A lição da Boeing

Quando tu reparas que nada falta, todo o mundo te pertence.

Lao Tze

 

Já sabemos: o modelo de desenvolvimento em que embarcamos desde a Revolução Industrial, e que percorremos de forma cada vez mais rápida, está errado. Não é apenas um problema ecológico, mas económico e humano.

Além da obsolescência

Uma diretiva da UE quer forçar as empresas a “prolongar a vida dos seus produtos”. Uma medida inteligente, excessivamente inteligente, demasiado inteligente considerado que chega de Bruxelas.

Dúvida: mas no Europarlamento têm noção do que acabaram de aprovar? O quê? Ahhh, aproximam-se as eleições, ok, agora tudo fica mais claro. Porque esta medida, se realmente aplicada e estendida (por enquanto só diz respeito aos eletrodomésticos), seria devastadora. Vai contra um dos totens sobre o qual o nosso modelo de desenvolvimento fica baseado: a obsolescência programada do produto, ou seja, um produto deve ter uma vida curta, a mais curta possível, para não interromper mas acelerar o ritmo do consumo.

Mas a diretiva vai bem mais além do ponto de vista concetual: o mercado sempre apresenta uma nova série de qualquer coisa, alguns meses depois de ter iniciado a venda da novidade anterior. Isto é particularmente evidente na economia digital, onde um smartphone de nova geração é colocado no mercado com variações insignificantes em relação ao anterior para atrair o homem-consumidor. Que, pressionado por uma publicidade igualmente urgente, cai regularmente na armadilha (também porque ele gosta da armadilha). Mas o mesmo conceito é válido quase para qualquer outro produto.

A nova diretiva é um passo atrás, no bom sentido, na direcção da economia da reciclagem, que foi a normalidade durante séculos. Afasta-se do mito do crescimento exponencial, que necessariamente leva ao colapso ecológico e económico. Ou até mesmo físico: porque o desenvolvimento cria insegurança. Na busca frenética para um desenvolvimento cada vez maior/melhor, o homem torna-se subordinado demais à economia e à tecnologia.

A China, por profundas razões culturais, sempre observou a teoria da inação, que é dita em termos muito simplistas “da não-ação” do Lao-Tze (O Livro da Norma); atirada-se para o modelo do desenvolvimento ocidental algumas décadas atrás, hoje tem no suicídio a principal causa de morte entre os jovens e a terceira entre os adultos. A “Riqueza das Nações”, para citar Adam Smith, não tem nada a ver com o bem-estar e a qualidade de vida dos seus habitantes.

No alvorecer da Revolução Industrial, no seu livro O Pauperismo, Alexis de Tocqueville (primeira metade do séc. XIX), notava como na Europa os Países que tinham sido os primeiros a tomar essa estrada apresentavam um número muito maior de pobres do que os que permaneceram “imóveis”. Tocqueville escrevia:

Ao viajar pelas diferentes regiões da Europa, somos surpreendidos por um espetáculo verdadeiramente estranho e em aparência inexplicável. Os países considerados mais miseráveis ​​são aqueles onde há menos gente pobre, enquanto que entre as nações que todos admiram pela sua opulência, uma parte da população é obrigada, para viver, a recorrer às esmolas dos outros.

  • Isso significa que temos de abrandar? Sim.
  • Isso significa que temos de abandonar o totem do crescimento a qualquer custo? Sim.
  • Isso significa que temos de abandonar o desenvolvimento? Não.

São três coisas diferentes: o crescimento a qualquer custo é mau, o desenvolvimento é bom, o desenvolvimento forçado pelas leis do mercado que querem um crescimento a qualquer custo é mau.

A lição da Boeing

E falamos disso: das leis do mercado que querem um crescimento a qualquer custo.

No último domingo, um voo da Ethiopian Airlines caiu, causando a morte de todas as pessoas a bordo. Cinco meses antes, um jacto da Lion Air, na Indonésia, caiu perto de Jacarta. Todos os tripulantes e passageiros morreram também. No total: 346 vítimas. Ambos os aviões eram Boeing 737-8 MAX. Ambos os incidentes ocorreram imediatamente após a descolagem.

Passo atrás. Em 2010, a Airbus decidiu oferecer o seu A-320 com um novo motor, chamado New Engine Option (NEO), que gasta menos combustível. Para combater a novidade da Airbus, a Boeing teve que fazer a mesma coisa: mas os novos motores do 737 MAX são maiores também e tiveram que ser posicionados de forma ligeiramente diferente da versão anterior. Isso mudou as características de voo da aeronave, dando-lhe uma certa tendência a subir.

Estas novas características de voo do 737 MAX exigiriam um treino dos pilotos. Mas os profissionais do marketing da Boeing disseram aos seus clientes que o 737 MAX não exigiria algum novo treino. Em vez de dispendiosas sessões no simulador de voo, os pilotos receberam 55 minutos de documentação técnica num tablet. Música para os ouvidos das companhias aéreas: poupança de dinheiro e de tempo.

Para que tudo isso fosse viável, os engenheiros da Boeing tiveram que recorrer a um pequeno truque: acrescentaram um “sistema de aprimoramento de recursos de manobras” (MCAS) que baixa o nariz da aeronave se um sensor detectar um ângulo de ataque muito alto (AoA) que poderia levar a uma perda de sustentação (“estol” em brasileiro). Mas os engenheiros fizeram uma coisa estúpida.

O 737 MAX possui dois computadores para o controle de voo. Cada um está conectado a apenas um dos dois sensores que leem o ângulo de ataque. E, durante o voo, apenas um dos dois computadores executa a verificação do MCAS. Se detectar um ângulo de ataque muito alto, baixa o nariz por cerca de 10 segundos; deixa passar 5 segundos e volta a ler os dados do sensor: se este continua a mostrar um ângulo de ataque muito alto, o MCAS tenta baixar novamente o nariz da aeronave.

Problema: o MCAS é independente do piloto automático e fica activo durante o voo manual. Existe um procedimento para desactivá-lo, mas isso leva tempo.

Um dos sensores de ângulo de ataque no voo indonésio estava defeituoso. Infelizmente, era aquele conectado ao computador que executa o MCAS durante o voo. Logo após a descolagem, o sensor tinha sinalizado um ângulo de ataque muito alto, embora o avião estivesse procedendo de forma regular. O MCAS baixou o nariz e os pilotos reagiram desabilitando o piloto automático e levantando o nariz do avião. O MCAS activou-se de novo, obrigando o avião a mais um mergulho. Os pilotos tentaram levantar o nariz. Isso aconteceu 12 vezes até o avião cair no mar.

A coisa estúpida feita pelos engenheiros foi a seguinte: a automação do MCAS depende de um único sensor. Se este for defeituoso, adeus. Mais: um sistema de controle automático de voo que permanece activo mesmo quando o piloto voa manualmente é uma péssima escolha. E pior: a Boeing manteve esse recurso escondido. Nem as companhias aéreas que compraram os aviões, nem os pilotos que os pilotaram foram informados da existência do MCAS. Não estavam cientes de um sistema autonomo que controlava o avião, mesmo quando o piloto automático estava desligado. Não tinham ideia de como poderia ser desligado. Viam o avião baixar e não tinham maneira de entender a razão ou de resolver a situação. Estúpido e criminoso.

A razão desta atitude? Podem ser muitas: excesso de confiança, pressa para propor no mercado um novo produto, simples poupança… mas o resultado não muda: o novo avião foi posto no mercado sem as necessárias precauções. E isso tornou-se tragédia. Temos que lembrar o caso dos telemóveis cujas baterias explodiam ou pegavam fogo? A lei do mercado põe de lado a segurança, o lucro fala mais alto.

A FAA e a multinacional

Certo é que nem a FAA (a Federal Aviation Administration, a entidade governamental dos Estados Unidos responsável pelos regulamentos e todos os aspectos da aviação civil) fica bem na fotografia. A FAA certifica todas as novas aeronaves e a relativa documentação: um processo extremamente detalhado, com centenas de pessoas que trabalham para certificar um moderno jacto, onde cada pequeno parafuso e até mesmo os menores detalhes de hardware e software devem ser documentados e certificados.

Como ou porquê a FAA certificou o 737 MAX com o MCAS mal projetado?

Nove dias após o voo indonésio da Lion Air 610 ter acabado com num acidente fatal, a FAA emitiu uma Emergency Airworthiness Direcive, uma directiva de emergência sobre a segurança do Boeing 737, especificando qual o tipo de mal-funcionamento que estava em causa e quais os efeitos:

Isso significa que a FAA estava ciente dos problemas do avião: mas quais medidas foram tomadas? Nenhuma. Porque obrigar as companhias aéreas a parar os voos, obrigar a Boeing a admitir um erro criminoso, pôr em causa um modelo novinho em folha que representa a maior parte do facturado duma multinacional ao longo dos próximos anos, tudo isso teria significado uma assinalável perda de dinheiro. Na dúvida entre perdas de vida ou perdas de dinheiro, a escolha deveria ser óbvia. Mas já não é.

Produzir para consumir

Aumentar a produtividade, poder distinguir-se no meio da competição global. Precisamos de produzir, compulsivamente, para consumir, compulsivamente. Pior ainda, as coisas agora ficaram invertidas: consumimos para produzir. Estamos ao serviço do mecanismo e não o contrário.

Como saímos desse automatismo infernal? É complicado: deveria haver um regresso gradual, limitado e fundamentado, às formas de auto-produção e auto-consumo que passam pela recuperação da terra e uma drástica redução do sistema industrial e financeiro. Combater não o desenvolvimento (que é parte integrante do ser humano e é benéfico) mas o crescimento forçado, o mesmo que obriga a produzir para consumir tudo e depressa, filho do livre mercado, do lucro a qualquer custo.

Uma utopia? Com certeza: uma utopia, mas só por enquanto. O ser humano é genial e idiota ao mesmo tempo: demasiadas vezes tem que dar com a cara na parede antes de entender que é rija. Numa palavra: casmurro. A medida da EU sabe a algo “para o inglês ver”, um rebuçado para cidadãos que começam a pôr-se algumas questões. Duvido que consiga um verdadeiro impacto, é demasiado cedo: a cara chocou contra a parede mas ainda não doeu o suficiente.

 

Ipse dixit.

Fonte: Moon Of Alabama

Recurso: Lao Tze – Tao Te Ching

One Reply to “A lição da Boeing”

  1. Certo, certo, certo, conheço bem algo que chamamos GATO, que consiste num arremedo de medidas ilegais que permitem alcançar o que se deseja possuir. É através de gatos que a maioria da população pobre do Brasil urbano tem acesso à eletricidade e tv a cabo, Bom, mas tem uma diferença: os brasileiros fazem gatos que funcionam e lhes permitem acesso a bens de consumo convenientes, sem pagar. Parece que o lado rico da história fazem gatos que não funcionam, matando gente para obter lucros milionários. Faz falta para eles essa criatividade humana que só a necessidade de subsistência ensina. Por outro lado, imagina só o quanto de lixo eletrônico se acumula nos países lixeira do mundo, em especial, litorâneos africanos, com a desculpa cínica da reciclagem que estes povos terão oportunidade de fazer. É a mesma reciclagem que os brasileiros pobres realizam: Hipnotizados pelo consumo, compram com cartões de lojas de departamento que os obrigam a manter prestações, caso contrário cobram taxas de não participação, móveis de compensado com uma laminazinha brilhante que os cobrem, geladeiras e fogões que enferrujam antes de serem pagos…Então jogam esses materiais prematuramente estragados nas calçadas, “no tempo”, como dizem, ou em córregos ou rios. Quando há caminhões que compram ferro velho, as geladeiras e fogões desaparecem, os demais são consumidos pelo “tempo” ou engrossam a poluição dos rios. Um comportamento que os europeus não conhecem é a chacota que gente como eu que tem algumas coisinhas de madeira com 50 anos, madeira de verdade, não serragem embrulhada para presente, no formato de móveis. Isso para a maioria da nossa gente é velharia, coisa de museu. E correm para a direção que a tv indica diariamente: lojas de departamento, centros comerciais modestos com aparência de grandiosidade, imensos super mercados. O ciclo de degradação dos materiais parece ter semelhança com o ciclo de degradação humana.

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