A 20 de Outubro de 2011, há dez anos, Muammar Gaddafi foi capturado na sua cidade natal de Sirte e massacrado por combatentes rebeldes. A notícia da morte do Qaid (“guia”), líder indiscutível da Líbia durante mais de 40 anos, desencadeou demonstrações de alegria da população, juntando-se à onda de euforia generalizada que a Primavera Árabe estava a produzir tanto no Magrebe como no Médio Oriente. Na realidade, o fim daquele a que Ronald Reagan tinha chamado de “um cão raivoso”, para uns um patrocinador do terrorismo e para outros um campeão do pan-africanismo, teria precipitado a Líbia numa década de turbulência que levou o País à beira do abismo, alimentando fendas que ainda entravam a unidade. um pesadelo que durou até hoje.
De facto, a Líbia tem estado em guerra desde então, atravessado por exércitos estrangeiros e sem instituições fortes, dividido e controlado por uma nebulosa de grupos armados, tribos e facções umas contra as outras, incapazes de reanimar um verdadeiro Estado unido. Hoje, 10 anos após a sua morte, o fantasma de Gaddafi continua a pairar sobre um País traído duas vezes: nas expectativas criadas pela revolução e pelas potências estrangeiras que intervieram para o “libertar”.
Alguém tinha-se esquecido de explicar que, entre os vários sucessos de Gaddafi, havia também aquele de ter conseguido criar e manter durante décadas o delicado equilíbrio entre os Senhores do Deserto. Uma vez desaparecido o Quaid, o caos voltou (é preciso acrescentar que o caos é a principal herança de qualquer “libertação” operada pelo binómio EUA-Nato: Iraque, Jugoslávia, Afeganistão…). A decisão da administração pós-revolucionária de proibir aos antigos homens de Gaddafi de exercer cargos públicos esvaziou as instituições estatais de toda a competência. O mesmo erro que tinha acontecido depois de Saddam no Iraque.
O sistema Sarkozy
Há ainda muitas questões em torno da morte do antigo governante líbio. Havia infiltrados entre aqueles que mataram Gaddafi? Havia governos estrangeiros envolvidos na execução de Gaddafi? Havia governos desejoso de silenciar uma voz que poderia ter sido “desconfortável”? São todas perguntas retóricas.
Pegamos no nome do antigo Presidente francês Nicolas Sarkozy. Gaddafi esteve no centro do inquérito sobre o alegado financiamento líbio da campanha presidencial francesa de 2007, aquela que levou o o marido de Carla Bruni ao Eliseu. Um sensacional caso político-judicial revelado pelo site de notícias independente Mediapart (nesta página a lista dos artigos, todos em francês), pelo qual Sarkozy tem estado sob investigação desde Março de 2018. Em sete anos de investigação, os juízes em Paris trouxeram à luz um verdadeiro “sistema Sarkozy”, uma rede de personalidades francesas e líbias envolvidas num caso complexo que envolve interesses políticos, diplomáticos e económicos, com muitas áreas cinzentas.
“Um caso que”, como escreve Mediapart, “pode também ter desempenhado um papel, com os seus segredos incontornáveis, no intervencionismo militar francês na Líbia, que precipitou a queda e morte de um ditador que tinha sido recebido com pompa e circunstância em Paris”. Em Outubro de 2017, cerca de 15 associações da sociedade civil de vários países africanos denunciaram o antigo presidente francês no Tribunal Penal Internacional de Haia, acusando-o de ser responsável pelo assassinato de Gaddafi em 2011. O facto é que, após uma década, o que aconteceu em Sirte ainda é muito relevante.
No dia em que o Qaid foi morto, entre os opositores havia alguns a festejar, mas também outros desanimados com as circunstâncias da sua morte. As pessoas queriam que Gaddafi fosse levado à justiça e para muitos líbios a execução ao estilo mafioso “desgraçou” a revolta. Mas não é só por esta razão que o aniversário de hoje na Líbia é acompanhado por uma mistura de sentimentos entre os quais prevalece a desilusão após a traição das expectativas criadas no rescaldo do seu fim. A queda de Gaddafi não trouxe democracia e estabilidade e, menos de três anos após a sua morte, a Líbia já estava dividida.
E quando o vácuo de poder tornou-se evidente, o País fracturou-se seguindo as linhas étnicas, tribais e ideológicas, mergulhando numa espiral de guerra civil na qual cada milícia encontrou patrocinadores estrangeiros prontos a apoiar uma facção e lutar pelo controlo dos recursos petrolíferos do País. Enquanto foram principalmente os EUA, o Reino Unido e a França que impulsionaram a intervenção armada e a remoção de Gaddafi em 2011, hoje, após o longo conflito entre instituições da Cirenaica e da Tripolitânia, são a Turquia e a Rússia que emergiram como as principais forças de influência na Líbia.
As eleições
Após um cessar-fogo em Outubro do ano passado, seguido da nomeação de um governo de unidade nacional com um mandato para conduzir a Líbia às eleições, o País está a lutar para virar uma nova página. O Parlamento aprovou uma lei eleitoral para as próximas presidenciais agendadas para 24 de Dezembro e a para a eleição de um novo parlamento 30 dias mais tarde. De acordo com o sistema eleitoral escolhido para eleger o Presidente, o vencedor será aquele que obtiver a maioria absoluta dos votos na primeira volta. Se não for este o caso, os dois candidatos com mais votos irão para um segundo turno.
Para além do General Khalifa Haftar, ex-militar forte de Cirenaica, e do Primeiro Ministro cessante Abdulhamid Dbeibah, os possíveis candidatos presidenciais incluem Saif al Islam Gaddafi, o filho mais novo do ditador. Mas o caminho para a votação ainda é longo e há cada vez mais dúvidas sobre se a votação terá realmente lugar como planeado. No entanto, se chegar às urnas, Saif poderá ter várias vantagens.
O primeiro é o nome, porque na Líbia ainda muitos lembram-se com saudade dos tempos do Qaid, quando as receitas do petróleo eram dividas entre a população. A segunda vantagem é o facto de ser visto por muitos como o candidato menos “comprometido” com potências estrangeiras e com a violência dos últimos anos. A terceira vantagem de Saif é a nostalgia para o período de estabilidade que coincidiu com o poder de Gaddafi pai e que muitos agora olham com pesar.
A previsão
Numa entrevista que apareceu no semanal Panorama em Fevereiro de 1997, o Qaid tinha dito que, com o eventual colapso do seu regime, o Mediterrâneo teria ficado um “mar inseguro”, enquanto as costas africanas teriam assistido ao crescimento dos movimentos islamistas e ao caos. Gaddafi acertou nas previsões porque conhecia bem o seu povo, as divisões internas e as fraquezas. Tinha frequentemente utilizado o sentimento anti-italiano produzido pelo colonialismo como uma “cola” para manter unida uma nação frágil, um País que tentava muitos pelos seus infinitos recursos energéticos e pela sua extraordinária posição entre o Mediterrâneo e o Norte de África.
Muitos na Europa e no Ocidente tinham subestimado, ou tinham preferido subestimar mostrando uma ignorância desarmante e perigosa, a verdadeira extensão da força de Gaddafi, não só virando as costas aos Qaid quando ele precisava mas também contribuindo para o seu violento depoimento. Com o tempo, e não só graças à experiência líbia, tornou-se claro que a democracia ocidental não é um conceito facilmente exportável e que só pode enraizar-se no terreno que está pronto a aceitar a semente e a fazer todo o possível para a fazer germinar. As tácticas utilizadas pela comunidade internacional para alcançar essa democracia tão procurada forma um fracasso na Líbia também e essas tentativas contínuas e infrutíferas apenas desiludiram os cidadãos.
Hoje, a Líbia é um País cansado, esgotado pela luta constante e com pouco entusiasmo. Existem muitas dúvidas sobre as futuras eleições, especialmente porque não existe um aparelho de segurança estatal que possa assegurar uma aceitação dos resultados eleitorais. Há o medo de que possa haver agitação no encerramento das mesas de voto. A Líbia precisa de tempo mas, mais uma vez, nem a ONU nem os líderes ocidentais parecem compreender isto.
Ipse dixit.
Embora tenha gostado do artigo, discordo e desaprovo da terminologia usada para enquadrar as intenções e intervenções “ocidentais”. Coloco entre aspas a designação de tal grupo, pois outros não ocidentais estiveram envolvidos, entre os quais a referida Turquia, membro efetivo da NATO à data.
A terminologia usada indicia uma permanente incompreensão e incompetência por parte dos “ocidentais” ao endereçarem e intrometerem-se nos assuntos de outros países, seja em África ou outra parte do mundo.
TRETAS… Incompreensão e incompetência são inerentes a qualquer povo perante outro, com história, cultura, crença e organização social diferentes ou mesmo distintas.
As atitudes e ações dos denominados “ocidentais” para com a Líbia e outros, têm sempre como objectivo, o efetivo domínio e controlo dos recursos naturais, onde os energéticos são primordiais, o controlo das instituições locais/regionais que os podem gerir/administrar e dos povos para os explorar.
Tudo é planeado e executado no seio da geo-economia e geopolítica… sem quaisquer escrúpulos.
Os acontecimentos ocorridos e que ainda decorrem foram planeados, são sempre intencionais e inescrupulosamente perseguidos até ao seus objetivos finais. O saque ocorreu, ocorre e ocorrerá sobre a destruição dos povos e sociedades que não se vergarem ás vontades e ditames dos “senhores” do colonialismo e imperialismo “ocidental”… e doravante “oriental”.
Agora mesmo, os seus planos se desenrolam para lá do costumeiro Médio Oriente…
Vide Balcãs, Sahel, África subsariana, Américas (Central e Sul), leste europeu, Cáucaso, etc.
Como membro de um povo ocidental, hoje mais do que nunca, afirmo ser deveras importante não permitirmos o aligeirar da linguagem usada para descrever ou perspectivar as ações dos nossos governantes e regentes.
É chamando “os bois pelos nomes”, expondo-os como são e o que são, continuamente, que prestamos um contributo positivo para o desabrochar de outro tipo de sociedade ocidental, culturalmente humilde e cooperativa.
alfbber, calma companheiro , não é necessário essa exaltação pareces o Lopes quando aparecem aqui textos a idolatrar a China, mas compreendo a tua revolta também tenho uma certa estima por Gaddafi . Paz a sua alma .
Olá alfbber, olá P.Lopes!
Provavelmente no texto não ficou suficientemente claro mas os termos “incompreensão e incompetência” são referidos à forma como a invasão da Líbia foi conduzida, não às motivações que determinaram a tal invasão. Portanto, não são uma tentativa de justificar ou até de ocultar as verdadeiras razões da acções EUA + Nato.
Se a operação para eliminar Gaddafi foi um sucesso, a seguinte tentativa para impor um estado “democrático” (obviamente um fantoche nas mãos do Ocidente) foi um fracasso total. Este fracasso foi determinado pela na incapacidade por parte das forças ocidentais em compreender a sociedade líbia e na e incompetência das sucessivas decisões tomadas.
Se o caos instalado no País foi útil, a implementação duma “democracia” conduzida pelo Ocidente teria sido ainda melhor nesta óptica. Mas mesmo neste ponto houve a total “incompreensão e incompetência”. E o risco, por parte do Ocidente, é agora aquele de assistir ao regresso dum Gaddafi no poder.
Não sobrestimamos quem toma as decisões no Ocidente: são humanos e como tais erram porque a visão deles é estritamente humana e ocidental. É verdade, como diz alfbber, que “tudo é planeado e executado no seio da geo-economia e geopolítica… sem quaisquer escrúpulos”. Mas não são seres superiores, não são infalíveis e erram como erram todos os seres humanos.
Se nunca errassem nem existiria este blog…
Olá Max e todos:
As últimas palavras do Coronel (Gaddafi) parecem ter sido recorrentes em suas inquietações:” Que foi que eu te fiz?” perguntara aos seus matadores que dominavam a arte de massacrar.
Em outra ocasião muito anterior perguntara a uma vítima da estupidez humana: “Qu est ce que on fait avec toi?”. Sua expressão facial era de náusea pela atrocidade.
Uma pessoa assim é um ser humano legítimo. E a partir daí me interessei por conhecê-lo melhor. Li seu Livro Verde, uma espécie de socialismo tribal, uma utopia posta em prática na Líbia que tornara um povo africano próspero e feliz, numa Trípoli que conheci com geólogos brasileiros que trabalhavam em pesquisa petrolífera para o “ditador sanguinário” como tornou-se conhecido no ocidente, logo que juntou-se aos demais povos africanos para criar um banco africano e uma moeda própria, o dinar, mantinha o petróleo nacionalizado e criara um aqueduto subterrâneo para levar água boa para todo povo do deserto além do deserto líbio, uma das maiores obras de engenharia realizadas pela humanidade.
Era impossível manter a Líbia viva, e o Coronal foi traído pelo ocidente e tornado indiferente pelo oriente, e morreu massacrado ao vivo para que os “democratas sanguinários” se regozijassem.
O resto principal Alfbber e Max já disseram.
Eu sabia que as previsões do Coronel se realizariam, conforme aconteceu.
Como também tenho náuseas por atrocidades, o dia da morte do Coronel foi um dos mais tristes da minha vida. Já sei que farei parte dos que idolatram, por alguns, mas pouco importa, eu sei que é respeito por alguém justo.
A acompanhar… A Líbia arrisca-se a ter por companhia no seu triste destino a nação sua vizinha, a Argélia.
A razão é mais uma vez a energia, no caso mais premente, o gás. O cão de fila de serviço será Marrocos.
A situação no Sahel foi planeada entre o reino e os EUA, para exploração dos recursos aí existentes.
A independência do povo do Sahel é apoiado pelos argelinos, que detém os grandes campos em exploração.
Devem estar ao corrente que Portugal e Espanha são abastecidos de gás pela Argélia, certo?
Pois bem, as relações entre Marrocos e a Argélia azedaram a sério e a Argélia avisou que no final deste mês fecharia a “torneira” do gasoduto que, proveniente da Argélia, atravessa Marrocos e chega até à península através de Gibraltar. Daí vai a Cordova, onde deriva para Madrid e Lisboa.
Existe um outro gasoduto, que interliga diretamente a Argélia a Espanha em Almeria, mas a sua capacidade é bastante inferior e serve basicamente só Espanha. Aliás, em Espanha puseram os pés ao caminho e já negociaram com os argelinos a entrega de GNL (via marítima) em quantidades que os permitam, se não ultrapassar, pelo menos minimizar o problema. Claro que o custo da entrega por via marítima será superior e se os preços já estão lá bem em cima… aiai.
E Portugal? O que fizeram os “palhaços” de Lisboa? Se alguém o souber que responda.
Eu cá só sei que fecharam Sines e Matosinhos e mandaram os equipamentos prá sucata.
Vai ser cá um inverno… ainda bem que somos uma espécie de Califórnia, valha-nos isso.
NOTA: Parece que em França, também querem “dar um ar de sua graça” (imperialista). Já falam mal dos argelinos, já lhes lançam sérios avisos sobre atitudes e posições não cooperantes, etc, etc.
Da ultima vez que os planos imperialistas dos EUA se uniram aos de França… lá se foi a Líbia.
Se fosse aos argelinos, tomava muito cuidado muito com flancos, com a retaguarda e garantia aliados de peso.
E muito, mas mesmo muito rapidamente. Espero que não cometam os mesmos erros de Gadaffi.
Nós por cá, convinha irmo-nos preparando para uns cortes… não sei para quantos meses dão as reservas.
ERRATA… Os 2 gasodutos têm a mesma capacidade.
O do Magreb tem (passará a ler-se tinha) alocada 30% da sua capacidade para o fornecimento a Portugal.