No ano passado, o governo italiano destinou um bilhão e meio de Euros em três anos para tratar de 80 mil doentes de hepatite C. No geral, isso significa cerca de seis mil Euros por paciente que serão gastos quase inteiramente para comprar os mais recentes medicamentos anti-hepatite. Cada tratamento tem a duração de três meses. Pelo que, seis mil Euros para uma cura de 90 dias podem parecer um preço muito alto. De facto, em outros Países as coisas até estão piores: tratar da hepatite com os mesmos medicamentos nos Estados Unidos custa mais de oitenta mil Dólares.
Quando um medicamento atinge preços tão altos, quase sempre há uma patente no meio: a patente é uma concessão que permite ao titular proibir a terceiros a exploração comercial da sua invenção. Os ingredientes activos, por exemplo, podem ser patenteados pelo pesquisador (normalmente: a casa farmacêutica). Então, durante vinte anos, somente o detentor da patente (ou quem comprou a licença) pode produzir o medicamento para a exploração comercial. O medicamento, portanto, será vendido num regime de monopólio, o que permitirá ao vendedor impor um preço muito alto no mercado. Não há concorrência, o produtor é só um, é aceitar ou largar (e morrer).
Duvida: mas se o preço fixado for demasiado elevado, o governo dum País mais nada pode fazer a não ser desistir de garantir aos cidadãos o direito ao tratamento? O problema surge cada vez mais frequentemente em Países com um padrão de vida alto também. Na verdade há uma saída: se o produtor não concordar em reduzir o preço, é possível que o governo peça a aplicação dos acordos internacionais TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, em bom português: “Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”) de 2006 que, em caso de emergências na saúde pública, permitem aos Estados recorrer à licença compulsória. Ou seja, autoriza um Estado a produzir o medicamento sem a permissão de quem detém a relativa patente e comercializá-lo a preço significativamente mais baixo.
A possibilidade de concessão da licença compulsória existe em todos os principais Países industrializados e não industrializados. Na Europa, apenas a Islândia não oferece essa possibilidade. É utilizada para garantir a disponibilidade dum medicamento (ou outro produto patenteado) quando a patente limita a sua difusão. Os Países em desenvolvimento são obrigados a recorrer com frequência ao sistema das licenças compulsórias para garantir o acesso aos cuidados de saúde para sectores da população que não podem pagar. Mas também acontece nos Países mais desenvolvidos: os próprios Estados Unidos, que abrigam a maior indústria farmacêutica do mundo, tiveram que ameaçar a aplicação da licença compulsória em 2001 para garantir estoques de ciprofloxacina, o antibiótico patenteado pela Bayer e eficaz contra possíveis ataques bioterroristas baseados em antrax.
A África do Sul e a SIDA
O debate em torno das patentes e das licenças compulsórias tinha surgido alguns anos antes na África do Sul, em 1997, quando o governo introduziu uma reforma do sistema de saúde para lidar com o problema da SIDA. Na altura, 20% da população adulta sul-africana era seropositiva e a terapia anti-retroviral custava cerca de 1.000 Euros por mês, num País cuja renda per capita média não ultrapassava os 2.300 Euros anuais. Na reforma, o governo não recorreu às licenças compulsórias, dada a ausência de indústrias locais capazes de produzir o medicamento, mas autorizou a importação paralela do medicamento de Países onde estavam comercializados a preços mais favoráveis.
Nada menos que trinta e nove empresas farmacêuticas processaram em conjunto o governo sul-africano à Organização Mundial do Comércio (a OMC, WTO em inglês) porque a reforma da saúde violava os acordos internacionais sobre as patentes. É verdade que as empresas farmacêuticas trabalham apenas em prol da nossa saúde, mas se mexermos no dinheiro delas ficam histéricas como cobras. Isso levou a uma controvérsia internacional que envolveu governos, empresas multinacionais (Big Pharma) e associações de paz: o direito à saúde pode justificar a violação dos acordos económicos internacionais?
Numa sociedade minimamente normal, uma tal questão nem existiria. Na nossa sociedade, pelo contrário, a resposta é menos óbvia. Se as razões humanitárias são evidentes para todos, por sua vez as empresas farmacêuticas têm defendido que somente graças às patentes é possível investir o dinheiro necessário para desenvolver novos medicamentos (cerca de 800 milhões de Dólares por cada nova substância activa). Portanto, ao enfraquecer as patentes, o acesso aos medicamentos existentes é garantido mas o desenvolvimento de futuros medicamentos é colocado em risco. Este parece um raciocínio bastante lógico: quem investe milhões de Dólares se depois não há lucro? Mas deste aspecto voltaremos a falar depois.
No caso da África do Sul não foi formado nenhum júri para resolver a disputa: em 2001, as empresas farmacêuticas retiraram as queixas (Big Pharma tem um coração de manteiga) perante uma mobilização incomum da opinião pública internacional (correção: Big Pharma tem medo de perder clientes). Em Novembro do mesmo ano, a OMC reuniu-se em Doha para revisitar as leis internacionais sobre as patentes.
Trips
Uma queixa apresentada por 39 empresas farmacêuticas foi uma novidade. Os regulamentos sobre as patentes tinham adquirido um status de lei supranacional apenas alguns anos antes. E esta tinha sido outra novidade, pois do ponto de vista histórico as patentes sempre ligaram o seu destino ao das nações individuais.
Desde as primeiras leis de Veneza do século XV, as patentes eram usadas principalmente para proteger as indústrias locais da concorrência estrangeira: portanto, era normal que cada País protegesse as especialidades nacionais com patentes e deixasse grande liberdade de imitação no caso de produtos importados. Na Suíça do século XIX, por exemplo, os produtos da indústria química alemã eram amplamente copiados e até mesmo revendidos na Alemanha a preços competitivos.
Em 1994 foi assinado um acordo histórico (o tal TRIPS) com o qual os Países membros comprometeram-se a uniformizar as suas leis sobre as patentes, recusando usá-las como uma ferramenta competitiva no mercado. O acordo foi promovido por uma intensa actividade de lobby para fortalecer a propriedade intelectual, o que prejudicou os Países em desenvolvimento que perderam meios estratégicos para promover o crescimento local. Ficou de fora a China que utilizou a pirataria intelectual como um motor de desenvolvimento económico; só em 2001 Pequim entrou na OMC.
Dopo o caso Sul-Africano, as rigorosas regras previstas no TRIPS foram postas parcialmente em discussão. Em novembro de 2001, a OMC reuniu-se novamente no Qatar para ratificar o princípio de que a propriedade intelectual nunca deveria impedir que os Estados garantam a saúde dos seus cidadãos e, em 2005, foi introduzida a possibilidade de emitir licenças compulsórias para poder produzir, importar ou exportar medicamentos no mercado paralelo nos casos de saúde pública.
Antes das patentes
A patente sobre os medicamentos é coisa relativamente recente. Em 1970, por exemplo, ainda quase não existiam e a mesma ideia de patente sobre os medicamentos parecia algo impossível. Hoje as empresas farmacêuticas gastam milhões de Dólares só para defender os direitos autorais, mas até poucas décadas atrás os fármacos não podiam ser patenteados na maioria dos Países industrializados. As primeiras patentes farmacêuticas só foram introduzidas em 1967 na Alemanha, em 1977 na Suíça, no ano seguinte na França e na Itália.
Pergunta: dado que as principais empresas farmacêuticas já existiam na altura (Bayer, Roche, Novartis, Sandoz, Pfizer, etc.), como conseguiam promover a pesquisa sem os fundos obtidos com a exploração das patentes? Como foi afirmado acima, ao enfraquecer as patentes o acesso aos medicamentos existentes é garantido mas o desenvolvimento de futuros medicamentos é colocado em risco, porque ninguém investe milhões sem haver certeza de lucros.
Em 2012 o economista italiano Michele Boldrin e o colega estadounidense David K. Levine publicaram um livro que tinha como título Against Intellectual Monopoly (“Contra o monopólio intelectual”): este sugere que patentes e direitos autorais são um mal inútil porque não geram inovação mas apenas travam a difusão de novas ideias. A análise leva muito pouco em conta as razões humanitárias, limita-se a falar de factos: as patentes são inúteis, se não prejudiciais, porque qualquer monopólio distorce o mercado.
Devido à generalização das patentes farmacêuticas […] as grandes empresas farmacêuticas estão acostumadas a operar como monopólios; os monopólios inovam o mínimo possível e somente quando são forçados a fazê-lo; em geral, preferem investir tempo na procura de lucros garantidos pelas proteções políticas.
A verdade? Quase todos os medicamentos realmente inovadores nasceram em laboratórios com financiamentos públicos. E as empresas farmacêuticas, antes do sistema das patentes, sobreviviam (e bem) com a clássica regra do mercado chamada “concorrência”: é esta que deve empurrar as empresas farmacêuticas a investir na pesquisa, os lucros devem derivar das vendas, tal como acontecia antes das patentes e tal como acontece num mercado livre.
Doutro lado, somos diariamente atingidos pela propaganda que idolatra os benefícios do mercado livre: por qual razão o sector (privado) dos medicamentos deve funcionar em regime de monopólio?
E a Índia?
Para acabar, um olhar dirigido sobre uma realidade diferente: a Índia. Nos últimos dez anos, a indústria farmacêutica indiana ganhou um papel central na produção de medicamentos genéricos para exportação. Apesar de ser parte da OMC desde 1985, a antiga colónia britânica manteve uma assinalável liberdade de manobra no campo das patentes farmacêuticas. Para promover a indústria local, a protecção da propriedade intelectual é muito branda e fortemente influenciada pela política da antiga colónia. Dito de outra forma: estão a borrifar-se pelas patentes. Até agora, a Índia está a percorrer a estrada que, durante a Revolução Industrial, tinha sido seguida por Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos. Mas a situação indiana, tem uma particularidade.
Junto com a China, a Índia é também um enorme mercado que pode ser conquistado nas próximas décadas. Em 2050, de acordo com as projecções, a Índia terá superado a China em termos de população: um bilhão e setecentos milhões habitantes. Portanto é do subcontinente indiano que as principais empresas farmacêuticas esperam obter os maiores lucros no futuro: por esta razão aceitam as regras daquele mercado, mesmo que nos factos este ignore as patentes. Nada de queixas em tribunal: apesar dos lucros perdidos, as represálias contra o governo indiano são muito tímidas. Porque Big Phama sabe fazer as suas contas.
Ipse dixit.
Nota 1: para evitar repetições, no texto utilizei os termos “patentes” e “direitos autorais” como se fosse a mesma coisa, mas não são. Uma patente é uma concessão pública que permite ao seu titular proibir a terceiros a exploração comercial da sua invenção. O direito autoral é um conjunto de prerrogativas conferidas por lei à pessoa física ou jurídica criadora duma obra intelectual.
Nota 2: O livro de Boldrin e Levine, Against Intellectual Monopoly, está disponível gratuitamente em língua inglesa na página internet dos autores neste link (ficheiro Pdf).
Esta “industria” “esquece” que muito dinheiro é injectado pelo sector público quer directamente quer às “Fundações”.
Mas são os donos que melhor dão a opnião como a coisa funciona, para os adormecidos:
https://www.telesurenglish.net/news/Goldman-Sachs-Is-Curing-People-Profitable-for-Pharmaceutics-20180424-0026.html
Olá Max: no Brazil nos queixamos muito do SUS, o serviço público universal de saúde: filas para agendamento de consultas, exames, demora para tudo, superlotação de hospitais etc. De fato, tudo isso acontece, do meu ponto de vista porque a procura é demasiada, exorbitante, decorrente do colapso de outros sistemas institucionais brasileiros. Vejamos:
1.Entre nós não existe praticamente segurança do trabalhador, logo um número excessivo de trabalhadores sofrem acidentes;
2.Os acidentes de trânsito no país equivalem em número às vítimas de uma guerra civil;
3. A violência doméstica e social no Brazil tem números estratosféricos. As vítimas em geral são atendidas pelo SUS.
4. O alcoolismo, o tabagismo, as drogas ilegais, o descontrole do uso de drogas legais mais baratas, o stress, a depressão, a comida envenenada pelos pesticidas proibidos no mundo inteiro atingem batalhões levados para o SUS.
5. A pressão alta, as doenças cardíacas, a dengue, o câncer…tudo vai para o SUS.
Até a jovem mãe, com 15, 12 anos, que não tem orientação de ninguém, as mães que não sabem ou não tem como colocar roupa em função do clima em seus filhos e eles vivem resfriados, com asma e bronquite, e até os velhos abandonados que não sabem que a doença que toma conta deles é a solidão, Todo esse povo amanhece na segunda-feira na fila do SUS.
Às vezes, quando eu tenho tempo, passo pelo posto de saúde para dar uma ajuda pro pessoal: médico, dentista, assistente social, psicólogo, enfermeira, atendente, faxineira, motorista, secretária. E lá o povo recebe atenção, curativo, pedidos de exames, muitos de alta complexidade, remédios, genéricos em geral. Mas se o pessoal desconfia que não está bom, faz uso de outros (há uma lista enorme de medicamentos disponíveis, além de material de enfermagem para levar para casa para uso, e também material de limpeza pessoal como escova de dentes, dentifrício, colírio, Corega para segurar a dentadura, cotonete para limpar ouvidos, lixa para as unhas e para os pés, preservativo. No Postinho, como chamam, a assistente social anota toda a gente, conversa, vai verificando quem é indigente, se não pode ir no local de exame o motorista leva, se não pode ir buscar os exames, a secretária pega os resultados pela internet do Postinho. Lá também chega a caminhonete do Samu com o pessoal menos “avariado” que não coube nem no corredor do hospital. Demora, mas é atendido e ganha os medicamentos necessários. Lá o pessoal separa os atendimentos em comum, urgência e emergência, Nessa guerra contra as mazelas brasileiras, no Postinho ninguém para entre 8h da manhã e 5h da tarde, de segunda à sexta.
Hoje fui caminhar cedo como sempre, passei pela fila do Postinho, dei bom dia para os protagonistas da fila que vão uma hora antes da abertura do serviço para tagarelar (o Postinho também funciona como local de socialização) e me perguntei: o que vai ser disso tudo quando o serviço de saúde no Brasil for privatizado?
Agora, passei pelo computador aqui em casa e vim ler o artigo pendente, e me pergunto: com ou sem as mesquinhas iniciativas da Big pharma, quais remédios os eleitores do Capitão, que frequentam a fila do Postinho vão poder adquirir? Quando vai acontecer novamente os mutirões para diagnóstico de catarata nesta velharia, e encaminhamento para cirurgia?
Ri de mim mesma pensando que, pelo menos, talvez não haja também mutirão para vacinação. Ou esta haverá? Afinal vacina é um dos melhores negócios da Big phama.