Ucrânia: a caminho da guerra?

Talvez alguém ainda se lembre de Scott Ritter. Ex-oficial dos serviços secretos dos marines, antigo inspector de armas das Nações Unidas de 1991 a 1998, antes da invasão do Iraque em Março de 2003 Ritter declarou que o País não possuía capacidades significativas em matéria de armas de destruição maciça, tornando-se, segundo o The New York Times, “o maior e mais credível céptico da alegação da Administração Bush de que Saddam Hussein escondia armas de destruição maciça”.

Abandonada a ONU, tornou-se comentador, crítico também em relação ao sucessivo Presidente Clinton, ao papel da CIA nas guerras americanas no Médio Oriente, tendo também previsto a “derrota” dos EUA na questão iraquiana e continuando com “os Estados Unidos, e não o Irão, é que estão a operar fora do direito internacional quando se trata da questão do programa nuclear iraniano”.

Desde então a vida não correu muito bem: em 2001 foi apanhado numa ligação com policiais que se faziam passar por raparigas menores de idade para marcar encontros de natureza sexual e o mesmo aconteceu em 2009; em 2011 recebeu uma sentença de prisão, da qual saiu em liberdade condicional em 2014.

Normalmente as declarações dum pedófilo não encontrariam espaço em Informação Incorrecta, independentemente da bondade delas. Todavia, este caso é… bom, podemos dizer “singular”. As acusações de 2001, por exemplo, não foram tornadas públicas por ordem judicial e até foram retiradas depois de seis meses. Só foram conhecidas em Janeiro de 2003 por causa duma fuga de notícias, menos de dois meses antes da nova invasão americana do Iraque. O que foi um pouco suspeito, no mínimo.

Ritter, como não podia deixar de ser, afirma ter caído numa cilada. Não sabemos qual a verdade, mas talvez esta seja uma boa ocasião para utilizar o benefício da dúvida. Pelo que, aqui vai a opinião de Ritter acerca da tensão entre EUA e Ucrânia, num artigo publicado em Consortium News.

Como seria a guerra com a Rússia

Se alguma vez uma difícil negociação diplomática esteve condenada ao fracasso desde o início, as discussões entre os EUA e a Rússia sobre a Ucrânia e as garantias de segurança russas são o caso.

Os dois lados nem sequer conseguem chegar a acordo sobre uma agenda.

Do ponto de vista russo, a situação é clara: “O lado russo chegou aqui [a Genebra] com uma posição clara que contém uma série de elementos que, a meu ver, são compreensíveis e foram formulados de forma tão clara – mesmo a um alto nível – que simplesmente não é possível desviarmo-nos das nossas abordagens”, disse o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Ryabkov à imprensa depois de um jantar de pré-encontro no Domingo, oferecido pela Secretária de Estado Adjunta dos EUA Wendy Sherman, que chefia a delegação dos EUA.

Ryabkov referia-se aos pedidos do Presidente russo Vladimir Putin ao Presidente dos EUA, Joe Biden, no início de Dezembro, relativamente às garantias de segurança russas, que foram então detalhadas por Moscovo sob a forma de dois planos para tratados: um tratado de segurança Rússia-EUA e, o outro, um acordo de segurança entre a Rússia e a NATO.

Este último impediria a Ucrânia de aderir à NATO e excluiria qualquer expansão a Leste da aliança militar transatlântica. Na altura, Ryabkov observou que os Estados Unidos deveriam começar imediatamente a abordar os esboços propostos com vista a finalizar algo quando os dois lados se encontrarem. Agora, com a reunião a começar na Segunda-feira (o artigo é de 10 de Janeiro), parece que os EUA não estão preparados para isso.

“[As] conversações serão difíceis”, disse Ryabkov aos repórteres após a reunião do jantar. “Não podem ser fáceis. Serão de tipo comercial. Penso que não vamos perder tempo amanhã”. Questionado se a Rússia estiver pronta a comprometer-se, Ryabkov respondeu secamente: “Os americanos devem preparar-se para o compromisso”.

Tudo o que os EUA têm estado dispostos a fazer, ao que parece, é lembrar à Rússia as chamadas “graves consequências” se a Rússia invadir a Ucrânia, algo que os EUA e a NATO temem ser iminente, dado o alcance e a escala dos recentes exercícios militares russos na região, envolvendo dezenas de milhares de tropas. Esta ameaça foi feita por Biden a Putin em várias ocasiões, incluindo uma chamada telefónica iniciada por Putin na semana passada para ajudar a enquadrar as próximas conversações.

No entanto, na véspera da reunião Ryabkov-Sherman, o Secretário de Estado norte-americano Tony Blinken simplesmente reiterou estas ameaças, declarando que a Rússia enfrentaria “enormes consequências” se invadisse a Ucrânia.

“É evidente que lhe oferecemos dois caminhos a seguir”, disse Blinken, referindo-se a Putin. “Um é através da diplomacia e do diálogo; o outro é através da dissuasão e de maciças consequências para a Rússia se renovar a sua agressão contra a Ucrânia. E vamos testar a proposta de qual caminho o Presidente Putin quer seguir esta semana”.

Lições de história

É como se tanto Biden como Blinken fossem surdos, mudos e cegos quando se trata de compreender a Rússia.

Ryabkov aludiu a um facto já tornado claro pelos russos: não haverá compromisso no que diz respeito aos legítimos interesses de segurança nacional da Rússia. E se os Estados Unidos não conseguem compreender como é que a acumulação de poder militar encerrada numa aliança militar que vê a Rússia como uma ameaça existencial à segurança dos seus membros seja vista pela Rússia como uma ameaça, então não há compreensão de como os acontecimentos de 22 de Junho de 1941 moldaram a psique russa de hoje, porque é que a Rússia nunca permitirá que tal situação se repita, e porque é que as negociações estão condenadas ao fracasso antes mesmo de começarem.

Quanto às ameaças americanas, a Rússia deu a sua resposta: qualquer esforço para sancionar a Rússia resultaria, como Putin disse a Biden no mês passado, numa “ruptura total das relações” entre a Rússia e os países que impõem sanções. Não é preciso ser um estudante de história para compreender que o próximo passo lógico após uma “ruptura completa das relações” entre duas partes que se encontram em conflito sobre questões que envolvem ameaças existenciais à segurança nacional de uma ou ambas não é o reatamento pacífico das relações, mas sim a guerra.

Não há nenhuma branda concessão por parte de Moscovo, mas sim uma declaração de facto fria e dura: ignorar as exigências da Rússia é um perigo. Os EUA aparentemente acreditam que o pior cenário é a Rússia invadir a Ucrânia, apenas para ceder sob a pressão de sanções económicas e ameaças de intervenção militar.

O pior cenário para a Rússia é aquele em que este país se envolve num conflito armado com a NATO.

No geral, prevalecerá o lado que estiver mais bem preparado para a realidade do conflito armado.

A Rússia tem vindo a preparar-se para esta possibilidade há mais de um ano. Tem demonstrado repetidamente uma capacidade de mobilizar de forma rápida mais de 100.000 forças prontas para o combate num curto período de tempo. A NATO demonstrou uma capacidade de mobilizar 30.000 forças após seis a nove meses de extensos preparativos.

A dimensão da guerra

Qual seria o aspecto de um conflito entre a Rússia e a NATO? Em suma, não como algo para o qual a NATO se tenha preparado. O tempo é amigo da NATO em qualquer conflito deste tipo: tempo para deixar as sanções enfraquecer a economia russa, e tempo para permitir à NATO acumular poder militar suficiente para igualar a força militar convencional da Rússia.

A Rússia sabe disso, e como tal, qualquer movimento russo será concebido para ser simultaneamente rápido e decisivo.

Em primeiro lugar, se for necessário, quando a Rússia decidir avançar para a Ucrânia, fá-lo-á com um plano de acção que tenha sido bem pensado e após ter atribuído recursos suficientes para que seja concluído com êxito. A Rússia não será arrastada para uma desgraça militar na Ucrânia que tem o potencial de se arrastar indefinidamente, como a experiência dos EUA no Afeganistão e Iraque. A Rússia estudou uma campanha militar anterior dos EUA – a Operação Tempestade no Deserto, desde a primeira Guerra do Golfo – e levou a peito as lições desse conflito.

Não é necessário ocupar o território de um inimigo para o destruir. Uma campanha aérea estratégica concebida para anular aspectos específicos da capacidade de uma nação, seja ela económica, política, militar ou todos os acima referidos, juntamente com uma campanha terrestre concebida para destruir o exército do inimigo, em vez de ocupar o seu território, é a provável linha de acção.

Dada a esmagadora supremacia da Rússia em termos de capacidade de projectar energia aérea apoiada por ataques de mísseis de precisão, uma campanha aérea estratégica contra a Ucrânia realizaria em dias o que os Estados Unidos levaram mais de um mês a fazer contra o Iraque em 1991.

No terreno, a destruição do exército ucraniano está longe de estar garantida. O exército ucraniano simplesmente não está equipado ou treinado para se envolver em combates terrestres em larga escala. Seria destruído de maneira fragmentada, e os russos passariam provavelmente mais tempo a lidar com prisioneiros de guerra ucranianos do que a matar defensores ucranianos.

Para que qualquer campanha militar russa contra a Ucrânia seja eficaz num conflito mais vasto com a NATO, no entanto, duas coisas têm de ocorrer: a Ucrânia tem de deixar de existir como um Estado-nação moderno, e a derrota do exército ucraniano tem de ser maciçamente unilateral e rápida. Se a Rússia for capaz de atingir estes dois objectivos, então está bem posicionada para passar à fase seguinte da sua postura estratégica global em relação à NATO, a intimidação.

Enquanto os EUA, a NATO, a UE e o G7 prometeram todos “sanções sem precedentes”, as sanções só importam se a outra parte se importar. A Rússia, ao cessar as relações com o Ocidente, deixaria de se importar com sanções. Além disso, é um simples reconhecimento da realidade de que a Rússia pode sobreviver ao bloqueio das transacções SWIFT por mais tempo do que a Europa pode sobreviver sem a energia russa. Qualquer ruptura nas relações entre a Rússia e o Ocidente resultará num embargo total do gás e do petróleo russos aos clientes europeus.

Não existe um plano B europeu. A Europa vai sofrer, e porque a Europa é constituída por antigas democracias, os políticos vão pagar o preço. Todos os políticos que seguiram cegamente os EUA num confronto com a Rússia terão agora de explicar aos seus respectivos eleitores por que razão cometeram suicídio económico em nome de uma nação completamente corrupta e adoradora pelos nazis (Ucrânia) e que não tem nada em comum com o resto da Europa. E esta será um discurso breve.

A correção da NATO

Se os EUA procurarem construir forças da NATO nas fronteiras ocidentais da Rússia após qualquer invasão russa da Ucrânia, a Rússia apresentará à Europa um facto consumado sob a forma do que agora seria conhecido como o “modelo ucraniano”. Em suma, a Rússia assegurará que o tratamento ucraniano será aplicado ao Báltico, à Polónia e mesmo à Finlândia, caso estes sejam suficientemente tolos para prosseguirem a adesão à NATO.

A Rússia não vai esperar que os EUA tenham tempo para acumular suficiente poder militar. A Rússia irá simplesmente destruir o lado ofensor através de uma combinação de uma campanha aérea concebida para degradar a função económica da nação-alvo, e uma campanha terrestre concebida para aniquilar a capacidade de fazer a guerra. A Rússia não precisa de ocupar o território da NATO durante muito tempo – apenas tempo suficiente para destruir qualquer poder militar que tenha sido acumulado pela NATO perto das suas fronteiras.

E – aqui está o pontapé de saída – a menos que se utilizem armas nucleares, não há nada que a NATO possa fazer para impedir este resultado. Militarmente, a NATO é apenas uma sombra do seu antigo ser. Os grandes exércitos europeus de outrora tiveram de canibalizar as suas formações de combate para montar “grupos de combate” do tamanho de um batalhão no Báltico e na Polónia. A Rússia, por outro lado, reconstituiu duas formações de tamanho militar – o 1º Exército de Guardas e o 20º Exército Combinado – desde a era da Guerra Fria, especializando-se em acções militares ofensivas profundas.

Sherman irá enfrentar Ryabkov em Genebra, com o destino da Europa nas suas mãos. O triste é que ela não vê as coisas dessa forma. Graças a Biden, Blinken e as fileiras de Russofóbicos que hoje povoam o estado da segurança nacional dos EUA, Sherman pensa que ela está lá simplesmente para dizer à Rússia as consequências do fracasso diplomático. Para ameaçar. Com palavras simples. O que Sherman, Biden, Blinken e os outros ainda não perceberam é que a Rússia já avaliou as consequências e está aparentemente disposta a aceitá-las. E a responder. Com a acção.

Um pergunta-se se Sherman, Biden, Blinken e os outros pensaram bem nisto. É provável que não o tenham feito, e as consequências para a Europa serão terríveis.

 

Ipse dixit.

7 Replies to “Ucrânia: a caminho da guerra?”

  1. Scott Ritten seja qual for o seu background faz uma avaliação sóbria e fundamentada que deve ser tida em conta como um cenário possível , não conhecia o autor mas percebe-se que contrariamente a outros autores fala pouco mas sabe o que diz contrariamente à outros aqui mencionados como Pepe Escobar e outros assalariados do Tretas Foundation que tal como os papagaios falam muito mas não dizem nada . Bom artigo. Obrigado .

  2. Olá Max e todos: decididamente a Rússia nunca desejou e não quer guerra. Seus poderosos armamentos próximo a fronteira ucraniana, que alcançam até 12 km (não precisariam entrar na Ucrânia) pretendem a dissuasão apenas.
    Mas também decididamente os Reino Unido e EUA não concordam nem concordarão com as exigências russas nem esta concordará com acabar com os acordos de Minsk. A UE é uma vassala dividida no momento. Isso é interessante porque define quem é quem.
    Toda essa contenda é resultado de desconfiança + medo + sacanagem + interesses econômicos, como sempre.
    Suponho que a guerra continuará existindo do jeito que existe, talvez trazendo ainda mais infortúnio, como é o caso da crise energética na Europa e o alto custo de vida ( A nova via de gás russa poderia estar jorrando, no entanto…)
    Ocorrerão sansões para todo lado, num pipocar sem fim, inéditas demonstrações de força ( vocês já ouviram falar de uma explosão no oceano Pacífico, que alcança a altura de 24 km, não instala uma nova ilha…cadê a lava? Dizem ser um vulcão, destes que produzem terremotos, maremotos e mortes mil, mas felizmente estes danos foram pequenos, considerando a intensidade da explosão.).
    Enfim, a militarização em estado de vigília por todo lado, penso que vai ser a intensificação do medo, já que agora a Covid e todos os seus parentes já não convencem o planeta inteiro.

  3. Grande Max,

    Eu penso que tudo corre como o plano:

    Em tempo a Rússia vai colocar armas nas duas república rebeldes da Ucrânia. Essas armas serão sempre idênticas às armas que os EUA e o Reno Unido venham a colocar na Ucrânia.

    Quaisquer sanções económicas importantes levarão a um apontar de misseis nucleares aqueles dois parceiros ocidentais. Sanções económicas que ponham em causa a existência da Rússia como estado moderno lançam a hipótese de um fim do mundo antropogénico ainda na nossa geração…

  4. … e a Europa?

    A Europa é a lata de lixo nesta história. A inflacção com juros baixos vai comer as poupanças dos cidadãos mas se os juros subirem a Europa parte-se em duas. Enfim, o lento declínio do poder europeu vai sofrer uma aceleração comparável ao que sucedeu no final da primeira guerra mundial…

  5. … o porquê disto relaciona-se com a política do pesadelo. O medo criado nas pessoas quer com o vírus quer com as medidas repressivas tem que ser mantido, de outra forma a elite arriscaria perder o controlo da população. Temos agora o medo da Rússia, antes era o medo das alterações climáticas, o medo do comunismo, o medo do perigo amarelo, etc…

  6. “Em tempo a Rússia vai colocar armas nas duas república rebeldes da Ucrânia. Essas armas serão sempre idênticas às armas que os EUA e o Reno Unido venham a colocar na Ucrânia.”
    Olá JJ. Perfeito comentário. Esqueci desta importantíssima parte.

  7. UnCommon Core: The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis

    John J. Mearsheimer, the R. Wendell Harrison Distinguished Service Professor in Political Science and Co-director of the Program on International Security Policy at the University of Chicago, assesses the causes of the present Ukraine crisis, the best way to end it, and its consequences for all of the main actors. A key assumption is that in order to come up with the optimum plan for ending the crisis, it is essential to know what caused the crisis. Regarding the all-important question of causes, the key issue is whether Russia or the West bears primary responsibility.

    https://youtu.be/JrMiSQAGOS4

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