

Aqui, simplesmente quanto escrito, sem jogos de palavras, sem jargão político, ao falar só de quem vive uma condição de sobrevivência, uma condição em que todos gritam contra todos, mas ninguém mostra um caminho diferente e que, sobretudo, seja exequíveis.[…]

Saíam da hipocrisia eleitoral e venham falar connosco. E depois de ter ouvido, tornem vossas as nossas exigências para uma verdadeira alternativa ao governo e não apenas para bater Silvio Berlusconi. Se vocês quiserem, no final de Janeiro iremos trabalhar sobre uma nova iniciativa. Vocês são convidados.

[Seguem as firmas dos trabalhadores]

Quem melhor pode descrever a distância entre a actual Esquerda e a realidade, ao não ser os próprios trabalhadores?

Ipse dixit.

Fonte: Il Giornale

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