Somália: um País sem paz

Outra guerra que não merece as manchetes dos jornais: a Somália.

Islão, Al-Qaeda, exércitos ocidentais, forças de paz da ONU, guerrilha local: todos os ingredientes para uma situação explosiva reunidos num País com uma superfície 6 vezes a de Portugal continental e uma população que não ultrapassa os 8 milhões e meio de habitantes.

Uma esperança de vida de 48 anos, um rendimento que não atinge os 70 Dólares mensais. Pode existir alguém interessado num País como este?

Já falámos deste pobre País num artigo dedicado aos “modernos” piratas da costa leste da África. Agora, com a ajuda de quanto escrito nas páginas de Limes por Matteo Guglielmo, podemos vislumbrar quais as condições internas.

Se há um lugar no mundo que nas últimas décadas experimentou todos os tipos de conflitos armados e de intervenção militar, está é a Somália. Assim escreve Jefferey Gettleman no New York Times, sublinhando que se o resultado da última reunião extraordinária da União Africano, realizada em Uganda, há algumas semanas tivesse sido só aumentar o contingente de Amisom em 2000 ou talvez 4000 unidades, então demonstrariam a comunidade internacional ter aprendido muito pouco ao longo destes anos de conflito.
 
Duas décadas de conflito na Somália e a história parece inexoravelmente repetir-se.
Um contingente militar não é suficiente para restaurar a paz no território do centro-sul, pouco importa que seja composto de milhares de Marines americanos, como na missão Restore Hope no início dos anos Noventa, ou pelos soldados das Nações Unidas, como a Unosom II.  

Mesmo a Etiópia, um País que sabe mais do que qualquer outro acerca do território da Somália, não conseguiu restaurar a segurança em Mogadíscio, deixando até o legado da sua polémica intervenção para um contingente regional que hoje está sozinho a enfrentar o peso do confronto com a guerrilha.
 
Apesar da história do conflito ter mostrado como fragmentos de estabilidade surgiram apenas com a afirmação das Cortes Islâmicas, em Junho de 2006, a União Africano decidiu aumentar ainda mais o próprio empenho militar no País.  
A expectativa da comunidade internacional, particularmente nos Estados Unidos, cujo apoio para o contingente até agora foi de cerca 200 milhões de Dólares, é recuperar pelo menos Mogadíscio, permitindo assim que as Instituições Federais de Transição possam começar a governar e a distribuir serviços à população.
 
Não há como negar que a estratégia agora tem muitas chances de fracassar. Não só porque as forças radicais do Shabaab nos últimos anos têm reforçado e entrincheirado a própria na maioria das áreas do centro-sul da Somália, mas principalmente porque o mesmo contingente Amisom, agora sob ataque constante por parte da guerrilha, é muitas vezes obrigado a retornar o fogo de forma maciça, acabando por provocar vítimas não só entre os milicianos, mas também entre a população civil.
Ultimamente, mesmo à agência Associated Press, reportando um relatório da União Africana, confirmou a tendência da missão de capacetes verdes a efectuar uma retaliação que, eventualmente, envolve na maioria civis, tornando assim mais difícil a relação entre população e Amisom.
 

A crescente adversão aos capacetes verdes fornece novos argumentos a uma guerrilhas que, apesar das suas políticas radicais, no mês passado foi capaz de fazer esse salto de qualidade que muitos temiam. No dia 11 de Julho passado, enquanto toda a África observava terminar a primeira Copa do Mundo jogada no continente, 74 pessoas foram mortas num duplo atentado em Kampala, Uganda. O tipo e o alvo dos ataques fizeram pensar logo em Al Qaeda. A confirmação das suspeitas e das vozes, no entanto, só veio alguns dias depois, quando Sheikh Ali Mohamud Raghe, porta-voz do al-Shabaab, disse: “Atrás das duas bombas em Uganda houve al-Shabaab”.
 
O ataque mostra como o alcance de al-Shabaab é substancialmente aumentado. Até os ataques em Kampala, na realidade, os jovens Muja’eddin tinham usado a técnica do martírio só no solo da Somália, como havia acontecido em Outubro de 2008 quando foram atacados a Presidência e o compound Undp de Hargeisa, em Somaliland, e em Junho de 2009, quando num atentado suicida em Beledweyne, 300 km ao norte de Mogadíscio, foi morto Omar Hashi, o então ministro da Segurança do Governo de Transição.
 
A pagar o custo do salto qualitativo de Shabaab podem ser outros Países do Leste Africano como o Quénia, onde em breve  haverá um importante referendo constitucional. Para já não falar da Somalilândia e Puntland, onde o perigo de infiltração do movimento islamita é mais específico, especialmente na região semi-autónoma de Puntland.  

Apenas alguns dias atrás, um comando Shabaab teria tentado atacar a cidade costeira de Bosaso. O confronto, que resolveu-se com um recuo dos islamistas e a morte duma dúzia de combatentes, tem alertado as autoridades de Puntland, que logo anunciaram uma contra-ofensiva em Galgalá, considerada a nova base Shabaab no centro-norte. O homem que dirige o Shabaab em Puntland, de acordo com algumas fontes de informação da Somália, seria Sheikh Mohamed Said “Attam”, um jovem Darood (Harti / Warsengeli), cujo nome foi só recentemente conectado ao movimento radical, embora, segundo outras testemunhas, as suas actividades de recrutamento remontem pelo menos à 2005.
 
Segundo as autoridades do Puntland o recrutamento de “Attam”, e portanto de al-Shabaab, ocorrem dentro dos campos de deslocados presentes na região semi-autónoma. Como consequência directa dos atentados de Bosaso e de Kampala, as autoridades de Garowe decidiram expulsar vários deslocadas presentes na região, especialmente homens, e envia-los de volta para o centro-sul da Somália, apesar dos apelos e das opiniões divergentes de muitas organizações da Diáspora somali, presentes em diferentes países ocidentais.
 

Quase dois anos após o novo Governo Federal de Transição, encontrar uma estratégia de contenção do conflito na Somália continua a ser uma tarefa difícil, também por causa do fraco parceiro político local.  Enquanto a União Europeia, com a assistência técnica e logística dos EUA, começou a treinar as forças de segurança através do programa EU Somalia Training Mission (Eutm), as Instituições Federais de Transição permanecem perigosamente “suspensas” aos olhos duma população que ainda não consegue retirar qualquer benefício da sua existência.
 
Abrir ou não abrir um diálogo com Shabaab ainda hoje é um tema complicado, enquanto, por exemplo, no Afeganistão falar com os talibãs não parece ser mais um tabu. A ironia destes dias, no entanto, como afirmou Georg Sebastian Holzer num artigo publicado recentemente no site da International Security Network, é que enquanto os Estados Unidos estavam a preparar-se para definir uma abordagem mais flexível sobre a crise na Somália, os ataques de Kampala levaram vários actores regionais, Uganda e Etiópia em primeiro lugar, a relançar a linha-dura da intervenção militar.  

Apesar de ser cedo para avaliar o mérito dessa abordagem, a história do conflito na Somália, uma vez mais, pode ajudar a prever os efeitos.

Fonte: Limes 

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