50.000 crianças mortas

O Coronavirus é terrível, sem dúvida. Ou talvez não. Mas o que interessa é que os governos mundiais têm reagido prontamente (até demasiado prontamente…) perante uma doença que aparenta arruinar a nossa economia. Mas o que acontece quando algo mata milhares de indivíduos sem ameaçar a nossa economia? Quando os entes queridos em risco não forem os nossos?

Pegamos num País como o Yemen. A Arábia Saudita e os seus aliados lançaram uma agressão militar contra o País asiático numa tentativa de restabelecer o antigo regime apoiado por Riad e eliminar o movimento Houthi, que defende o Yemen com as forças armadas. A ofensiva do Ocidente, combinada com o bloqueio naval, destruiu as infra-estruturas do País. Também provocou uma horrível crise humanitária, com muitas crianças que sofrem cólera e grave desnutrição. E são mesmo as crianças que estão entre as vítimas mais vulneráveis da guerra imposta ao Yemen pela Arábia Saudita. Mas o problema mal tem atraído qualquer resposta internacional, apesar dos inúmeros relatos de mortes.

Em Fevereiro do ano passado, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, afirmou que dezenas de milhares de crianças com menos de cinco anos morreram de fome no Yemen desde que a Arábia Saudita lançou a agressão militar. Em Novembro, o Ministro da Saúde Pública do Yemen, Taha al-Mutawakel, anunciou que a cada 10 minutos uma criança com menos de cinco anos de idade morria de fome no País devastado pela guerra.

Linhas de créditos para ajudas imediatas? Envio de medicamentos? Reuniões de alto nível para tentar solucionar o problema? Macaquinhos bem treinados nas varandas a cantar para o fim desta atrocidade? Não, nada.

Um porta-voz do Ministério da Saúde em Sana’a, Saif al-Hadri, criticou a inacção da comunidade internacional perante a crise realçando como nenhuma das grandes potências globais tomou qualquer iniciativa séria para forçar a Arábia Saudita a levantar o cerco e a trabalhar para o fim da guerra. Descreveu a situação das crianças do Yemen como “desastrosa”, salientando que “cerca de cinco milhões e meio de crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição”, com “80% das crianças no Yemen que vivem em estado de crescimento atrofiado e anemia devido à desnutrição”. Mais: mulheres que dão à luz crianças desnutridas que têm pouca esperança de sobreviver.

A agressão saudita forçou milhões de pessoas a abandonar as suas casas e deixou 24.1 milhões de indivíduos (mais de dois terços da população iemenita) com necessidade de assistência humanitária, incluindo mais de 12 milhões de crianças. O Projecto de Localização de Conflitos e Eventos Armados (ACLED), uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, estima que a guerra tenha causado mais de 91.000 vítimas nos últimos quatro anos e meio.

Dezenas de milhares de pessoas, a maioria civis, mortas em ataques aéreos e operações terrestres sauditas. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos compraram biliões de Dólares de armas dos Estados Unidos, na França e no Reino Unido: a coligação liderada pelos Sauditas realizou cerca de 20.500 ataques aéreos no Yemen.

A guerra é guerra, a doença é outra coisa: é correcto fazer comparações? Na minha óptica sim. Aliás, é mais do que justo porque, enquanto uma doença pode progredir ao sabor dos Deuses, a guerra é algo que pode ser evitado. Assim é lícito comparar, por exemplo, a reacção das nossas classes políticas e a reacção dos cidadãos, a nossa reacção.

A classe política não mexe um dedo porque a Arábia Saudita é um nosso aliado. Não que os sauditas sejam particularmente simpáticos, mas têm petróleo e colaboram com israel. Isso chega e sobre para os nossos governos fecharem um olho ou até dois se for necessário.

E nós? Nós… nós nada. As crianças mortas no Yemen não são vítimas “nossas”. Sim, são crianças, mas não deixa de ser gente distante, diferente, estranha. Se estão em guerra é porque deve ter havido uma história estranha por aí. Quem sabe, se calhar é culpa do Yemen também.

O avozinho com obesidade mórbida, diabetes e câncer no estádio mais avançado faz chorar, é fofinho e merece as primeiras páginas dos diários. Se calhar passou a vida a encher-se de gorduras, a fumar sem parar, mas merece ser salvo, bem vale a pena fechar-se em casa por tempo indeterminado, abdicando até dos nossos direitos constitucionais mais básicos. Cinquenta mil crianças? Não. Provocam pena? Sim, mas não basta, não justificam o mais pequeno sacrifício nosso, nem uma carta para o nosso governo. Esta é a realidade que ninguém pode contestar.

E por qual razão esquecer o conflito no Afeganistão, na Síria, na Somália, no Iraque, na Líbia, na Palestina, no Sudão, no Níger…  Cada um deles provoca mortes, milhares, até dezenas de milhares de mortes. Uma lástima, sem dúvida, mas não basta para justificar uma qualquer nossa reacção. Nós temos o Coronavirus, e que raio. O que, dito de outra forma, significa: podem continuar a morrer.

 

Ipse dixit.

Fonte: FRN

Imagem: The Telegraph

3 Replies to “50.000 crianças mortas”

  1. Pegando nas palavras de John Pilger:

    «…A pandemic is declared, but not for 24,600 dead every day from unnecessary starvation, or 3,000 children dead every day from preventable malaria, or the countless daily dead from America’s blockade on Venezuela and Iran and its bombs on Yemen. Before you panic consider them…» – https://twitter.com/johnpilger/status/1237917012958924803

  2. O consentimento é fácil. Basta acreditar que povos em estado de genocídio sejam entendidos como bárbaros,sujos, gente sem coração, felizmente muito distantes de nós e berço de grupos terroristas. Nunca podemos ser comparados a eles, ainda que nossas características sejam muito próximas aquilo que taxamos de defeitos dos outros. A invisibilidade a que são condenados não nos perturba, não nos incomoda. Não tomamos conhecimento, nem emitimos juízo de valor.
    Tenho visto que “sabemos” o que supostamente acontece na Europa ocidental e mediterrânea, EUA/ Israel antes de mais nada. A maioria de nós no Brazil, independente de sermos escolarizados ou não, não saberia localizar no mapa qualquer outro lugar, muito menos o que lá acontece. E para piorar, a maior parte de nós repete a mídia e de verdades, sabe coisa nenhuma. Nesse contexto o bio terrorismo presente em diversas guerras híbridas, como no Yemen, não se fala, e como diria o “glorioso” dono da Globo, Roberto Marinho: o que não se noticia, não existe.

  3. Desde que seja lá longe, parece não incomodar ninguém.
    O vírus enquanto esteve na China também foi votado à indiferença, tal qual a guerra, a fome, etc.
    Com disse George Carlin: ‘If you have selfish, ignorant citizens, you’re gonna get selfish, ignorant leaders.’ – O problema está nos cidadãos. Amén.

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