Tunísia: a crise alimentar no início do Ramadão

Peru e Tunísia não poderiam ficar mais distantes: América do Sul dum lado, África do Norte do outro. Mas a crise é a mesma: razões políticas unidas agora a crises económicas. E se o mal estar político tem origens diferentes, a crise económica tem a mesma base.

Pegamos no caso norte-africano. Middle East Eye, uma publicação online especializada no mundo árabe, explica:

Nos supermercados tunisinos, as prateleiras estão vazias há semanas. É quase impossível encontrar necessidades básicas tais como farinha, arroz, sêmola, açúcar e ovos. “Armazenamos o compartimento da farinha várias vezes ao dia, mas em poucos momentos já desaparece”, diz Khairi, que trabalha num ramo do supermercado Carrefour na área metropolitana de Tunes.

A situação não é diferente nas lojas de bairro. Numa loja de fruta e legumes, um vendedor de vegetais pergunta aos seus clientes: “Quem quer o último pacote de farinha?”. É preciso levantar-se cedo para encontrar pão, um alimento básico da dieta tunisina. Todos os dias, longas filas de compradores estendem-se fora das padarias e os padeiros têm cada vez menos para vender.

“Recebo cerca de metade da farinha entregue nos meses anteriores e às nove horas da manhã já se foi”, diz Amor, um padeiro no concorrido mercado central de Sidi Bouzid, uma cidade no centro da Tunísia onde os protestos irromperam no final de 2010, levando à queda do ex-presidente Zine el Abidine Ben Ali.

Uma situação explosiva

Em meados de Março, os padeiros da província de Ben Arous, no sul da Tunísia, ameaçaram entrar em greve por causa da exasperação. Houve numerosos episódios em que multidões assaltaram os camiões de entrega e as imagens deram as voltas nas redes sociais. Num vídeo filmado em Sidi Bouzid, um grupo de pessoas saqueia uma carrinha que transporta sacos de farinha de sêmola.

Quanto mais os alimentos mais básicos se tornam escassos, mais os preços sobem. Nas padarias que não recebem subsídios, o custo do pão aumentou 25 por cento nos últimos dois meses. Uma consequência da guerra na Ucrânia e da volatilidade do preço do trigo. Para além dos alimentos, o preço do petróleo também está a subir em flecha. “Esta situação não surgiu do nada. Há um ano atrás previmos o que temos vindo a ver nos últimos dois meses”, diz Houssem Saad, da Alert, uma associação que luta contra o que é conhecido na Tunísia como a “economia do lucro fácil”, um sistema que beneficia apenas algumas famílias bem “contectadas”. Há vários anos, o colectivo Saad tem vindo a alertar para os riscos estruturais do sistema de abastecimento alimentar da Tunísia, baseado nas importações e no capitalismo “das amizades”.

O centro Carnegie Middle East adverte que a crise financeira tunisina, combinada com as implicações económicas da guerra na Ucrânia, pode tornar a situação “explosiva”. Segundo Layla Rihai, da ONG Tunisian Platform of Alternatives, “a crise alimentar é inevitável”.

A cadeia alimentar tunisina está perigosamente dependente das importações. De acordo com os últimos dados publicados pelo Departamento de Cereais e confirmados pela Alert, a Tunísia compra mais de metade do trigo duro que utiliza para fazer massas e outros produtos em mercados estrangeiros. Noventa e sete por cento do trigo mole utilizado para satisfazer as necessidades de pão no País é também cultivado no exterior.

A partir de Dezembro de 2019, devido à instabilidade financeira, o governo tunisino já não pode importar a crédito e é forçado a liquidar todas as importações em dinheiro. E agora que os fundos estão a esgotar-se, os fornecedores não estão a enviar mercadorias até que os pagamentos comecem. “Os navios podem ficar no mar durante cinco a seis semanas, até o Departamento de Cereais negociar um empréstimo com um banco privado a uma taxa de juro muito elevada. Cada dia de espera custa entre quinze e vinte mil Dólares e isto, por sua vez, também contribui para o aumento dos preços”, diz Saad.

Uma proporção significativa dos alimentos estraga-se antes de ser descarregada. Desde o início da guerra que envolve a Rússia (o maior exportador mundial de trigo) e a Ucrânia (em quinto lugar e o País de onde provém metade do trigo mole importado pela Tunísia), os mercados tornaram-se instáveis e entre meados de Fevereiro e princípios de Março o preço de um alqueire de trigo (27 quilos) subiu quase 40%.

A Tunísia está agora a lutar para acompanhar o aumento dos preços no mercado internacional. A 11 de Março, o Departamento de Cereais não assinou um acordo para assegurar as importações de trigo de Maio: os fundos disponíveis eram insuficientes. “Neste momento, a procura global é muito elevada e os fornecedores estão a dar prioridade aos bons pagadores antes de satisfazerem as exigências dos menos fiáveis”, diz Saad, que há muito tempo se mantém a par dos fornecimentos alimentares que entram no País a partir dos portos. “As reservas de cereais que temos devem durar até ao final de Maio”, explica, enquanto que o açúcar, o chá e o arroz “durarão até Junho”.

O racionamento e a resposta policial

Há já várias semanas que aparecem cartazes nas prateleiras dos supermercados que dizem “Dois quilos de açúcar, arroz e farinha por cliente no máximo”. Os padeiros também começaram a racionar pão. “Estamos a entrar num período de controlo do consumo que irá durar bastante tempo”, diz Riahi. “Por enquanto, não há falta de stocks”, diz ele, “mas o governo já começou a racioná-los para manter o preço dos alimentos estável e evitar gastos em subsídios que se tornariam necessários se os custos explodissem”.

Para encorajar as pessoas a reduzir o consumo, o Ministério da Saúde oferece conselhos dietéticos: “Açúcar, sal e alimentos fritos são maus para si, consomam menos e melhoram a sua qualidade de vida”. Mas Saad é céptico. “Qual é a lógica de tais conselhos quando o País se encontra no meio de uma crise alimentar muito grave e para os tunisinos alimentarem-se a si próprios está a tornar-se um desafio?”, pergunta. No período que antecedeu o Ramadão, as lojas tentaram armazenar por todos os meios. E era exactamente isto que o governo tunisino queria evitar, dada a escassez que se aproximava.

A guarda nacional, a polícia e por vezes até o exército foram destacados para contrariar o que o Presidente Kais Saied chamou de “especuladores”, ou seja, aqueles intermediários que retêm os stocks de alimentos para lucrar com a bolha dos preços. A realidade, porém, é que “a polícia está a visar pessoas que acumularam pequenas quantidades de alimentos, é absurdo”, diz um activista do Alert que pede para permanecer anónimo.

O Ministro do Interior, por exemplo, apontou a apreensão de 5.503 litros de óleo vegetal. Uma quantidade irrisória quando se considera que o consumo nacional é de cerca de 240.000 toneladas por ano. “São os grandes grupos industriais e as empresas de transformação alimentar que acumulam as matérias-primas. Dêem uma vista de olhos às fábricas de transformação de atum e sardinha, é onde acaba a maior parte do óleo subsidiado”, diz Saad.

“A crise está a tirar-nos os nossos últimos pedaços de dignidade. Deixámos de comer carne há muito tempo, depois desistimos do peixe. Se nos tirarem o pão, não teremos mais nada”, diz Marwa, uma professora de 36 anos de idade. Segundo Riahi, esta crise é uma oportunidade para repensar toda a cadeia de valor alimentar: “Uma mudança de rumo nas políticas agrícola e alimentar é necessária e urgente”.

Esta mudança só pode ser alcançada através do desmantelamento dos “três ou quatro cartéis” que monopolizam o sector alimentar do País. “Precisamos de transferir os subsídios do consumo para a produção”, diz ele. “Investir em grãos locais, permitir aos agricultores tunisinos gerir a terra, repensar as políticas da água: estes são os passos necessários para construir a soberania alimentar e melhorar a qualidade do consumo”, diz Riahi. “Se não repensarmos todos estes factores, os problemas sociais não resolvidos permanecerão, e serão as carências alimentares recorrentes que nos atacarão”.

Soberania alimentar: uma blasfémia num mundo globalizado, onde todos têm que depender de todos. E onde basta pouco para que uma crise local tenha reflexos em qualquer canto do mundo. Pensando bem: uma arma perfeita.

 

Ipse dixit.

Imagem: Food shop in the old medina of Tunis Faiza affes, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

2 Replies to “Tunísia: a crise alimentar no início do Ramadão”

  1. Típico exemplo de uma civilização embretada, onde quem especula enriquece e quem produz apenas sobrevive…

  2. Olá Max e todos:
    As pessoas pensaram que os deuses eram bons e queriam nosso bem estar com a globalização.
    Mas os deuses são cruéis. Primeiro nos ensinaram a trabalhar fora, comer fora, divertir-se fora, viver o máximo possível fora.
    Depois nos enjaularam nos minúsculos “lares verticais”, com 48 metros quadrados, onde tudo se fazia nas áreas de lazer, de brinquedos para as crianças, de piscina, de sauna, de festas, então proibidas porque poderia haver contaminação.
    Foi então que adultos e crianças não sabiam fazer nada dentro de casa, mas só podiam sair uma vez por semana para fazer compras. Os individualismos, então confundidos com autonomia explodiram e com eles os divórcios, suicídios de grandes e pequenos e perda de sentido para crianças e adolescentes, tornando-se mais zumbis do que já eram.
    E então veio a escassez: de verdade, de realidade, de independência, de água, de combustíveis e a última, de comida.
    Grandes e pequenos não sabiam fazer um ovo frito. Muito menos criar galinhas e produzir que seja 4 ovos ovos por dia, para uma família de 4 pessoas. Entusiasmados, tinham se enfiado nos “lares verticais”, onde eles não cabiam, quanto mais uma gaiola para 4 galinhas. E nem sabiam manter a gaiola limpa, as galinhas alegres e saudáveis ainda que fosse em uma gaiola. Não, isso seria indigno, simplesmente ridículo. Ovos de galinhas saem do supermercado e não da gaiola das galinhas.
    Mas o supermercado está esvaziando, a comida escasseando, e os urbanos nada sabem fazer para resolver os problemas que se avolumam porque acharam que suas vidas e felicidade não passava por soberania individual e coletiva.
    Confiaram nos deuses, e se escafederam.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: