Manipulação: não é só televisão

Quando as pessoas se depararem com a expressão “manipulação das massa”, a primeira imagem que normalmente vem à mente é aquela da televisão e, no geral, dos média: diários, revistas, etc. Algo que transmite ideias , sugestões e conteúdos para os cérebros dos utilizadores.

Todavia, tudo isso está certo só em parte: é verdade que os media têm uma aplicação “imediata”, transmitindo directamente determinados conteúdos; no entanto, a fase do bombardeio mediático é muitas vezes o último elo de uma cadeia invisível, por trás da qual esconde-se o que poderíamos definir como a “fábrica da manipulação”.

Os meios de comunicação de massa, em última análise, não apenas difundem no éter ideias e conteúdos que já tiveram uma fase de preparação.
Tanto para citar as palavras do estudioso norte-americano Ben Shapiro:

A televisão reflecte aqueles que a criam e transformam todos os outros.

O primeiro e decisivo passo da manipulação das massas realiza-se na verdade com a manipulação dos manipuladores; ou, de acordo com um determinado tipo de linguagem, criando uma sub-elite que destina-se a espalhar um determinado tipo de mensagem.

Um bom exemplo disso pode ser encontrado na primeira parte do artigo Odessa: tudo segundo os planos: seria errado imaginar alguém da Nato que liga para os jornalistas dos vários diários ameaçando retaliações caso as noticias não sejam apresentadas duma forma conveniente”. Não é assim que funciona, nenhuma ameaça é precisa: o redactor já sabe qual apresentação é a mais apreciada pelo próprio director, o qual bem conhece qual a linha editorial escolhida pelo dono.

Da mesma forma, é errado pensar que as várias pop-star utilizem símbolos esotéricos para influenciar os mais jovens: não há ninguém da elite que contacte Lady Gaga para inserir no vídeo dela o Olho de Horus. O que acontece é que estas pop-star, verdadeiras máquinas para acumular dinheiro, são excepcionalmente sensíveis às tendências da sociedade, ao espírito e aos desejos desta; podem contar com especialistas de marketing que analisam o mercado (os que compram os cd, que assistem aos vídeos e aos concertos) e que nada deixam ao acaso, bem sabendo reconhecer quais pormenores têm um maior efeito nas massas.

E ao analisar a “moda” desta altura, particularmente entre as camadas mais jovens da população, podemos ver que existe um forte atracção exercida por determinados assuntos dark como o vampirismo ou os zombies. Mais que vasculhar os vídeos das várias Lady Gaga à procura do Olho de Horus, seria interessante tentar perceber qual a razão deste estado de alma: se for espontâneo ou induzido.

Provavelmente estamos perante uma mistura destas duas explicações: um sinal dos tempos (tempos sem um rumo claro, desemprego, pobreza, criminalidade: mas também um sentido de ameaça incumbente, algo não definido que pode concretizar-se em várias formas, como o terrorismo, a guerra, etc.) e sensações induzidas (entre as quais não podemos esquecer um efeito “espelho” da sociedade nas ícones pop; mas não é só isso). 

Não há uma “elite” que ameaça: é um mecanismo mais complexo, uma cadeia na qual todos sabem qual o papel que têm de desenvolver (para manter o emprego, para evitar problemas, para obter uma promoção, etc.), de forma consciente e inconsciente.

Em qualquer caso, um estado da alma que pode ser gerado ex-novo ou simplesmente gerido e/ou reforçado, por exemplo, através da disseminação de espectáculos, momentos de agregação, literatura ou moda orientados. Como diziam os Romanos: vulgus vult decipi, “as pessoas comuns querem sem enganadas”. A elite nada mais faz de que responder: ergo decipiatur, “então enganamos”.

A criação e a manutenção dos “opostos aparentes” tem este fim mesmo e a elite sabe como usar e até mesmo incentivar tendências aparentemente divergentes para os seus próprios fins: Direita e Esquerda, progresso ou preservação. Todavia, e este é o passo importante, a elite não se deixa influenciar por estes dualismos, não é arrastada nas contendas: limita-se a geri-las, a orienta-las.

É simples constata-lo com o que se passa nos Estados Unidos: enquanto as tropas são empenhadas em vários Países do mundo, oficialmente para combater o terrorismo, na mesma altura a CIA financia, directamente ou indirectamente, os grupos terroristas. E que dizer da luta contra os estupefacientes? A DEA é uma das organizações anti-drogas mais poderosas do mundo; no entanto, com a chegada das tropas da Nato no Afeganistão, o País voltou a ser o maior produtor de ópio do planeta.

Em ambos os casos, as duas vertentes servem os propósitos do regime: o terrorismo cria medo, instabilidade, aos quais a elite responde com acções militares que ampliam a influência de Washington, que pode assim desfrutar outras ocasiões, em novos Países, para semear o medo e intervir com as suas tropas (que podem bem ser militares ou civis: informadores, conselheiros, etc.).

Se olharmos para um mapa, podemos ver como a Primavera Árabe começou num País (acho ter sido a Líbia) para depois espalhar-se em várias direcções: o Egipto e a Síria no Oriente, a Tunísia e a Argélia no Ocidente; mas também o Chad e o Sudão, poucos depois, no Sul; e agora a Nigéria, ainda mais a Sul, para a qual a Administração de Obama prometeu hoje o envio de forças para ajudar na procura das raparigas raptadas.

Tudo isso tem necessidade duma base cultural, um estado de espírito que não atropele mas continue a justificar esta expansão baseada contemporaneamente no medo e no desejo duma falsa liberdade.

Pode parecer complicado, mas temos de lembrar que os tempos mudaram: a sociedade moderna pode contar com instrumentos antes desconhecidos ou mal compreendidos. Hoje, por exemplo, sabemos que um regime onde o poder for apoiado apenas no uso da força e da repressão, é um regime fraco, destinado a ser abatido cedo ou tarde.
Vice-versa, um regime onde exista uma pseudo-democracia, uma pseudo-oposição e onde os submissos tenham uma sensação de liberdade, é um regime que tem boas expectativas de durabilidade porque baseia-se no apoio (activo) de quem não entende ser explorado e limitado.

Para manter o tal apoio em alturas nas quais nem tudo corre como planeado (por exemplo, em ocasião duma profunda crise económica), eis que é possível recorrer à manipulação do estado da alma; e esta manipulação é muito mais eficaz quando consegue apresentar-se não apenas num mas em vários aspectos das nossas vidas.

É por isso que os media representam apenas o elo final da cadeia que quer “espalhar” um determinado estado de espírito. E, enquanto final, nem é elo mais importante: as notícias devem ser coerentes com quanto é esperado pelo cidadão, devem funcionar como uma confirmação de quanto anunciado e propagandado pelos responsáveis (nos quais o cidadão vota).

Dizia o Primeiro Ministro britânico Benjamin Disraeli, já no final do século XIX:

O mundo é governado por bem outras personagens, que nem sequer podem ser imaginadas por aqueles cujos olhos não chegam aos bastidores.

Um regime que controle e manipule apenas as notícias é algo muito limitado, que pode ser desmascarado de forma bastante simples. O truque é retirar a vontade de desmascarar e provocar a aceitação da nossa sociedade como a única possível: isso requer muito mais esforço, em vários níveis.
Criar apatia, retirar valores e confiança; implementar o medo, a confusão quando necessário, com repentinas explosões de violência também; preparar as novas gerações para que tudo proceda no mesmo sentido: tudo isso requer muito mais do que simples diários ou programas televisivos.
Esta é a nossa situação.
Ipse dixit.
Fonte: baseado no livro La Fabbrica della Manipolazione, de Enrica Perucchietti e Gianluca Marletta, Arianna Editrice

10 Replies to “Manipulação: não é só televisão”

  1. 'Não há uma "elite" que ameaça: é um mecanismo mais complexo, uma cadeia na qual todos sabem qual o papel que têm de desenvolver (para manter o emprego, para evitar problemas, para obter uma promoção, etc.), de forma consciente e inconsciente'

    Todos sabem o seu lugar. E é esse lugar que todos procuram manter, custe o que custar, bem como aqueles parcos direitos que nos permitem viver miseravelmente todos os meses.
    Já não se luta sequer pelo que se perdeu, mas antes, por aquilo que ainda se pode perder. E o medo é o timoneiro desta luta, que de luta nada tem.

    O estado de manipulação chegou ao ponto de cada um ser carcereiro de sí próprio. Não há melhor prisioneiro que aquele que acredita ser verdadeiramente livre. Neste ponto, todas as perspectivas de mudança esbarram numa parede, que de tão bem construída, se tornou intransponível.

    Krowler

  2. É uma máquina bem oleada onde cada um sabe bem o que precisa de fazer para tentar sobreviver.

    Poucos vivem, muitos sobrevivem… quando sobrevivem. Também sobreviver não é para todos.

  3. E começou com : Tese, antitese e síntese.
    Tem um livro antigo chamado : Dos e
    Erros e da Verdade , do filósofo Louis Cloud de Saint Martim, é como uma bússoa.

  4. Uma matéria que melhor explica a questão da Nigéria aqui mencionada:

    Nigéria- como Ocidente alimenta os terroristas:
    http://bit.ly/1os5FtC

    Dois fatores favorecem grupo que sequestrou duzentas meninas: pilhagem do país por transnacionais petroleiras e assassinatos praticados pelos EUA, por meio de drones.

  5. A indústria manipula os artistas e obriga-os a usarem ou a promoverem certo tipo de coisas. E quando não manipula, é porque os artistas pactuam com isso. Já houve quem confessasse isso.

  6. Olá Max: esse livro que mencionas, e que não conheço, deve ser excelente, inclusive por que gerou uma reflexão que me parece das melhores que por aqui passaram.A gente sabe que nenhum sistema se sustenta sem a aquiescência da maioria dos integrantes. Muitos pensadores, de uma forma ou de outra já demosntraram isso ( Foucault, Debord…), e a prática cotidiana de quem tenha dois neurônios conectados corrobora a tese.Às vezes me pergunto como, eu, tu, tantos leitores/comentaristas de ii, para ficar no nosso âmbito, chegaram a se constituir humanos do mundo atual, fugindo deste esquema geral, pensando/agindo fora do sistema? De quais fatores dependeram nossa "degeneração"? Penso que se conseguíssemos elaborar uma teoria a respeito dos dispositivos de poder que levaram um pequena parte da coletividade atual a fugir da conduta/pensamento da época, saberíamos atuar de forma mais consistente, arregimentando parceiros num "outro" universo de pensamento ação efetivamente livres e diversos de qualquer coisa até então pensada/sentida/vivida. Abraços

  7. Oi,
    Acho que o Maria mencionou acima:
    "Às vezes me pergunto como, eu, tu, tantos leitores/comentaristas de ii, para ficar no nosso âmbito, chegaram a se constituir humanos do mundo atual, fugindo deste esquema geral, pensando/agindo fora do sistema? De quais fatores dependeram nossa "degeneração"? Penso que se conseguíssemos elaborar uma teoria a respeito dos dispositivos de poder que levaram um pequena parte da coletividade atual a fugir da conduta/pensamento da época, saberíamos atuar de forma mais consistente, arregimentando parceiros num "outro" universo de pensamento ação efetivamente livres e diversos de qualquer coisa até então pensada/sentida/vivida."

    Pode dar um excente tema a ser explorado à lá Max, acho não tenho quase a certeza. É só uma ideia.

    Nuno

  8. Pois, porque é que alguns não seguem o programa? Eu penso que a escolha se faz na infância e depois não é possível alterar a decisão…

Obrigado por participar na discussão!

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