Coronavirus: eis a app que salva a vida

Vários Países estão a trabalhar em aplicações que seja possível instalar em dispositivos smartphone (Android e Apple) para combater a “pandemia” de Coronavirus. A Italia acaba de lançar SM-covid-19, já disponível na loja online de Google Play. Obviamente é gratuita e, por enquanto, não é obrigatória.

Seguríssima, ora essa

Diário La Repubblica de hoje, fala Domenico Arcuri, o comissário especial para a modernização das infra-estruturas hospitalares necessárias para fazer face à emergência do Coronavírus:

Aligeirar as medidas de confinamento significa estar em condições de mapear os contactos em tempo útil. A alternativa é simples: as medidas não podem ser atenuadas e teremos de continuar a suportar os sacrifícios destas semanas.

E sim, o simpático Arcuri fala de “mapear os contactos”. Dito de forma mais simples: uma aplicação para smartphone que consiga rastrear os smartphone. Tudo para derrotar a terrível “pandemia”. Doutro lado, Arcuri é formado em Economia, pelo que o combate às doenças é a área dele.

O rastreio dos contactos é uma forma de garantir que sejam conhecidos e, em certa medida, rastreados os contactos que as pessoas têm e que é importante sejam conhecidos se, infelizmente, alguns dos nossos concidadãos ficarem infectados. Todos sabemos que se trata de um instrumento importante, não basta ficar convencidos de que é necessário, tem também de respeitar dois factos fundamentais, a segurança e a privacidade. O rastreio de contactos é uma ferramenta útil, mas precisamos de encontrar um equilíbrio satisfatório entre os dois princípios.

Cuidado com as palavras. A privacidade é importante, ora essa, mas é preciso “encontrar um equilíbrio satisfatório” entre privacidade e segurança. Temos que ceder algo para alcançar a segurança, não queremos ser vítimas da “pandemia”, pois não?

França, Alemanha e Singapura estão a trabalhar em projectos idênticos: aplicações instaladas nos smartphones dos cidadãos para que sejam rastreados os contactos. Mas como funciona a aplicação?

O nome da app italiana, como afirmado, é SM-Covid-19 e a seguir eis o resumo do funcionamento disponível na página do produtor (SoftMining)

Utilizando métodos de transmissão de dados tais como, BT-LE, BT, WiFi P2P e GPS (se activado pelo utilizador), o telefone adquire uma identificação única (ID) de todos os smartphones próximos (entre 2 e 30 metros). A cada 60 segundos efectua o varrimento, mesmo com a aplicação em segundo plano. A cada 60 minutos, os dados agregados são guardados numa base de dados partilhada com as autoridades de saúde. Os dados são armazenados na base de dados durante 21 dias e depois apagados.

A probabilidade de contágio é calculada com base num modelo científico que tem em conta a duração do contacto, os dias decorridos desde o contacto e o número destes contactos.

Todos os dados adquiridos e o risco calculado estão acessíveis às autoridades sanitárias. Os hospitais podem ler os dados de risco e actualizar o status duma pessoa (negativo ou positivo).

Se uma pessoa apresentar um resultado positivo, o risco de qualquer outra pessoa com quem tenha entrado em contacto é automaticamente actualizado. Se o risco de infecção for elevado, o utilizador é convidado a contactar voluntariamente as autoridades sanitárias para que também possa ser monitorizado através do GPS. Cada um recebe informação sobre o seu próprio nível de risco, não sobre o dos outros. O completo anonimato é garantido.

Os cidadãos serão informados em tempo real e podem tomar espontaneamente medidas de precaução (isolamento voluntário) contra os que lhes estão mais próximos.

“O completo anonimato é garantido”. Com certeza, ora essa. Afinal temos no smartphone uma aplicação que varre o espaço à nossa volta, controla os dispositivos que cruzamos, pode ser consultada pelos hospitais e a cada hora atira tudo para o cyberespaço. Mais: se cruzarmos alguém contagiado, aconselha contactar as autoridades, ficar em casa e activar o rastreio GPS. E o que deveria fazer mais, electrocutar quem não obedece?

Se a ideia fosse distribuir uma app realmente anónima:

  1. os dados não seriam guardados
  2. os dados não seriam centralizados

Mas SM-Covid-19, tal como as idênticas apps pensadas em outros Países, guarda os dados (há quem diga durante 21 dias, há quem diga até o final da “pandemia”) e guarda tudo de forma centralizada.

Além da privacidade

A verdade? A protecção da privacidade é apenas um aspecto do problema da aplicação “imunitária” do governo. E nem é o mais importante. É lógico que as primeiras apps “salvavidas”, patrocinada pelos vários Ministérios da Saúde, sejam (relativamente) anónimas: porque é preciso ganhar a confiança dos cidadãos.

A questão principal é a utilização da tecnologia que substitui claramente a responsabilidade política do Estado. Um Estado que já não dispõe de recursos para tomar todas as medidas necessárias para resolver um determinado problema (no nosso caso, uma falsa pandemia), pensa então em mitigar os seus efeitos limitando a liberdade pessoal dos cidadãos. É mais prático e mais rápido. E, sobretudo, custa infinitamente menos do que um plano de investimento público milionário.

É lançado um modelo. O transporte público é uma porcaria? Em vez de comprar novos meios de transporte, faço a aplicação que “eficientiza” a utilização dos autocarros por parte dos cidadãos.

As políticas ultra-liberistas cortaram os recursos para aumentar a disponibilidade de camas hospitalares, comprar máquinas e contratar médicos e polícias? Fecho as pessoas em casa e quando estão à beira da exasperação (e da pobreza) obrigo-as a abandonar a casa com a aplicação de rastreio no smartphone. Poupo dinheiro e limito o problema.

É por isso que na raiz deste sistema não está (apenas) o perigo para a privacidade. Hoje, mais concretamente do que nunca, as nossas “democracias” estão a transformar-se em Estados com um cada vez mais elevado grau de vigilância activa, a fim de colmatar as gigantescas falhas do sistema público de organização e funcionamento da sociedade.

Ou seja: utilizam-se grandes quantias de dados para fazer face aos problemas estruturais do nosso presente, incluindo o modelo de produção e as desigualdades dele resultantes. É um modelo que considera muito mais conveniente influenciar o comportamento dos indivíduos do que atacar a raiz dos problemas. Que é o nosso actual sistema post-ultra-turbo-nãoseioque-financeiro-capitalista.

Ceder na questão da app não significa aceitar apenas um instrumento temporário e de “interesse público”. Significa aceitar, mais uma vez, que o Estado abdique do seu papel principal: cuidar dos seus cidadãos. Significa abdicar de algumas nossas liberdades em nome dum “bem comum” que nunca foi demonstrado. Um precedente muito perigoso do qual será muito difícil regressar e que irá abrir as portas para outras formas de controle e de recolha de informações.

Sempre é só para o nosso bem, como é óbvio.

 

Ipse dixit.

2 Replies to “Coronavirus: eis a app que salva a vida”

  1. Pink Floyd foi a metáfora perfeita para a sociedade disciplinar: “mais um tijolo no muro”, cantávamos nós jovens transgressores dos dispositivos que iam nos tornando a cópia uns dos outros, mecanismo mais fácil do disciplinamento corrente. Nós estávamos seguros de ter encontrado alguns segredos do mecanismo que nos aprisionava. Transgredíamos sendo diferentes.
    Mas a engenharia de invenção do que se chama humanidade penso ser o maior avanço tecnológico que vem se produzindo no planeta.
    E eis que chegam, montados numa falsa pandemia, as últimas atualizações. E somos aprisionados na casa, no “lar”. Mas o lar, passados os meses das primeiras angústias, tende a unir as individualidade ali segregadas. Há o medo, sim, mas do que está lá fora. Há o pânico, sim, de ser retirado a força daquele último reduto “familiar”. Nos meus delírios eu imaginava que aí estava uma falha do controle, quem sabe essa falha poderia ser um alvo de transgressões também atualizadas na cabeça de quem ainda pensa. Tudo indica que o lapso está por ser corrigido. Necessário se faz transferir o medo também para dentro da prisão domiciliar porque o inimigo pode estar escondido dentro do indivíduo. É necessário segregá-lo ao máximo, isolá-lo por completo e por livre e espontânea vontade. Então disponibiliza-se, depois obriga-se os indivíduos a fazer uma varredura de possíveis contaminados perto de si. O dispositivo de poder sobre os corpos aprisionados aproxima-se da perfeição: sozinhos, sem contatos, isolados, amedrontados, átomos de gente, quase vegetais. Os contatos virtuais, predominantes mediante o pânico universal, podem ser eliminados a qualquer momento. Já são eliminados os pensamentos transgressores registrados virtualmente. Mais um passo, e faz-se a luz da ordem oficial imperando plena.
    Ahh… não se preocupem gente. É só o roteiro para um filme de ficção que está povoando a minha cabeça maluca.
    Dizem que tudo vai passar, que a fé e a esperança devem nos guiar. Onde foi que eu perdi estes adereços, fé e esperança?
    No baú da existência só encontro raiva, e coisinhas similares.

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