A crise de Ivan Illich

Sugestão: a ré-leitura de O Direito ao Desemprego Criador (1978) de Ivan Illich.

A palavra crise indica hoje o momento em que médicos, diplomatas, banqueiros e técnicos sociais de vários tipos assumem o controlo e as liberdades são suspensas. Como doentes, os países tornam-se casos críticos. Crise, palavra grega que em todas as línguas modernas significa “escolha” ou “ponto de viragem”, significa agora: “Condutor, acelera!”. Ou seja, evoca uma ameaça sinistra, mas que pode ser contida com um excesso de dinheiro, de mão-de-obra e de técnicas de gestão.

É o espelho da nossa situação. Criar uma emergência, provocar um perigo catastrófico, anular os direitos, reafirmar o domínio da razão económica, intensificar as formas de exploração, concentrar o poder económico-financeiro.

São as mesmas pessoas que primeiro criaram a crise a partir das suas posições de comando em instituições bancárias privadas; e que agora são agora chamadas a “pôr em ordem as contas públicas”. O verdadeiro objectivo: conquistar também os cofres dos Estados, os fluxos fiscais, a propriedade do Estado.

Quando o mundo é dominado por uma montanha de perigosas dívidas, aqueles que manipulam o dinheiro tornam-se cada vez mais poderosos e temidos. Os tecnocratas ao leme do sistema financeiro podem jogar à vontade, com alguns telefonemas entre amigos, sobre spreads, taxas de juro, moedas, encurralando primeiro um, depois os outros governos.

O objectivo continua o mesmo: assegurar que os rendimentos do capital sejam pagos de forma suficiente. Tudo o resto, como empregos e níveis salariais, funcionamento dos serviços públicos e privados, educação e saúde, não é motivo de preocupação. Os detentores de títulos de dívida são a nova classe principal.

Illich, mais uma vez:

A crise como necessidade de acelerar não só coloca mais potência à disposição do condutor e torna o cinto de segurança mais apertado, como também justifica o roubo de espaço, tempo e recursos.

O “Crescimento” é o novo falso mito. Todos sabem nos seus corações que não pode haver mais crescimento (pelo menos nesta parte do mundo e nas medidas prometidas), mas funciona como um factor social disciplinador: se não se trabalha de forma mais barata e com menos protecção, então somos inimigos do “interesse geral”.

O “Crescimento” é o novo patriotismo que deve mobilizar as massas na guerra competitiva entre as diferentes áreas económicas do planeta, globalizadas pelo capital financeiro. Eles (os “investidores”, os detentores das obrigações) podem deslocar-se e fazer negócios onde acreditam ser melhor, enquanto os trabalhadores territorializados são colocados em concorrência uns com os outros. Chamam-lhe “multipolarismo”, lemos “áreas especiais de desenvolvimento”, acordos de livre comércio, pactos interbancários, etc..

O “Crescimento” é a nova falsa religião. O novo nome da antiga ideologia hegemónica do produtivismo e do desenvolvimento. Não importa o que deve crescer, quais as produções, quais as verdadeiras necessidades humanas. O importante é forçar, através da chantagem do despedimento selvagem, as pessoas a trabalhar em quaisquer condições.

Mas o que acontece quando ao chegar ao fundo do barril? Quando o limão está espremido e já nenhuma gota pode sair? A “crise” muda de pele, ganha outra forma e outro sentido. A “crise” deixa de ser económica e torna-se uma questão de sobrevivência: é a doença, a pandemia, o vírus que mata. O Coronavirus é a nova aceleração.

Os poderes fortes experimentam novos instrumentos porque a dívida já não é uma montanha mas tornou-se um oceano e cortar nos orçamentos dos Estados ou nos salários de quem trabalha já não é suficiente. Há que ir mais além, há que bater novas estradas. Limitar os direitos constitucionais, desenhar um novo sistema dominado por técnicos supostamente “assépticos”, indivíduos que trabalham só e sempre para nós proteger dum inimigo invisível. O poder passa aparentemente das Bolsas de Valores para os laboratórios científicos: “aparentemente”, pois as primeiras controlam os segundos. Mas aos olhos do povo-boi a mudança é evidente, é boa, até que enfim.

Contemporaneamente, os Estados vão ser mergulhados para novos e ainda mais profundos níveis de endividamento. E as massas reclamam: “Dêem-nos mais dívidas!”. Os bancos centrais, com as expressões preocupadas e os corações aos saltos, aceitam: é precisa mais dívida, é a doença que requer isso, não são os mercados. Temos que proteger os empregos, o mercado, o bem estar de todos. Como proteger os empregos? Como proteger o bem estar de todos? Simples: com mais juros nos bolsos dos investidores internacionais, os primary buyers. Oxigénio para a Finança mundial, mais correntes para nós.

E qual a surpresa se esta “crise” for também explorada para mudanças nunca antes vistas? Não estamos a financiar, há décadas, os nossos carrascos? Agora, camuflados de filantropos, os carrascos oferecem a salvação numa inócua agulha. Uma picada e o pior dos inimigos estará derrotado. É a nossa única bóia de salvação, as outras são apenas ilusões sem o selo da Ciência. É tão simples: como recusar? Uma picada para poder voltar ao patriotismo religioso do “Crescimento”. Uma nova ronda no carrossel, oferece o dono da feira. A “crise” funcionou outra vez

Mais Illich:

A “crise” pode antes indicar o momento da escolha, aquele momento maravilhoso em que as pessoas se apercebem subitamente das jaulas em que estão fechadas e da possibilidade de viverem de uma forma diferente.

Para sorte dele, Illich morreu em 2002 e não teve que assistir à total rendição dos nossos dias.

 

Ipse dixit.

11 Replies to “A crise de Ivan Illich”

  1. A total rendição dos nossos dias ? A batalha ainda não terminou como tal não houve ainda rendição, nem derrota nem vitoria, não é apenas uma opinião mas creio que um facto! Mais potencia a disponibilidade do “condutor” pode significar também mais hipótese de desastre para o condutor que continuo convicto arriscou uma jogada de tudo ou nada perante o atraso da sua “agenda” e corre também serias possibilidades de fornicar os seu planos . O modelo de crescimento actual pode ser uma utopia uma vez que não é possível crescer infinitamente num planeta finito, mas existem muitas formas de “crescer” sem comprometer a estabilidade é o caso de crescer com base no produzir e consumir localmente e nisso esta crise veio-nos dar uma grande lição , outra forma de crescer é em conhecimento que se pode também traduzir em maior auto-suficiência e maior resiliência.
    Apesar do artigo ser uma dissertação sobre o pensamento de Ivan Illich, com o devido respeito, não faz jus ao pensamento do autor uma vez que ele nota que “crise” pode antes indicar o momento em que as pessoas se apercebem da possibilidade de viverem de uma forma diferente, e o meu caro Max vaticina como corolário da sua dissertação a total rendição dos nossos dias… Para um líder de opinião do pensamento alternativo a conclusão é desoladora.
    Por isso , lamento mas lá vou ter de retirar mais dois pontinhos da carta de de bloguista do meu estimado Max… É um trabalho ingrato, mas alguém tem de o fazer.

    1. Olá P.Lopes!

      Eu concordo como facto da batalha ainda não estar acabada. Se assim não fosse nem existiria Informação Incorrecta. Mas temos que ser honestos: somos poucos. A maioria das pessoas aceita passivamente tanto as explicações do regime quanto as suas ordens. E pede por mais!

      É verdade: a crise de Illich é uma oportunidade e eu continuo a pensar isso. Nas grandes movimentações há sempre um pormenorzito que escapa e que pode ficar como grão de areia na engrenagem. Mas não acho que esta crise, por como foi gerida até agora e consideradas as respostas tidas, possa ser a alavanca para uma tomada de consciência em massa.

      Espero algumas resistências mais pela frente, quando será tornada obrigatória a vacina: aí sim que os poucos podem tornar-se mais. Só para fazer um exemplo: o movimento NoVax (apesar de não gostar muito dele) poderia funcionar neste sentido. A ver vamos.

  2. É difícil explicar o fundamento da minha convicção em parte é genético por ser português ” O tal povo muito estranho que não se governa nem se deixa governar” o mesmo povo que se tornou o único povo independente em toda a Ibéria ao domínio do reino de Espanha …
    Em doutrina militar é considerado ” fácil” invadir ou anexar um povo…domina-lo e governa-lo com carácter duradouro é outra historia completamente diferente, a historia esta farta de demonstrar isso , extrapolando esse principio tem sido fácil manipular a população com mentiras porém tornar essa mentira duradoura será um nível completamente diferente, não só o invasor está em minoria como assenta a sua estratégia em mentiras desmontáveis e cada vez mais evidentes e visíveis.
    Espero estar enganado, mas a “pandemia” é apenas a preparação; a verdadeira invasão e tentativa de domínio dos nossos direitos e liberdades esta para chegar e o ritmo de mudanças para concretizar essa “invasão” será muito rápido, ora, em geral a população não gosta de coisas repentinas e tem tendência a reagir mal.
    Continuo a apostar na vitoria sobre o invasor que não é inteligente e mantém a vantagem apenas no seu secretismo. Nunca na historia da humanidade tivemos tantas possibilidades de desmascarar ! informar ! e lebertarmo-nos do opressor , o caminho é este, partilhar informação ! Apesar de alguns seres aqui presentes acharem que não devem “partilhar” o seu suporto ” conhecimento” com o “nobre” argumento de que ficaremos a saber tanto quanto ele… são mentalidades…mas no geral a informação alternativa ganha força e conquistara o espaço vital para se afirmar como contra poder.
    Creio que poderemos depois disso viver a melhor época da historia da humanidade.

    P.S. Aguardo por outro artigo em que possa devolver ao meu caro Max os 2 pontinhos subtraídos a sua carta de blogueiro.

    1. nunca tivemos tantas possibilidades de desmascara, informar, libertarmo-nos do opressor…outra piada do “filósofo” do blog…sem controle da propaganda de massas, tu não desmascara nem o zorro…os caras estupram tua filha, e se tu se queixares, eles te tomam teu dinheiro a troco de indenização na justiça…

      1. Agradeço o titulo de filosofo, é muita gentileza caro anónimo. Lamento o que aconteceu com a sua filha. Cumprimentos.

  3. “…Ninguém gosta de ouvir isto, mas é a verdade. Não estamos a viver a fase final desta crise, ainda estamos no início. Ainda teremos que conviver com este vírus por um longo tempo…”

    Declarações da sr.ª Angela Kasner, chanceler da Alemanha, a camuflar e a justificar com um vírus a devastadora crise económica que aí vem e já se sente, causada pela falência do corrupto sistema financeiro neoliberal criado e controlado pelo regime da Inglaterra.

    Isto para não falar no desespero desta gente para tentar manter o regime ditatorial da união europeia (ue) mais o seu ideal de miséria, conflitos, desigualdades, e desemprego.

    1. Olá JF, a Ângela disse isso ? E sobre o suicídio do Naiguatá GC-23 ? afinal de contas a empresa proprietária do Resolute é Alemã, de Hamburgo, ela deve saber algo… liga-lhe +49 30 81091301, diz-lhe que foi o Paulo Lopes que te deu o contacto, Paulinho … ela conhece-me mais por Paulinho.

  4. As maiorias não perderam a batalha para as minorias porque nunca houve batalha…e nem precisa… vivemos uma civilização rendida desde seus primórdios…

  5. Ivan Illich só conseguiu escrever o que escreveu porque deu-se conta do papel nefasto das necessidades humanas institucionalizadas: a educação formatada no processo escolar e acadêmico deu lugar a Sociedades sem Escolas, o conhecimento envolucrado em rituais ditos científicos, deu lugar ao Nêmesis da Saúde, o trabalho preso ao mandante, ao salário como objetivo antes da livre criatividade humana, deu lugar Desemprego Criador, e outros que já não me lembro.
    De passagem pela Universidade Católica de Porto Rico, faz muitos anos, não resisti à curiosidade de conhecê-lo pessoalmente. Encontrei uma pessoa já consumida pelo câncer, que aguentava a dor sem remédios, um perfeito jesuíta. A obra não coadunava com o Autor, enfim coisas estranhas. Mas nunca vi um autor tão desprestigiado, o que me deu indícios que aquela figura pálida, magra, esquálida, era perigosa. Ele escrevia aquilo que a maioria sequer pensava, um terrorista do pensamento vulgar ou acadêmico em tempos de rígida formatação das consciências: corpos dóceis, mentes vazias, corações frios. Ousava acusar a escola de anti educação, a ciência de anti conhecimento, a organização do trabalho de anti homem. Está atual o velho Illich, com o qual nunca deixei de concordar em quase tudo.
    Mas é um pouco tarde. Não existe grande possibilidade de desemprego criativo. Existe empreendedorismo focado exclusivamente em lucro, existe a desesperança frente ao desemprego, existe o fazer qualquer coisa para manter o emprego, existe a hipoteca da liberdade por um salarioznho qualquer. O tempo livre só serve para o comodismo, o sono. E nem tempo livre existe.

  6. Momentos de crise são oportunidade para mudanças: https://forbes.com.br/colunas/2020/04/o-que-vem-apos-a-pandemia-especialistas-apostam-no-renascimento-digital/
    Teaser: “Períodos de crise dessa magnitude podem terminar em triunfo ou em tragédia. Mas eles inevitavelmente dão origem a novas ordens sociais.”
    Spoiler: o artigo é bastante otimista com o possível resultado final. Mas na leitura percebe-se possibilidades não tão felizes, que não são exploradas no curto texto.

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