A historicidade de Cristo

Jesus Cristo existiu? Informação Incorrecta tinha dedicado ao assunto um artigo mas já lá vão muitos anos (era o 2013….): será que algo mudou entretanto? Novas provas arqueológicas, por exemplo?

Eis o que escrevia o bom Max há oito anos:

Vamos esquecer qualquer assunto de ordem espiritual, vamos falar apenas da historicidade. Até hoje não há uma prova definitiva acerca da existência de Jesus.

As provas de fonte cristã não fazem muito sentido, pois é como pedir a um adepto da Sampdoria qual o melhor clube do mundo: claramente o adepto responderá “Sampdoria” (o que, por acaso, é a resposta correcta).

Depois há as provas dos autores não cristãos, entre os quais a mais importante sempre foi considerada o testemunho do mesmo Flávio Josefo, que no texto Antiquitates Judaicae (Antiguidades Judaicas) reporta três referimentos acerca de Jesus. O problema é que há muito é sabido como o texto original foi alterado ao longo do Idade Média, em particular na parte conhecida como Testimonium Flavianum (XVIII, 63-64).

Outras alegadas provas:

  • Talmud de Babilónia (que todavia foi escrito apenas no V século d.C.)
  • Sepher toldos jeschut (séc. II d.C.)
  • Sextus Iulius Africanus (séc. III d.C.) o qual cita Tallo (séc. I d.C.) o qual diz ter ouvido da crucificação de Jesus (e se esta é uma prova…)
  • uma carta de Plínio o Jovem (séc. II d.C.) na qual é citado o nome de Cristo

mais outros escritos romanos que citam os Cristãos ou as crenças deles: Tácito, Svetónio, Dione Cássio, Tertulliano, o imperador Adriano e mais ainda.

O que importa realçar é que não existe um único escrito contemporâneo que testemunhe da existência de Jesus, sendo que as primeiras notícias acerca dos Cristãos são do 64 d.C., com os escritos do historiador romano Tácito.

Esta ausência de relatos contemporâneos é bastante esquisita, pois estamos a falar dum indivíduo (com respeito falando) que ia dum lugar para outro multiplicando o vinho, ressuscitando os mortos, tratando os leprosos…o que não devia ser um espectáculo tão comum. Mais esquisito ainda, nem os historiadores que viveram nos mesmos anos de Jesus citaram alguma vez o Redentor: Séneca, Plutarco ou Fílon de Alexandria (judeo-helenista) simplesmente ignoram todos os acontecimentos citados nos Evangelhos.

Apesar disso, na minha opinião Jesus foi uma figura realmente existida, embora os graves erros cronológicos contidos nos Evangelhos Canónicos. Eventualmente, o discurso é acerca de quem foi realmente o Cristo: eu tenho as minhas ideias, o Leitor terá as suas (e, apesar das minhas estarem certas, sou magnânimo e permito que o Leitor possa continuar a errar).

Oito anos depois a situação permanece idêntica: não foram encontradas mais provas acerca da historicidade de Cristo. Ou seja: não há referências contemporâneas que citem episódios da vida de Jesus.

Para piorar a situação, muitos factos relativos à vida de Cristo encontram analogias noutros mitos derivados de religiões e cultos mais antigos (sobretudo a figura de Osíris-Dionísio e do seu filho Horus, mas também de Mithras, de Sol Invictus, de Aesculapius, etc.). Segundo quem nega a historicidade de Cristo, a figura de Jesus seria o resultado de uma elaboração teológica posterior, tendo como objectivo a construção de uma fundação tangível para assegurar a difusão de uma nova religião.

O nome de “Jesus” (em aramaico: Yeshua) era comum na altura e o material mais importante que apoia a sua existência continua a chegar de fontes cristãs póstumas e não de fontes independentes ou neutras. Nos casos em que há um vestígio em escritos de autores não cristãos, há também a suspeita de algumas alterações possivelmente efectuadas pelos copistas: por exemplo, a autenticidade do Testimonium Flavianum é debatida. As próprias fontes cristãs são de várias décadas depois dos acontecimentos, e a fonte mais próxima, as cartas de Paulo de Tarso, foram escritas vinte ou trinta anos após a morte de Cristo e não contêm qualquer relato da sua vida (excepto a instituição da Eucaristia).

Pior ainda, nem os Evangelhos concordam ao relatar a vida de Redentor, ao ponto que hoje distinguimos entre Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos, Lucas) e Evangelho de João: se os primeiros relatam a história de Cristo duma forma substancialmente igual (mas não idêntica), o último é muito diferente.

Mas também entre os sinópticos há divergências. Por exemplo:

  • a genealogia de Jesus é diferente entre Mt (1,1-16) e Lc (3,23-38); em particular, os Evangelhos de Lucas e Mateus diferem em relação ao pai de José;
  • o anúncio do nascimento de Jesus em Mt 1,1-25 é feito num sonho por um anjo a José, em Lc 1,26-37 ocorre através da aparição de um anjo a Maria;
  • o nascimento de Jesus apresenta diferenças entre Mateus e Lucas; em particular, Lc (2,22-39) relata que após a apresentação de Jesus no Templo a família regressou a Nazaré, enquanto que Mt (2,13-33) afirma que após a visita dos Magos fugiu para o Egipto e regressou apenas após a morte de Herodes, decidindo instalar-se em Nazaré;
  • a oração que Jesus ensinou, o “Pai Nosso”, é diferente entre Mt (6,9-13) e Lc (11,2-4);
  • a visita de Pedro ao túmulo vazio é relatada apenas por Lc 24:12 e não pelos outros sinópticos;
  • a Ascensão de Jesus mal é mencionada em Mc 16,19-20 e descrita mais extensivamente em Lc 50-53, mas nem sequer é mencionada no Evangelho de Mateus (em Mt 28,16-20 Jesus limita-se a enviar os discípulos numa missão, assegurando-lhes que estará com eles até ao fim do mundo).

Não são pormenores. Para complicar ainda mais temos o problema da Fonte Q. Como explica Wikipedia versão portuguesa:

A fonte Q (também conhecida como documento Q ou apenas Q, sendo que a letra “Q” é uma abreviatura da palavra quelle que, em língua alemã, significa “fonte”) é uma hipotética fonte usada na redação do Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas. A fonte “Q” é definida como o material “comum” encontrado em Mateus e Lucas, mas não no Evangelho de Marcos. Este texto antigo supostamente continha a logia ou várias palavras e sermões de Jesus.

Seu conteúdo abrange 225 versículos encontrados nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, mas, admite-se que parte de seu texto não foi aproveitado naqueles Evangelhos Canônicos, sendo portanto desconhecida. Os textos narrativos são quase que inexistentes, há apenas três referências a milagres: Cura do Servo do Centurião, aos Sinais Messiânicos Lucas 7:22 e a Exorcismo do Demônio no Mudo. Além disso merecem destaque o fato dessa Fonte não conter a narração da paixão/morte e da ressurreição de Jesus e as fortes semelhanças com o Evangelho de Tomé.

Podendo ser definida também, como o conjunto das sentenças ou de sapiências originais de Jesus, que foram as primeiras anotações dos discípulos e apóstolos mais antigas, que hoje, representa uma fonte de estudos diretamente relacionada à concepção popular das origens cristãs.

Junto com a prioridade de Marcos, a fonte “Q” foi uma hipótese pensada a partir 1900, sendo a partir daí um dos fundamentos de conhecimento do evangelho moderno. O erudito bíblico britânico Burnett Hillman Streeter formulou uma visão amplamente aceita de “Q”: era um documento escrito (não uma tradição oral) composto em grego; quase todo o seu conteúdo aparecem em Mateus, em Lucas ou em ambos; e que Lucas preservou, mais do que Mateus, a ordem original do texto. Na hipótese das duas fontes, tanto Mateus quanto Lucas teriam usado o Evangelho de Marcos e o documento “Q” como fontes. Alguns estudiosos têm postulado que “Q” é na verdade uma pluralidade de fontes, alguns escritos e alguns provenientes da tradição oral. Outros têm tentado determinar as fases em que “Q” foi composto.

Resumindo: para escrever os seus Evangelhos, tanto Mateus quanto Lucas teriam atingido do Evangelho de Marcos e da Fonte Q. E isso significa que afinal os Evangelhos autênticos poderiam ser apenas dois: aquele de Marcos e aquele de João. Muito, muito complicado.

Tudo isso significa que Jesus nunca existiu? A vida e as obras de Cristo não passam dum mito?

Apesar da historicidade de Jesus ter para mim uma importância relativa, não sendo crente, não tenho dificuldade em admitir que o Cristo bem pode ter sido uma presença histórica real, possivelmente filtrada no tempo com “ornamentos” originários de outras doutrinas. Nada de novo no âmbito da Bíblia, cujo primeiro capítulo, por exemplo, é a adaptação da suméria Epopeia de Gilgamesh.

E nem a presença dum “revoltoso” como Jesus numa província do Império Romano deve surpreender: pelo contrário, na Palestina o clima sempre foi aquele de “guerrilha”, com revoltas que levaram a importantes expedições militares repressivas, culminadas nas Guerras Judaicas de 66 d.C., 115 d.C. e 132 d.C.. Nem poucas vezes a liderar estas revoltas eram pessoas que diziam ser (ou eram vistas como) o Messias: foi o caso de Simão Barcoquebas, que comandou a terceira revolta judaica contra o Império Romano, aquela de 132 d.C..

O facto é que os Judeus estavam à espera dum Messias (e ainda estão), alguém que devolvesse a independência à terra das Doze Tribos de israel: uma figura que encarnasse o aspecto tanto militar quanto religioso. Ainda hoje nos Evangelhos há passos onde transparece a vertente “prática” da obra de Jesus:

Eu vim lançar fogo à terra, e quem me dera que já estivesse a arder! Tenho que passar por uma dura prova, e estou angustiado até que isso aconteça! Julgam que vim trazer paz ao mundo?! De modo nenhum: o que eu vim trazer foi a divisão. Pois daqui em diante, se houver cinco pessoas numa família, três estarão contra as outras duas, e as duas contra as três. Os pais estarão contra os filhos, e os filhos contra os pais; as mães contra as filhas, e as filhas contra as mães; as sogras contra as noras, e as noras contra as sogras. (Lucas 12,49-53)

A interpretação que é feita hoje é que Jesus não defende aqui a violência e a agressividade mas fala do fogo do Espírito.

Mas esta é uma nossa interpretação: as palavras relatadas por Lucas dizem algo diferente e encaixam na versão dum Jesus qual líder revoltoso. Toda a Bíblia foi sempre submetida a esta obra de “interpretação”, enriquecida com alegorias, metáforas, paráfrases: trata-se dum exercício compreensível do ponto de vista religioso, que precisa harmonizar os textos para criar um corpo teológico homogéneo, mas difícil de aceitar do ponto de vista histórico.

Seja como for, não é possível julgar uma eventual historicidade de Cristo sem considerar o contexto na qual esta historicidade deveria inserir-se: o clima de elevada e constante tensão na Província judaica era o terreno mais propício para o aparecimento de líderes tanto religiosos quanto militares (ou até de ambos juntos, como vimos). Num clima como este, uma figura como aquela do Cristo não é algo que possa provocar espanto, independentemente do tipo de mensagem trazida (mais virada para a religião ou para a vertente militar). Nenhuma crónica romana da época teria relatado a existência dum novo “líder” revoltoso: esta era a absoluta normalidade.

Eventualmente, a falta de documentos históricos contemporâneos pode dizer outra coisa: a obra e sobretudo os resultados obtidos por Jesus não foram mais marcantes (pelo menos no imediato) daqueles de outros revoltosos. Então aqui podemos pensar na sucessiva e eventual “construção” da figura de Jesus, mas este é um discurso completamente diferente e que por enquanto não interessa. O que interessa é que se nada pode provar definitivamente a existência de Cristo, nada também impede uma sua eventual historicidade que, como vimos, não seria motivo de surpresa no clima da Palestina durante a ocupação de Roma.

Pelo contrário, temos os testemunhos indirectos dum grupo de pessoas:

  • os quatro Evangelistas canónicos
  • os autores do Evangelhos apócrifos
  • as referências de Plínio o Jovem, Josephus Flavius, Suetonius e Tacitus, mais outras que, todavia, foram escritas sempre décadas ou até centenas de anos depois da morte de Jesus (Sesto Giulio Africano, por exemplo, no séc. II d.C. falava dum certo Tallo que em 52. d.C. teria citado a eclipse na altura da crucificação).

É pouco? Sem dúvida não é nada de definitivo. Mas o Leitor ficaria espantado ao saber quantos factos “históricos” são hoje tranquilamente aceites tendo como base apenas uma meia frase ou um punhado de palavras cuja tradução é incerta.

As datas

Pelo que, data a ausência de provas definitivas, como é possível reconstruir as principais datas da eventual vida de Cristo?

No artigo anterior foi apresentada uma cronologia:

  • 8 a.C. Censo
  • 7-6 a.C. nascimento Jesus
  • 4 a.C. morte Herodes o Grande
  • 26 d.C. baptismo de S. João
  • 34-35 d.C. morte de S. João
  • 36 d.C. crucificação de Jesus Cristo

É possível fundamenta-la? Vamos ver (nota: reporto a melhor bibliografia disponível até hoje. Isso não significa que eu li todos os livros citados, Deus me livre! Mas, no caso o desejo seja aquele de procurar informações acerca do assunto, as que seguem são obras incontornáveis).

Censo: 8 a.C.

Lucas 2:1 relata, nos dias imediatamente anteriores ao nascimento de Jesus, um censo de Augusto “de todos os (terrenos) habitados”. Augusto foi imperador entre 27 a.C. e 14 d.C. e pediu três recenseamentos universais: em 28 a.C. (quando ainda era cônsul), em 8 a.C e em 14 d.C. (fonte: Res Gestae Divi Augusti 8).

A identificação do recenseamento evangélico com aquele realizado em 8 a.C. é assunto muito discutido.

Lucas 2:2 especifica que na altura do censo de Augusto, era Quirinius “governante da Síria”. Quirinus foi de facto Governador da Síria mas a partir de 6 d.C.: pelo que um dado aparentemente incompatível com a indicação evangélica do reinado de Herodes, que tinha morrido dez anos antes. Os estudiosos cristãos, contudo, assinalam que Quirinius já tinha ocupado alguns cargos na Síria durante o mandato do anterior Governador, Sentius Saturninus, e é possível que este último lhe tivesse confiado a tarefa de fazer o recenseamento estabelecido por Augusto (Giuseppe Ricciotti, “Vita di Gesù Cristo”, Mondadori, 1962, §186). Esta hipótese é reforçada pelo facto de, no século II, Tertuliano ter declarado que Jesus tinha nascido na época de Sentius Saturninus.

Pelo que, se aceitarmos um censo antes da morte de Herodes, aquele de 8 a.C. é o único disponível. Caso contrário, temos que tomar em consideração o censo de 14 d.C. Mas aquele foi o ano em que Quirino voltou a viver em Roma e, ainda mais importante, Herodes tinha morrido há muito.

Morte de Herodes: 4 a.C.

A maior parte dos investigadores aceita a tese de Emil Schürer, segundo o qual Herodes morreu no ano de 750 a.u.c. (Ab Urbe Condita, “Desde a Fundação da Cidade”, isso é, a fundação de Roma: era este o ponto de partida do calendário romano), ou seja 4 a.C.

A obra de Schürer mais importante neste sentido é A History of the Jewish People in the Time of Jesus Christ (1885-1891), ainda considerada fundamental após um século da primeira edição. Uma nova edição revista foi também feita por Géza Vermes, Fergus Millar e Matthew Black com o título ligeiramente diferente de The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (1973-1987).

Alguns estudiosos (poucos, na verdade) apoiam a data tradicional de 1 a.C. para a morte de Herodes. Filmer e Steinmann, por exemplo, propõem que Herodes morreu em 1 a.C, e que os seus herdeiros manipularam as datas até 4 ou 3 a.C. a fim de afirmar uma sobreposição com o reinado de Herodes e reforçar a sua própria legitimidade. Neste sentido:

  • Edwards Ormond “Herodian Chronology”, Palestine Exploration Quarterly 114 (1982) 29–42
  • Keresztes, Paul. Imperial Rome and the Christians: From Herod the Great to About 200 AD (Lanham, Maryland: University Press of America, 1989), pp.1–43.
  • Jerry Vardaman e Edwin M. Yamauchi, The Nativity and Herod’s Death, in Chronos, Kairos, Christos: Nativity and Chronological Studies Presented to Jack Finegan, Winona Lake, Indiana, Eisenbrauns, 1989, pp. 85–92.
  • Finegan, Jack. Handbook of Biblical Chronology, Rev. ed. (Peabody, MA: Hendrickson, 1998) 300, §516.

Doutro lado, segundo alguns astrónomos, as informações fornecidas pelo historiador Flavius Josephus (segundo as quais Herodes morreu após um eclipse da lua e antes da Páscoa, no seu 35º ano de reinado) indicam que Herodes morreu em 3 a.C., muito provavelmente em 24 de Janeiro do calendário juliano. A obra mais importante neste sentido é sem dúvida Antiguidades Judaicas que Josephus escreveu em grego no ano de 93-94 d.C.

Pelo que: difícil que Jesus tenha nascido depois do 3 a.C.

Baptismo de Jesus: 26 d.C.

Não temos provas históricas do Baptismo. O que sabemos é que João Baptista, segundo o relato do Evangelho, condenou publicamente a conduta de Herodes Antipas, que vivia com a sua cunhada Herodíades, viúva de Filipe; o rei prendeu-o João Baptista, depois, para agradar à filha de Herodíades Salomé que tinha dançado num banquete, mandou decapitá-lo. Esta versão é provavelmente falsa: Herodes Antipas (o filho de Herodes o Grande) estava preocupado com a actividade de possíveis revoltosos e o Baptista era um deles.

Segundo o relato de Flavius Josephus (mais uma vez em Antiguidades Judaicas), a prisão e a morte do Baptista tiveram lugar em Maqueronte e por esta razão a população judaica pensou que a derrota sofrida pelo exército de Herodes contra Areta IV, que teve lugar no Inverno de 36/37 e na qual Maqueronte foi destruída, fosse um castigo divino para a decapitação de João Baptista.

Portanto, o Baptismo teve lugar necessariamente antes de 36-37 d.C. Mas quanto antes? Aqui os Evangelhos não ajudam, bem pelo contrário.

O Evangelho segundo João difere dos sinópticos em relação à figura de João Baptista: segundo o este relato, João Baptista parece não conhecer Jesus, ao contrário do Evangelho segundo Lucas que os apresenta como parentes; além disso, segundo o Evangelho de Marcos, quando Jesus foi à Galileia para pregar depois do Baptismo, João Baptista estava na prisão, enquanto que segundo o Evangelho de João nessa altura o Baptista ainda não tinha sido encarcerado. Finalmente, imediatamente após o Baptismo, Jesus segundo os Sinópticos foi para o deserto; no Evangelho de João, porém, tal episódio está completamente ausente e este Evangelho diz explicitamente que Jesus, ainda no dia seguinte ao Baptismo, é visto pelo próprio João Baptista no rio Jordão e que a seguir irá três dias depois para Caná, na Galileia, para uma festa de casamento onde começará o seu Ministério.

Isso é o que pode ser facilmente encontrados nos Evangelhos. E esta narrativa complica as coisas: não há datas mas se João Baptista foi preso e morto em 34-35 d.C. e, segundo Marcos, Jesus foi para a Galileia quando o Baptista já tinha sido preso, tudo é colocado por volta do ano de 34-35 d.C.. Muito tarde.

Faz mais sentido ler o que diz o Evangelho de João, que coloca o Baptismo perto do episódio de Jesus que expulsa os mercantes do templo: se, como afirma João, os judeus da altura lembravam como o templo tinha sido construído há 46 anos, sabendo que a construção do templo teve início no ano de 20 a.C., é simples obter a data do Baptismo: 26 d.C. Falamos aqui do chamado Templo de Herodes, uma grande expansão do Segundo Templo, obras começadas por Herodes o Grande por volta de 20 a.C. e terminado em todas as partes apenas em 64 d.C. (Michael Grant, The Jews in the Roman World, Barnes & Noble, 1973, p.58). Em 25 de Setembro de 2007, o arqueólogo Yuval Baruch, juntamente com a Autoridade de Antiguidades de israel, anunciou a descoberta de uma das pedreiras que forneceu a Herodes o material para o Templo.

Então: 26 d.C.? Mais uma vez, os Evangelhos atrapalham. Lucas 3:1 relata que João Baptista começou a sua obra de pregação “no décimo quinto ano de Tibério”: e nós sabemos que Tibério tornou-se Imperador no ano de 14 d.C., altura da morte de Augusto. Agora: 14 d.C. + 15 anos = 29 d.C. Ops…

Temos que adiar tudo de dois/ três anos? Não sei. Eu ficaria com a datação proposta no Evangelho de João, perto do 26 d.C., porque Lucas tende a fazer bastante confusão quando o assunto forem as datas. Já agora:

Ministério de Jesus: ?

Quando é que Jesus começou o seu Ministério? Esta é outra grande dúvida. Porém, podemos afirmar com certeza quando teve início a última parte do Ministério: depois da morte de João Baptista, tal como afirmado em Mt 14.13, Mc 6.14. E dado que João Baptista morreu em 34/35 d.C., a última parte do Ministério de Cristo teve lugar não antes daqueles anos e provavelmente acabou um par de anos mais tarde.

Outra vez: tarde? Sem dúvida. Mas, em falta de outras evidências, as únicas datas que podemos aceitar são aquelas dos Evangelhos. E aqui as datas fazem um certo sentido: todos os quatro Evangelhos concordam que o dia da semana da crucificação de Jesus foi uma Sexta-feira. Os historiadores concordam acerca do facto de que Jesus foi crucificado no 14º dia de Nisan (o dia antes do Pesach no calendário hebraico). Entre os anos 26 e 36, os anos do mandato a Pôncio Pilatos, há apenas os seguintes dias em que o 14 de Nisan caiu numa Sexta-feira:

  • 22 de Março do ano 26 para o calendário juliano (20 de Março, recalculado no calendário gregoriano, ano 3786 do calendário judaico)
  • 3 de Abril do ano 33 para o calendário juliano (1 de Abril, recalculado no calendário gregoriano, ano 3793 do calendário hebraico)
  • 30 de Março do ano 36 para o calendário juliano (28 de Março, recalculado no calendário gregoriano, ano 3796 do calendário hebraico)

O dia 22 de Março do ano 26 pode ser excluído pois demasiado cedo. O dia 3 de Abril do ano 33? Possível, admitindo todavia que João Baptista tivesse sido morto perto do ano de 30 d.C., pelo menos um par de anos antes do começo da última parte do Ministério de Jesus. A data de 30 de Março de 36 d.C., pelo contrário, parece aquela que mais se encaixa, com quanto afirmado antes.

Mas todo este é um problema que ainda não tem encontrado uma solução unívoca: as tentativas de harmonização são muitas e, portanto, as datas propostas para a crucificação de Jesus variam entre os anos de 28 a.C. e o 36 d.C.

Nos evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos, Lucas) não existem indicações temporais que nos permitam marcar a passagem do tempo. Pode-se vislumbrar a menção de duas (distintas?) Primaveras durante o último Ministério de Jesus (Marcos 2:23), quando se depenam as espigas de grão maduro, e em Marcos 6:39, quando se menciona a erva verde, o que combinado com a Páscoa como altura da morte de Cristo pode sugerir um total de três Primaveras, assim pelo menos dois anos completos de Ministério. No entanto, é possível que o intervalo de tempo entre esses capítulos em Marcos seja de apenas alguns meses, não sabemos. A hipótese de uma duração plurianual pode ser confirmada pelo grande número de regiões e localidades mencionadas nos Evangelhos durante o Ministério de Jesus: é improvável que tudo tenha tido lugar num único ano.

Só o Evangelho de João menciona explicitamente três Páscoa durante o Ministério de Cristo:

  • a primeira em Jo 2,13-25, pouco depois do baptismo de Jesus, altura em que é colocada a limpeza do templo;
  • a segunda em Jo 6:4;
  • a terceira é a da morte de Jesus, de Jo 11:55 em diante.

Assumindo que João não deixou de fora nenhuma Páscoa, o que é obviamente possível (Jo 20:30; 21:25), a pregação de Jesus teria durado pouco mais de dois anos. É possível que a “festa dos judeus” mencionada em Jo 5:1 fosse a festa judaica por excelência, a Páscoa, e neste caso seria acrescentado mais um ano. No entanto, a análise exegética do texto de João leva à hipótese de que esta festa coincida com a segunda Páscoa: as passagens entre 4:54 e 5:1 e 5:47 e 6:1 são repentinas, e isto pode sugerir que o capítulo 5 estava originalmente entre os capítulos 6 e 7, ou entre 7:14 e 7:15. Em qualquer dos casos, a festa de Jo 5:1 seria a Páscoa de 6:4.

Assumindo portanto como válido o dado sobre o início do Ministério inferido de Lc3:1 e Jo2:20 (colocado perto do 28 d.C.), assumindo o dado das três Páscoa sugeridas por João, assumindo também que nenhuma Páscoa foi deixada de fora, somos obrigados a assumir uma data para a morte de Jesus na véspera da Páscoa (14 Nisan) do ano de 30, correspondente ao dia 7 de Abril de 30. Mas, como vimos antes, não houve nenhuma Sexta-feira 14 Nisan entre 27 e 32 d.C. E, ao aceitar estas últimas datas, temos que rever tudo acerca da prisão e da morte de João Baptista também.

Pelo que: alguém nos Evangelhos fez mal as contas. Isso está fora de discussão e complica muito qualquer reconstrução. Na dúvida, permito-me sugerir as palavras de quem, aos menos, sabe ler e traduzir o idioma utilizado na altura: Mauro Biglino, em particular o vídeo L’etá di Gesú, que esteve na base do artigo anterior (apenas com leves diferenças).

E a Arqueologia?

Acabamos com a Arqueologia: há achados que possam confirmar a existência de Cristo? Não. No entanto há restos ligados ao Novo Testamento, nomeadamente:

  • o segundo Templo ou Templo de Herodes, confirmado pela descoberta do muro ocidental e, como vimos, duma das pedreiras.
  • a inscrição de Pilatos: um bloco de pedra encontrado numa escavação em Caesarea Marittima em 1961, com os nomes Pilatus e Tiberium escrito no mesmo.
  • o ossário de Caifás: num pequeno túmulo familiar a sul de Jerusalém, perto da Floresta da Paz, em 1990 foram encontrados vários ossários, o mais elaborado dos quais tem a inscrição Jehosef bar Caiaphas (“Jehosef filho de Caifás”). Trata-se do primeiro achado arqueológico relativo ao nome Caiaphas, que na realidade teria sido um apelido, como relatado por Flavius Josephus em Antiguidades judaicas 23,35-39. Caifás era também o nome do sumo sacerdote mencionado no Evangelho segundo Mateus 26,3; 26,57 a quem Jesus foi conduzido por ordem de Pôncio Pilatos.
  • o poço de Betzaeta: o Evangelho segundo João 5:1-15 descreve um poço em Jerusalém, perto da porta das ovelhas, chamado Betzaetaeta e rodeado por cinco pórticos. Os restos correspondentes à descrição só foram descobertos no século XIX, e posteriormente foram indicados quatro locais como possíveis “poços de Betzaeta”. Não existe actualmente qualquer certeza quanto à sua identificação, mas poderia ser um deles.
  • Nazaré, que os Evangelhos declaram ser a cidade de origem de Jesus, não é mencionada na Bíblia hebraica, no Talmude ou nas obras de Flávio Josefo, mas alguns achados arqueológicos apontam para um povoado judeu próximo da actual cidade de Nazaré, tanto antes como depois da primeira revolta judaica em 70 d.C..

Só isso? Só isso.

Resumindo…

Diz Wikipedia versão inglesa:

Há um desacordo generalizado entre os estudiosos sobre os detalhes da vida de Jesus mencionados nas narrativas evangélicas, e sobre o significado dos seus ensinamentos. Os estudiosos diferem sobre a historicidade de episódios específicos descritos nos relatos bíblicos de Jesus, mas quase todos os estudiosos modernos consideram o seu baptismo e crucificação como factos históricos.

A seguir:

Baptismo

A existência de João Baptista no mesmo espaço de tempo que Jesus, e a sua eventual execução por Herodes Antipas é atestada pelo historiador Josefo do século I e a esmagadora maioria dos estudiosos modernos consideram autênticos os relatos de Josefo sobre as actividades de João Baptista. Um dos argumentos a favor da historicidade do Baptismo de Jesus por João é o critério do embaraço, ou seja, que se trata de uma história que a Igreja Cristã primitiva nunca teria querido inventar. Outro argumento usado a favor da historicidade do baptismo é que múltiplos relatos se referem a ele, o que normalmente é chamado de critério de atestado múltiplo. Tecnicamente, o atestado múltiplo não garante autenticidade, mas apenas determina a antiguidade. Contudo, para a maioria dos estudiosos, juntamente com o critério de embaraço, dá credibilidade ao facto de o baptismo de Jesus por João ser um acontecimento histórico.

Crucificação

John P. Meier vê a crucificação de Jesus como um facto histórico e afirma que, com base no critério de embaraço, os cristãos não teriam inventado a morte dolorosa do seu líder. Meier afirma que vários outros critérios – o critério de atestado múltiplo (ou seja, confirmação por mais de uma fonte), o critério de coerência (ou seja que se encaixa com outros elementos históricos) e o critério de rejeição (isto é, que não é contestado por fontes antigas) – ajudam a estabelecer a crucificação de Jesus como um acontecimento histórico. Eddy e Boyd afirmam que está agora firmemente estabelecido que existe uma confirmação não cristã da crucificação de Jesus – referindo-se às menções em Josefo e Tácito.

Na minha optica estas são afirmações embaraçosas, sobretudo quando referidas à crucificação.

“Os cristãos não teriam inventado a morte dolorosa do seu líder”? E por qual razão?

“Confirmação por mais de uma fonte”? Sim, mas fontes cristãs e nem de acordo entre elas: em Marcos 15:25, por exemplo, a crucificação tem lugar à terceira hora (9 da manhã) e a morte de Jesus à nona hora (15 da tarde). No entanto, em João 19:14 Jesus ainda está diante de Pilatos à sexta hora.

“Se encaixa com outros elementos históricos”? E quais? O único elemento hsitórico comprovado é que os Romanos costumavam crucificar os revoltosos.

“Não é contestado por fontes antigas”? Não, não é, mas pelo facto que as fontes antigas nunca trataram de eventos relacionados com Jesus. Doutro lado, no código de Nag Hammadi, Jesus aparece perante Jacó e afirma: “Jacó, não te preocupes por mim ou por estas pessoas. Eu sou aquele que estava dentro de mim. Nunca sofri de todo, e não fiquei angustiado. Estas pessoas não me fizeram mal. Pelo contrário, tudo isto foi infligido a uma figura dos governantes, e era conveniente que esta figura fosse destruída por eles”. Isso é: Jesus afirma não ter sido crucificado (Meyer, Marvin; Robinson, James: “The First revelation of James”. The Nag Hammadi Scriptures: The Revised and Updated Translation of Sacred Gnostic Texts Complete in One Volume, ed. 2009).

Pelo contrário: do ponto de vista médico, a crucificação de Jesus não tem sentido. Os condenados morriam depois de muitas horas de agonia, mais frequentemente após dias, razão pela qual os soldados costumavam partir as pernas dos crucificados para que todo o peso do corpo gravasse nos braços pendurados e isso provocasse a morte por asfixia. Jesus morreu após seis horas no máximo, muito pouco tempo.

Apesar dos saltos mortais de Wikipedia, continuamos sem provas. E reconstruir uma cronologia é excepcionalmente complexo. Isso significa que Jesus não existiu? Repito: nem por isso. Cristo bem pode ter exisitido. Mas falar de “História” é coisa bem diferente…

 

Ipse dixit.

5 Replies to “A historicidade de Cristo”

    1. A identificação de Flávio Josefo com Calpurnius Piso não seria um problema.

      O verdadeiro problema é que a maior parte do Novo Testamento foi escrito em grego koiné (a excepção é o Evangelho de Mateus, provavelmente em aramaico no original), na altura a “língua universal” e Flávio Josefo não falava grego, apenas hebraico, aramaico e latim. O grego utilizado no Novo Testamento varia bastante: aquele do Evangelho de Lucas, por exemplo, é um óptimo grego ao ponto que por esta razão é considerado como uma das melhores obras da literatura grega antiga.

      Podemos supor que Flávio Josefo escreveu em aramaico ou latim e que depois fez traduzir tudo. Mas então entramos em suposições atrás de suposições. E ficamos com outro problema: o Novo Testamento é formado por 27 livros. Se alguns são parecidos, outros diferem grandemente no estilo. Pelo que Flávio Josefo deveria ter dito aos tradutores não apenas para traduzirem mas também para manterem cada estilo que ele tinha escolhido em aramaico ou em latim.

      Resolvida esta questão, sobra apenas uma pergunta: foi Flávio Josefo também que escreveu os mais de 50 Evangelhos apócrifos em grego, latim, aramaico, copto, arménio, sírio, oxirrinco e persa? Tenho algumas dúvidas… Mesmo considerando apenas os apócrifos mais antigos (não depois do séc. II) falamos sempre de mais de 20 Evangelhos. Todos escritos por Flávio em estilos diferentes e todos traduzidos nas várias línguas?

      Finalmente, a identificação de Flávio Josefo com Cestius Gallus não faz sentido porque este era um Senador (e não um general como afirmado no documento) bem conhecido e citado, entre outros, pelos contemporâneos Tácito e Suetónio 🙂

  1. Olá Teresa: acho que vais ter fontes para estudar a vida toda. Segue em frente.

    Eu, depois de tanta confusão, que eu não sei de onde o Max tira tempo para tentar desembaraçar, continuo na mesma. Jesus não é História, nem arqueologia.
    Deve ter existido muitos rebeldes na época, contra o império romano, e pode que entre eles tenha havido um jesus, ou dois ou mais.
    O resto é uma estória, contada aqui e ali, aumentada, diminuída, estabelecida como pilar da cristandade ao gosto e medida dos interesses da igreja católica.
    Parece que todas as religiões precisam de uma ou mais referências concretas de adoração. O catolicismo não é o único. Se a referência não existir, se inventa. Se existir, se aproveita conforme a medida. Simples assim.
    E o resto corre por conta da fé dos fiéis.

    No meio disto tudo tenho uma curiosidade que é de onde saiu o suposto sudário de Cristo. Se der para esclarecer, agradeço, Max.

  2. Esqueci de dizer que tem uma ideia que sempre me acompanhou. O sadismo da igreja católica é algo extraordinário. Difere por exemplo do islamismo nas suas imagens. Enquanto neste último predomina a natureza, o céu e as estrelas, temos no catolicismo a imagem da tortura, um crucificado, que os fiéis carregam no pescoço, que as igrejas ostentam em primeiro plano, enfim…que incentivo a normalização da maldade.

  3. Pessoal com todo respeito, Jesus existiu gostem ou não, até mesmo críticos aceitam isso.
    A questão contemporânea é: os episódios narrados nos evangelhos ocorreram?
    Max, argumentos como “não há relatos contemporâneos” ou “não da para acreditar em nada que o evangelista escreveu pq ele era cristão” são facilmente refutados.
    O fato de não haver relato contemporâneo não significa nada até pq não temos o mesmo de Alexandre e ninguém dúvida da existência dele e há outros casos similares.
    Hoje na academia se estuda o novo Testamento como fonte para entender o contexto da época e tal não é um texto que se descarte só pq um cristão que escreveu.
    É claro que para acreditar em milagres seja necessário fé querer provar tudo como requisito para acreditar é uma ingenuidade sem tamanho
    Vejo que vários daqui associam a igreja católica com a historicidade de Jesus mas uma coisa não tem nada a ver com a outra, esse argumento que a igreja alterou a Bíblia ou criou Cristo tbm não tem fundamento sólido até pq vários dogmas católicos estão em oposto com o texto bíblico.
    Sejamos sinceros, tenho o direito de não ter fé e questionar mas negar tudo relacionado a religião já é absurdo
    Mas de qualquer forma parabéns Max e aos comentaristas, todo tema merece ser lido e discutido
    abraços

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