Mercenários

Antigamente o nome era “mercenários”. Hoje a versão mais utilizada é o elegante “exército privado” ou o ainda mais fino contractors. Mas sempre mercenários são. Obviamente, estão presentes na guerra da Ucrânia, em ambos os lados. E não desde hoje.

A actividade dos mercenários é muito antiga. Sabemos com certeza que já o Faraó Ramsés II (séc. XIII a.C.) utilizava mercenários para combater os Hititas. E Ramsés de certeza nem tinha sido o primeiro. O mais famoso? Provavelmente Sir Francis Drake, corsário inglês e depois cavaleiro ordenado pela Rainha Elisabete I.

Na Ucrânia os nomes são muito menos conhecidos mas presentes com regularidade nos últimos anos. Já na altura da Revolução Laranja na Ucrânia (Euromaidan de 2013-2014) havia uma presença estrangeira armada nas barricadas, bem alinhada à extrema Direita. Assim que rebentou a guerra no Donbass, a Ucrânia oriental tornou-se uma terra de conquista para mercenários de todas as convicções ideológicas. Tchetchenos, Checos, Moldavos, Cazaques.

Muitos vêm dos Balcãs: os sérvios para ajudar os seus “irmãos russos”, os croatas para apoiar os ucranianos. Os soldados da organização sérvia Jovan Sevic gabavam-se nos jornais de Moscovo de terem destruído muitos tanques ucranianos. O governo de Kiev capturou um voluntário de Belgrado, Dejan Berić, um atirador da companhia North Wind que luta com os separatistas em Donetsk. Do outro lado, em 2015, descobre-se que 25 croatas recrutados pela organização baseada em Zagreb Misanthropic Division faziam parte do Batalhão Azov, uma formação neonazi mais tarde integrada no exército de Kiev. Treinavam sob as ordens de um atirador sueco chamado Mikael Skilt. Um destes mercenários, Denis “o Sargento”, é conhecido como o líder dos hooligans da Dínamo de Zagreb, os Bad Blue Boys.

Mas não apenas eslavos nas fileiras de Kiev: há também soldados israelitas como relata o diário de Tel Avive Ynet: neste caso seriam antigos soldados das unidades de elite da brigada Golani que estão a combater do lado das tropas ucranianas. E entre as tropas ucranianas há até judeus ultra-ortodoxos: não podemos esquecer que no País a comunidade hebraica é forte, sendo estimada em 250 mil indivíduos.

Recentemente, uma operação internacional levou à detenção e julgamento na República Checa de um recrutador bielorrusso, Aleksey Fadeev, em negócios com um representante da República de Donetsk, que tinha na sua agenda 26 mercenários de vários Países, pagados 5 mil Dólares por mês. Por outro lado, os pró-russos também denunciam a presença de contractors da empresa privada Lancaster-6, sediada no Dubai, e da antiga Blackwater americana.

Na Ucrânia, de acordo com a OSCE, os EUA investiram 7 mil milhões de Dólares em armas, formação e “outras actividades militares”. Relata Il Corriere della Sera que, a 23 de Fevereiro de 2020 houve um jantar em Kiev entre o chefe da Academi, Erik Prince, o irmão de um Ministro da Administração Trump e a comitiva do Presidente Zelensky. Prince tinha vindo para verificar a segurança de Rudolph Giuliani, o antigo Presidente da Câmara de New York que estava em missão (e que mais tarde ficou implicado no Ucrania-gate). Foi uma noite discreta numa tranquila sala de karaoke no Vodka Grill: “Era a noite ideal para negócios: mercenários em troca de contractos de armas”.

Tudo isso apesar do ponto 10 dos acordos de paz de Minsk, assinados entre 2014 e 2015, exigir a “retirada dos mercenários estrangeiros”. O que nunca aconteceu.

As empresas

A formação aos mercenários é oferecida por agências especializadas de Rússia, israel e Estados Unidos, com custos que vão de 2.000 a 4.000 Euros para dez dias de formação. pagos pelos mesmos mercenários. Considerado um ordenado de 5.000 Dólares, o investimento compensa. Uma vez acabado o curso, com um pouco de sorte (ou azar, pontos de vista) começa o trabalho no terreno.

Turquia, Sudão, Afeganistão, Irão e mesmo a galáxia jihadista têm hoje “empresas de segurança” criadas pelos seus veteranos que mantêm laços privilegiados com os respectivos governos. Há afegãos, sírios, libaneses e iraquianos ao serviço do Irão: para além de lutarem por dinheiro, têm a cola da fé xiita.

No caso de Isis e Al Qaeda, é a sociedade Malhama Tactical que se encarrega da formação dos voluntários: uzbeques, tchetchenos e dagestãos (“dagestões”? “dagestanos”? Boh…), todos rigorosamente sunitas.

A Turquia, do seu lado, oferece os drones de bombardeamento com anexos instrutores privados. Os drones turcos (e os seus pilotos) estão actualmente a lutar contra Moscovo na Ucrânia. Ankara alistou sírios e antigos voluntários da jihad após a dissolução do Estado islâmico e está a destacá-los para a Líbia.

Rússia: a Wagner

Putin tem os homens da empresa Wagner à sua disposição. Neste caso são Ucrânia, Síria, zona do Sahel e agora o Mali os teatros mais activos. Russos e ex-soviéticos das repúblicas da Ásia Central trabalham para Wagner. Em meados de Dezembro do ano passado, a UE travou uma guerra de sanções contra os mercenários russos do Grupo Wagner, financiado pelo oligarca Evgheny Prigozhin (que, por mero acaso, é hebraico). Por quanto possa parecer estranho, a UE esqueceu-se de todas as outras empresas de mercenários e concentrou-se apenas na Wagner, acusada de “reacender a violência, pilhar recursos naturais e intimidar civis em violação do Direito Internacional, incluindo a lei dos direitos humanos”. O que é exactamente o que sempre fizeram os mercenários.

O Presidente russo Vladimir Putin, em 2019 e respondendo a uma pergunta sobre a presença do Grupo Wagner na Líbia, disse que se lá houver russos, “eles não representam os interesses do Estado russo e não recebem dinheiro do mesmo”. O porta-voz do Presidente russo, Dmitry Peskov, disse em Julho passado que de jure (do ponto de vista legal) não existe nenhum exército privado na Rússia”. Evidentemente utilizam outro nome.

China: com desconto

Desde que tem uma base militar em Djibuti, a China tem estado a despejar material de guerra em África, bem como pessoal para-militar, de acordo com muitos observadores internacionais. Actualmente, segundo o Instituto da Paz de Estocolmo, o Sipri, as empresas de segurança chinesas são mais de 5 mil e empregam quase 4.3 milhões de pessoas com “taxas” muito mais baixas do que os seus concorrentes ocidentais. Tipicamente chinês. Mas até agora não parecem envolvidos com homens em território ucraniano.

EUA: sempre no topo

É dos Estados Unidos o exército com o maior número de contractors. Isto foi decidido pelo Departamento de Defesa dos EUA em 1985 e, desde 1994, a mesma Defesa celebrou 3601 contractos, no valor de 300 mil milhões de Dólares, com os exércitos privados americanos. Desde 1999, dezassete grandes empresas do sector “doaram” 12.4 milhões de Dólares para actividades de lobby no Congresso dos EUA ou para a eleição do Presidente dos EUA. A primeira e mais conhecida entre todas as empresas é sem dúvida a Blackwater, agora Academi.

Existem um total de 41 exércitos privados reconhecidos nos Estados Unidos, oito dos quais operam principalmente ou exclusivamente no estrangeiro. Segue-se a Grã-Bretanha, com nada menos do que 17 empreiteiros. Apenas uma empresa deste tipo no Canadá. Mais significativas politicamente são as três empresas militares privadas em israel e as quatro na África do Sul.Mas na realidade os números não dizem tudo: estes exércitos privados muitas vezes nascem nos EUA mas ficam registados no estrangeiro e o cliente geopolítico continua a ser Washington.

Voltando à Academi, na Carolina do Norte existe um campo de treino de 28 quilómetros quadrados com 20 aviões, veículos blindados, transporte de tropas, lançadores de foguetes e artilharia. Os orçamentos? Nem mesmo o Congresso dos EUA divulga os montantes envolvidos.

Utilizada no Afeganistão, a Academi viu-se especialmente envolvida no Iraque, onde durante a ocupação três empresas mercenárias passaram a ter mais de 250 mil dependentes não iraquianos e ofereceram serviços a soldados regulares também, desde a limpeza até o conflito armado. E nos momentos mais quentes da guerra no Iraque, morreram mais mercenários do que soldados regulares. Em 2003 havia 1 mercenário para cada 10 soldados regulares no Iraque; no final da missão, em 2017, o rácio era invertido: 3 para 1. Os EUA externalizaram muitas tarefas de modo a não aumentar os alistamentos. Por cada 5 Dólares gastos no Iraque, um foi para os exércitos privados. Um excelente negócio.

 

Ipse dixit.

3 Replies to “Mercenários”

  1. Olá Max e todos:
    Enquanto eu consegui me referir a uma empresa formadora/empregadora de mercenários, tu fizestes uma verdadeira dissertação sobre mercenários pelo mundo inteiro.
    Um artigo completo, extremamente necessário, que eu te parabenizo.
    Acho que aqueles que denominas ovelhas em artigo anterior têm, se chegarem a ler II, a noção do quanto as guerras nunca foram por ideologias, mas por conveniências estratégicas, por desconfianças, por proteção a sua população, por pilhagem, por razões das quais não se fala, por ódios reprimidos, por negócios vantajosos.
    Quando eu me ponho a favor da Rússia neste contexto do conflito com a Ucrânia,( que na verdade é a confrontação com os EUA e seus vassalos da OTAN) o faço por considerar a coisa decente a fazer, de acordo com a minha perspectiva de justiça. E acho que em geral as pessoas fazem assim, de acordo com seus ponto de vista.
    Mas dificilmente os motivos de uma guerra sejam os justos. A conveniência estratégica e econômica predominam.
    Penso que para os planejadores e protagonistas das guerras não há espaço para subjetividades , mas para quem observa, estuda, pensa os acontecimentos, concorrem tanto aspectos subjetivos como objetivos.
    Então o teu artigo presta uma contribuição inestimável para quem estuda e pensa as guerras, para a construção de subjetividades, tais como a realidade se nos apresenta.

  2. Sem dúvida que a matéria é oportuna, mas cabe ressaltar que os mesmos financiadores desses exércitos mercenários são os mesmos que financiam toda ou grande parte da diplomacia governativa internacional, que em seus meandros, são os fantoches que articulam os movimentos da geopolítica mundial. A conspiração age em vários níveis, e mercenários e diplomatas fazem parte deste mesmo processo, mesmo que em níveis diferentes. A questão é: A boiada continuará, indefinidamente, boiada. E mesmo que se consiga convencer o servo atual de que sua servidão deriva basicamente daquele que controla a emissão de um dinheiro do nada, e através disso, manipula a economia mundial e sua própria vida, ele não encontrará ambientes maiores que sejam receptivos a qualquer mudança do atual ordem das coisas…os últimos verdadeiros rebeldes foram os índios americanos…não sem razão, exterminados por nós, brancos.

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