Shakespeare, a branquidão e as luvas de Bernie

Interessante artigo de Zero Hedge segundo o qual “há um impulso crescente por parte dos professores para retirar Shakespeare e outra literatura ocidental da sala de aula”.

Um grupo, #DisruptTexts, insiste, “Trata-se de supremacia branca e colonização”.

Lorena German, presidente do Conselho Nacional de Professores do Comité Inglês Anti-Racismo e co-fundadora do fórum Disrupt Texts, insistiu que “tudo sobre o facto de ele ter sido um homem do seu tempo é problemático nas suas obras. Não podemos ensinar Shakespeare com responsabilidade e não perturbar a forma como as pessoas são caracterizadas e desenvolvidas”.

Discutimos anteriormente de como o retrato de William Shakespeare tenha sido retirado do Departamento de Inglês da Universidade da Pensilvânia como uma declaração em prol duma maior sensibilidade racial e da diversidade. Os estudantes estão a ser cada vez mais privados dos clássicos de base como “Romeu e Julieta”, “Macbeth”, “Rei Lear”, ou “Ricardo III”. Estas não são apenas obras-primas, mas moldaram gerações de peças de teatro e continuam a ser referenciadas na literatura moderna.[…]

Amanda McGregor, uma bibliotecária do Minnesota, escreveu na edição de Janeiro do jornal da biblioteca escolar que “O trabalho de Shakespeare está cheio de ideias problemáticas e ultrapassadas, muita misoginia, racismo, homofobia, discriminação de classe, anti-semitismo, misoginia”.

É possível que uma pessoa, até aparentemente dotada dum certo nível cultural, não entenda que cada ideia tem que ser contextualizada? Que o ensino também tem que mostrar como o pensamento evoluiu ao longo do tempo e não simplesmente apagar o que não reflecte os valores de hoje? Que esta é censura fundamentada no puro racismo? Porque aqui não estamos a falar de introduzir nas instituições escolares textos originários de culturas diferentes ao lado dos clássicos (algo que constituiria uma enorme mais valia): aqui falamos de apagar um clássico universal como Shakespeare.

Repito a pergunta: é possível? Não, não é. É lícito pensar que entre os promotores destas iniciativas possa haver mentes não particularmente brilhantes (e este é um eufemismo), mas a impressão é que o conjunto destas acções tenha um outro objectivo: diminuir o nível cultural das próximas gerações.

Como afirma o antropólogo Glynn Custred, nas páginas do Washington Times:

A lógica de purgar Shakespeare do currículo, tal como formulada na retórica padrão da esquerda, revela a sua agenda, que é a conversão das escolas e das universidades de instituições educacionais em órgãos de doutrinação. Uma vez que o trabalho de Shakespeare tem sido considerado exemplar e universal, estas reivindicações devem ser desacreditadas e a remoção de Shakespeare do currículo e da memória colectiva é assim obrigatória.

Eliminamos Shakespeare? Então porque não eliminar todos os autores dos séculos passados? Cervantes, Goethe, Chaucer, Omero, Moliére… e todas as sagas como aquela nórdica, o ciclo de Rei Artur e, obviamente, a Bíblia. Todos autores e obras que apresentam valores que já não são aqueles de hoje: são, para usar as palavras de Amanda McMcGregor, obras cheias “de ideias problemáticas e ultrapassadas, muita misoginia, racismo, homofobia, discriminação de classe, anti-semitismo, misoginia”.

Pergunta: temos a certeza de que nas obras de culturas diferentes não estejam presentes tais problemáticas? Será que toda a literatura não europeia sempre reflectiu os valores modernos? Seria ridículo pensar algo assim. Então eis uma gravíssima falha se a ideia fosse verdadeiramente aquela de ampliar os horizontes da instrução: o que poderia haver de melhor de, em vez de apagar, juntar as várias literaturas para poder comparar a evolução dos valores nas várias sociedades ao longo dos séculos?

As oito faces da branquidão

Depois, claro está, há também a estupidez no seu estado mais cristalino: o director da escola pública East Side Community School de New York enviou aos pais um manifesto encorajando-os a tornarem-se “traidores brancos” ou “abolicionistas”, detalhando as oito supostas fases da “brancura”. Eis as características das oito fases:

    1. Supremacista Branco: Claramente direccionado para uma sociedade branca que preserva e valoriza a superioridade branca.
    2. Voyeurismo Branco: Não desafiaria um supremacista branco; deseja o não-branco porque é interessante, agradável; procura controlar o consumo e a apropriação do não-branco; fascínio pela cultura (exemplo: consumir cultura negra sem o fardo da negritude)
    3. Privilégio Branco: Pode criticar a supremacia, mas aponta para questões de equidade sob a normalização da brancura e da regra branca.
    4. Benefício Branco: Simpatiza com um conjunto de questões, mas apenas em privado; não falará/agirá solidariamente em público porque beneficia através da brancura em público,
    5. Confessionário Branco: Alguma admissão de brancura tem lugar, mas como forma de prestar contas aos não-brancos (POC), procurar a validação por parte dos POC.
    6. Crítico Branco: Aceita criticar a brancura e investir na exposição/marcação do regime branco; recusa-se a ser cúmplice do regime; brancura que fala em volta da brancura
    7. Traidor Branco: Recusa activamente a cumplicidade; explica o que se passa; a intenção é subverter a autoridade branca e dizer a verdade a qualquer custo; necessário para desmantelar as instituições
    8. Abolicionista Branco: Mudar as instituições, desmantelar a brancura e não permitir a brancura para reafirmar a sua brancura

As luvas de Bernie

E queremos esquecer o artigo do San Francisco Chronicles, escrito pela genial professora (da escola pública) Ingrid Seyer-Ochi?

No entanto, quando viram o Senador Bernie Sanders a manifestar privilégios, quando aparentemente mais ninguém o fez, esforcei-me por explicar essa disparidade. Estou mais do que perplexa quanto à razão pela qual tantos estão a adorar a imagem de Bernie e das suas luvas. Sim, as luvas tricotadas por uma educadora. […]

Não tão doce? A cegueira que vejo, de tantos (Bernie inclusive), perante os privilégios que Bernie representa. Não conheço muitos pobres, ou da classe trabalhadora, ou mulheres, ou pessoas que lutam para ser tomadas a sério, que poderiam aparecer na inauguração do nosso 46º Presidente vestidos como Bernie. A menos que essas mesmas pessoas tivessem privilégios. O que eles não têm.

Estamos a falar disso:

Foto AFP

A professora mostrou estas imagens aos alunos e depois perguntou o que conseguiam ver:

O que é que eu vi? O que pensava eu que os meus alunos deveriam ver? Um homem branco rico, incrivelmente bem educado e privilegiado, aparecendo para talvez o ritual mais importante da década, com um casaco inchado e luvas enormes. […] O senador Sanders não é um insurreicionista supremacista branco. Mas ele manifesta privilégio, privilégio branco, privilégio masculino e privilégio de classe, de formas que os meus alunos podiam ver e sentir.

Deprimente.

Meus senhores, assim não vamos para lado nenhum. Não apenas ridiculariza-se a questão racial como também são aprofundam cada vez mais as divisões. Não é apagando Shakespeare, rotulando os brancos ou apresentado como privilegiado um idoso que tenta proteger-se do frio num dia de Inverno que os problemas podem ser resolvidos.

As cruzadas raramente têm efeitos positivos, porque as diferenças só podem ser ultrapassadas na vida de cada dia, dando o exemplo, explicando, falando às pessoas sem utilizar fanatismo, para que os preconceitos sejam abandonados. A solução passa pela inclusão: tentar apagar o “inimigo” é apenas estúpido.

Tudo isso derrota o racismo? No imediato não, no médio e longo prazo sim. O racismo não pode desaparecer dum dia para outro: esta é uma utopia. É triste? Claro que é, mas temos que assumir a realidade: a sociedade tem os seus ritmos naturais, marcados pela passagem das gerações. As mudanças deste tipo de ideias acontecem de forma lenta porque estão ligadas a “valores” dum certo tipo e até a medos ancestrais. Podemos ajudar este processo, por exemplo ao lutar contra as leis injustas e, como referido, com o exemplo, a palavra e a inclusão.

Ninguém pode ser considerado superior ou inferior pela cor da pele, esta é uma obviedade. Mas isso não pode justificar o fanatismo intolerante: a repentina e forçada imposição de novos “valores” arrisca desencadear um efeito de igual força e contrário. Os Estados Unidos parecem estar exactamente neste caminho, o que pode ser muito perigoso: quais poderiam ser as consequências em outros Países?

 

Ipse dixit.

3 Replies to “Shakespeare, a branquidão e as luvas de Bernie”

  1. Max, entendo o que queres dizer e concordo com o teu pensamento.

    Mas, também acho, meu caro, que apesar de exageros de ambos os lados , o fato de se estar debatendo sobre o assunto, já é um grande progresso. No entanto, sempre haverão os aproveitadores de plantão para utilizar o tema em causa própria.

    Para exemplificar, temos o caso do escritor brasileiro Monteiro Lobato, que após mais de 70 anos de sua morte, vem sendo acusado de racista. Houve tentativas de impedir a difusão das obras do autor nas escolas públicas, que foram rejeitadas pela justiça. O mais curioso é o que se segue: Vide link:

    https://www.cartacapital.com.br/cultura/reedicao-de-monteiro-lobato-o-que-eles-defendem-e-o-direito-de-ofender-e-desumanizar/

    O Carta Capital ( site de esquerda light: aquele não muito vermelho, estando mais para o cor-de-rosa) critica a posição de bolsonaristas, os quais defenderam a liberdade de expressão do autor. Quem diria ? logo eles, defendendo a livre expressão cultural. É o tipico exemplo de uso do tema ao seu favor em pura conotação ideológica.

    Quando criança, li quase todos os livros infantis de Lobato e particularmente, nunca vi nada de ofensivo em seus livros. Em sua obra mais conhecida: “O Sitio do Pica-pau Amarelo” , uma das personagem citadas nessa polêmica foi Tia Nastácia (empregada doméstica negra ), que recebeu adjetivos como “preta de carvão” e “pular feito uma macaca” . No entanto ela é uma das personagens mais queridas, a ponto de virar nome de banda de rock: “Tianastacia” .

    Eu recomendaria livros de Monteiro Lobato para as crianças de hoje, ele mostra aspectos importantes para o universo infantil, resgata as velhas brincadeiras, o contato com a natureza, o sobrenatural antagônico: bem/mal , aspectos do folclore brasileiro: mula sem cabeça , saci pererê, cuca, etc.

    Se o meu filho , hoje com 22 anos , tem o habito da leitura , muito disso foi pelo incentivo que recebeu de mim. No entanto, quando lhe apresentei os livros desse referido autor, ele não se entusiasmou muito. Ele gostou mais de Harry Potter. Pensem que sai por aí reclamando da supremacia branca ? Que nada, comprei a coleção completa para ele. Por consequência , tive que leva-lo ao cinema para assistir os filmes do bruxinho e me divertia muito com as reclamações de meu filho, toda vez que o enredo do filme fugia muito do original do livro. Foram momentos impagáveis.

    Desculpe-me por acabar fugindo um pouco do tema, Acho porque amanhã é sexta feira.

    Abraço.

  2. Melanie Klein, Psicanalista. Disse que o bebê até por volta de 6 meses, pela fraca integração do ego, projeta na mae duas pessoas, uma boa e uma má, como se de pessoas diferentes se tratassem.

    As pessoas deveriam abandonar isso por volta do sexto mês, ao entender que bom e mal, fazem parte de um mesmo conteúdo.

    Hoje vemos pessoas de qualquer faixa etária com este comportamento compartimentalizado de um bebê, tamanha a força da programação implementada.

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