A destruição dum Estado

As notícias acerca da Grécia desapareceram das primeiras páginas dos diários.

Os títulos são para o frio, o grande frio, o excepcional frio. O frio normal, pois afinal estamos perto do Natal e não lembro dalguma vez ter ido à praia para abrir as prendas.
Talvez isso seja normal para os leitores do Brasil e de Angola. Mas acreditem: no hemisfério Norte isso nunca aconteceu.

Times, Guardian, Telegraph, até os caseiros Público ou Diário de Notícias: todos falam do frio.
Óbvio, depois há notícias locais.
Na Inglaterra o pensamento é para o filho de Lady D, que afirma pensar sempre na mãe.
Em Portugal o perigo é para uma erupção nos Açores.
Mas acerca da Grécia nada.

É justo que assim seja.
Atenas nesta altura é um laboratório. E como em qualquer laboratório que se preze, a curiosidade fica fora.
A entrada é só para o pessoal especializado.

A experiência

A experiência está em marcha: desaparecimento do Estado, desregulamentação do mercado de trabalho, privatização total da economia, erosão da democracia, degradação da sociedade.

Tudo isso num só País e num espaço de tempo bastante curto.

Não é fácil, admitimos.
É preciso convencer os cidadãos que tudo é feito para o bem deles. Experimente o leitor dar com um pau na cabeça do vizinho e convence-lo que é para que fique melhor.
É preciso desmontar, pedaço após pedaço, um Estado que foi construído com fadiga e trabalho após o fim do regime, em 1974.
É preciso salvaguardar os bancos e os interesses dos vários Países que ali investiram.
É preciso fazer tudo isso enquanto é feita passar para o exterior a ideia que tudo não passa de uma ajuda ao povo grego.

Não fácil, como afirmado, mas necessário: da Grécia pode sair um novo modelo de sociedade que poderá ser implementado nos restantes Países da Zona Euro. Um modelo que tem não poucos pontos de contacto com alguns regimes asiáticos.

Não é uma surpresa: a deslocação geopolítica é também isso. Antes era o nosso modelo a ser exportado para os Países menos desenvolvidos: ali era adaptado às realidades locais e implementado.

Na maior parte dos casos esta manobra acabava com o não funcionar.  Mas atenção: não funcionava para a sociedade, para o bem estar dos cidadãos. Funcionava à maravilha, pelo contrário, para outros sectores: bancos, empresas estrangeiras, investidores estrangeiros.

Hoje a história está a repetir-se. Mas, claro, já não é o nosso modelo que está a impor-se. E qual modelo seria o nosso? O dos Estados Unidos, mergulhados numa crise sem fim? Ou o da Europa, à beira do colapso?
É preciso ir além, procurar um novo modelo.

Mas, para complicar as coisas, existe até a história do País.

O precedente

Em 1936, a Grécia recusou (embora reconhecendo a existência) o pagamento da dívida contraída com o banco belga Société Générale de Belgique. O governo belga, em seguida, avançou com um processo perante o Tribunal Internacional da Liga das Nações contra a Grécia, acusando-a de não cumprir um acordo internacional.

O País helénico disse que a insolvência era justificada pelo perigo de que o pagamento poderia ter significado para o povo e o Estado. No memorando, o Governo grego escreveu:

O governo da Grécia, preocupado com os interesses vitais do povo helénico, governo, economia, saúde pública, e segurança do País, não teve outra escolha que o acordo de reestruturação da dívida com o banco belga

(Yearbook of the International Law Commission, 1980, v.II., parte I, p.25-26). 

Em 1938, o Tribunal reconheceu as razões da Grécia, criando um precedente legal sobre o qual, entre outras coisas, se baseou o governo argentino em 2003.

Testar a resistência

Havia um precedente. Teria feito sentido percorrer a mesma estrada?

O que importa é que aos Gregos não foi concedida a possibilidade de escolher.
Era imperioso ir além, experimentar, procurar o tal modelo que levasse o capitalismo mais à frente.

Em verdade falar de capitalismo é um erro; o nosso sistema abandonou nas últimas décadas os traços do capitalismo clássico para entrar numa fase de transformação. A Grécia é parte deste processo, como primeiro teste duma nova sociedade.

Por enquanto é preciso testar qual o grau de resistência da sociedade.

Nestes meses, a sociedade grega está a ser desmontada, pedaço após pedaço, e privatizada.
Foi decidido cortar os salários, baixando assim o nível de vida das famílias; os serviços, as reformas.
A máquina pública ficará extremamente reduzida: o Estado pode assumir um trabalhador por cada 5 que atingem a reforma.

Os direitos dos trabalhadores são atropelados: os acordos alcançados entre governo e sindicatos valem também para as categorias que não participaram nas negociações.

Os ordenados nas empresas em crise podem ser reduzidos recorrendo ao “contacto colectivo especial de empresa”, mas nem uma palavra acerca da percentagem das reduções.
Em caso de despedimento ou demissão, fica reduzida a indemnização.
E nos ordenados das empresas públicas foram postos limites; que todavia não abrangem presidentes, conselheiros e directores.

O governo está a ser esvaziado das próprias funções, limitando-se a receber as ordens da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional. Neste aspecto é interessante realçar que ao aceitar a “ajuda”, a Grécia recebeu um memorando que pode ser alterado pelo local ministro das finanças, obviamente prévia autorização dos “donos” internacionais, sem por isso prestar contas aos cidadãos. E o memorando já foi alterado duas vezes.

Os normais processos democráticos são ultrapassados com o recurso ao procedimento de urgência. Desde 1974, a Grécia recorreu 18 vezes a este procedimento para introduzir leis: nos últimos meses isso aconteceu já sete vezes.

O resultado será um País mais pobre, menos instruído, menos saudável, com uma elite politica cada vez menos autónoma. Um novo País, para o qual falta uma definição correcta e actualizada (voltaremos a falar deste aspecto).

Se o povo grego aceitar a nova situação, a experiência poderá dizer-se conseguida. E a experiência acumulada poderá ser desfrutada num dos outros Países caídos nas mãos da dupla FMI/UE.

Ipse dixit.

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