Gás: os preços sobem mas não há escassez

Ontem o último artigo fechava-se com um gráfico que ilustrava a situação acerca do fornecimento do gás russo. A fonte do gráfico é composta por dois economistas, Giovanni Zibordi (que sigo há anos no seu sito Cobraf) e Paolo Becchi (professor da Universidade de Genova e editorialista do diário económico Il Sole 24 Ore), num artigo que pode também ser lido no blog do vice director dum dos principais diários italianos, Il Giornale, Nicola Porro.

ZIbordi e Becchi explicam quanto segue: o preço do gás no mercado explodiu, de facto, como noticiam os jornais. Por exemplo, veja-se este gráfico publicado pro Bloomberg:

Fonte: Bloomberg

A linha vermelha segmentada representa o preço do gás: impressionante o seu andamento durante as últimas semanas.

Todavia, este não é o gás que chega por gasoduto da Rússia. Os “serviços públicos”, ou seja as principais empresas de gás e energia que vendem ao grande público, continuam a receber gás da russa Gazprom como antes e aos preços antigos, enquanto os preços mais altos mencionados nos jornais (como o do mercado de Holandês de Roterdão mostrado no gráfico acima) são pagos pelos consumidores, sejam empresas privadas ou cidadãos.

As companhias de gás estão a ganhar quantias muito elevadas de dinheiro porque estas grandes distribuidoras costuma ter contratos de longo prazo com os russos em troca dum preço fixo. E este é agora muito inferior ao preço de referência do mercado. As companhias de gás estão a maximizar os lucros com estes contratos, pedindo à Gazprom que lhes envie a máxima quantidade possível de combustível: isso explica o gráfico publicado ontem (e repetido em abaixo), onde é possível observar que as exportações russas de gás aumentaram desde o começo da guerra na Ucrânia.

Fonte: Investing.com, BertHub.com

Podem os grandes distribuidores pedir um aumento do fluxo do fornecimento? Podem, ao abrigo dos contratos, solicitar um aumento até um certo limite, e obviamente estão a tirar partido disso. O que significa que, indirectamente, tiram partido da guerra.

No caso do gás, portanto, os russos não só continuam a envia-lo com um fluxo igual ou superior, mas até não beneficiam do aumento dos preços de mercado, porque condicionados pelos contratos de longo prazo. Obviamente, Moscovo ganha uma maior receita gerada pelo maior fluxo.

Mas então, que gás é aquele mostrado nos gráficos que de vez em quando aparecem nos jornais e que demonstram um sensível aumento das cotações? Estes preços referem-se ao gás enviado por navio em forma liquefeita, o chamado LNG que chega da América, da Austrália ou da África: é aquele o gás cotado em Roterdão (o principal hub europeu neste sentido), por exemplo, com um preço que flutua agora até 30% por dia, mas que em média é hoje pelo menos 10 vezes superior ao de um ano atrás. Os consumidores da UE pagam exactamente este preço de mercado porque nos contratos com as empresas distribuidoras é explicado que a cotação utilizada como base das tarefas é aquela praticada no mercado de Roterdão.

Tudo isso significa também outra coisa: não há falta de gás. Não poderia haver dado o maior fluxo da Rússia. E nem vamos esquecer a presença de stocks nacionais, que por enquanto não estão em risco. Não há nenhuma falta que justifique em termos de oferta e procura preços tão mais elevados.

Pode-se argumentar que, como há uma guerra, o fluxo de gás poderia ser interrompido no futuro e os especuladores (termos derivado do latim speculari que significa “olhar para o futuro”), ao imaginar um possível cenários de escassez, fazem subir o preço. Faz sentido: numa economia de mercado qual é a nossa, as flutuações de preços fornecem teoricamente “sinais” aos produtores e aos consumidores para ajustar a oferta e a procura. Isto é verdade no caso do petróleo, onde as cotações variam dum dia para outro de forma considerável. E poderia fazer sentido também no caso do gás porque, como vimos, no hub de Roterdão as variações chegam ao 30% por dia. Mas, contrariamente ao que acontece com petróleo, na grande maioria dos casos o gás é vendido através de contratos de longo prazo. Mesmo no gás LNG enviado por navios (que em qualquer caso é apenas uma fracção do gás total vendido), em dois terços dos casos é fornecido com base em contratos que duram anos. E o gás LNG via mar representa apenas 10% do gás fornecido e consumido, pois o transporte vai mar é dispendioso.

Na prática, os meios de comunicação apresentam gráficos que não falsos mas que estão referidos aos preços spot, isso é, aos preços que variam dia após dia. Ao não considerar os contractos de longo prazo (que, como vimos, constituem a grande maioria), os gráficos e até as notícias das cotações “que disparam” não reflectem o verdadeiro custo pago pelas empresas distribuidoras.  Se, no entanto, todos os clientes, empresas e famílias estão agora a pagar muito mais, isso não se deve a um aumento do custo do gás.

Concluem Zibordi e Becchi:

Se tudo isto tivesse acontecido há 20 ou 30 anos atrás, o governo, que também era proprietário destas empresas energéticas por não serem privadas e estarem cotadas na bolsa com accionistas, etc., ter-lhes-ia simplesmente ordenado para limitarem o preço que cobram com base no custo real.

Ter um governo deve servir, no campo económico, exactamente nestes casos. Evitar que alguma entidade privada possa make a killing (que indica, no jargão financeiro, “matar” economicamente alguém) à custa do público.

É verdade: com as empresas dos sectores estratégicos nacionalizadas, em alturas como estas a especulação seria limitada. Mas toda a diversão seria perdida.

 

Ipse dixit.

Imagem: , public domain, not copyrighted, no rights reserved, free for any use

One Reply to “Gás: os preços sobem mas não há escassez”

  1. Olá Max e todos: nunca tinha ouvido falar nesta ESPAS. E não sei se tem algum poder decisório. Meu universo “perverso” sempre girou em torno de FMI, bancos centrais e congêneres.
    Mas uma coisa é certa: o artigo anterior deixa claro que os acontecimentos na Europa eram previsíveis, e ninguém das altas esferas foi pego de surpresa. Grande, Max, o aparente caos nas instituições decisórias, e planos de última hora não são reais.
    No artigo de hoje, novo desmantelamento da aparência: é provado que não falta gás. O que falta é vergonha das distribuidoras, e a compra insensata de gás liquado dos EUA, muito mais caro, da produção até a entrega.
    E o vetor para não se deixar levar pelas aparências é o tal “siga o dinheiro” que continua mostrando que uma guerra sempre é boa para quem pode se aproveitar dela pra ganhar, e os perdedores são irremediavelmente os mesmos.
    Sempre acreditei que a escassez de água, de comida, de chuva, de seca, é parcial o quase sempre promovida, patrocinada e distribuída por interesses escusos.
    Mas fui bem embrulhada com a escassez de gás O fechamento do North S. 2, a ideia nem sempre apropriada, de que se falta o preço sobe, vai permitindo a aceitação das aparências, até para quem sabe que elas enganam.
    Obrigadíssima

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