Por qual razão os aviões da Boeing caem

Não vou no centro comercial, prefiro uma loja. Que, entre as outras coisas, oferece promoções. Objetivo: comprar uma escova de dentes elétrica. Não é um capricho mas uma clara prescrição do dentista: carrego demasiado a escova manual, estou a ferir as gengivas. Então: escova de dentes com sensor de pressão. Obedeço, é ele que sabe.

Muitas escovas, todas iguais aos meus olhos. Limpeza 2D, limpeza 3D, 20.000 rotações por minuto, 8.000 impulsos, 20 minutos de autonomia, melhor 30 minutos, alarme depois de dois minutos no mesmo quadrante da boca, luz azul. Fogo, pensava fosse mais simples. Falo com o funcionário. “Esta!” diz seguro. O que tem esta? Tudo, inclusive o bluetooth. Levíssima dúvida: o que faço com o bluetooth na escova para limpar os dentes? Nem o funcionário sabe. Vai ver no computador.

O bluetooth na escova pode ser ligado a uma app (antigamente era “aplicativo”) que dá dica sobre como limpar os dentes e já vem com filtros para a selfie. Olho para o funcionário, não entendo: “Selfie?”. Sim senhor, selfie. Afinal quem não deseja tirar uma selfie enquanto está a limpar os dentes? Depois é só fazer upload na internet, partilhar no Instagram com o resto do planeta que, como é claro, hoje levantou-se da cama só para poder espreitar na nossa boca. Como é que nunca tinha pensado nisso?

Como sou analógico, prefiro a escova sem bluetooth. Tenho noção de ter adquirido uma escova sem bluetooth, um modelo evidentemente inferior. Peço desculpa, ainda não estou pronto para fazer o upload dos meus molares no Instagram. No futuro, quem sabe?, poderei sempre evoluir. Agora é cedo.

Na caixa: “Tem cartão da loja?”. Não sei, controlo: devo ter um 20 cartões na carteira, outros em casa, mas este falta, que raio… “Não, não tenho. Mas o vosso cartão tem obrigação de compra?”.

Explico. Há algumas semanas fui ao banco e a funcionária, que me conhece, estava tranquilamente a falar comigo e verificar um par de detalhes quando de repente diz “Olhe! Mas você sabe que está sinalizado no Banco de Portugal?”. Eu? E como posso estar sinalizado no BdP? E o que significa “sinalizado”? Significa que tenho uma dívida que não paguei. Mas eu não tenho dívida nenhuma. “Tem sim: 20 Euros”. Vinte Euros?!? Uma vez em casa, acedo ao Banco de Portugal e descarrego as informações: descubro que a dívida é duma empresa de crédito, a Oney, que trabalha por conta da Norauto, uma cadeia francesa de oficinas para automóveis.

Então é assim: como titular dum cartão Norauto, sou obrigado a efectuar uma compra no prazo de 12 meses, caso contrário tenho que pagar a “inactividade” do cartão. São 13 Euros. Obviamente não recebi nenhum aviso (não sou um clandestino, tanto a Norauto quanto a Oney têm o meu contacto, avisar não custava muito), mas pouco importa: cada 12 meses sou obrigado a adquirir algo, a “sanção” é automática. E, dado que não paguei os 13 Euros, eis a sinalização ao Banco de Portugal mais os relativos encargos: total 20 Euros e o meu nome na lista negra visível a todos os bancos. Olé.

Explica o funcionário ao telefone: “Não tem que ser uma compra importante, pode ser só simbólica”. Olha que sorte a minha. Mas não é isso que interessa: o ponto é que um cartão que obriga a comprar algo é um absurdo e deveria ser proibido. “É tudo informatizado: logo que o sistema detecta uma factura não cobrada, parte a sinalização de forma automática”. Ahe? Paguei os vinte Euros, o meu nome desapareceu da lista negra do Banco de Portugal e deixei de ser cliente Oney e Norauto. Tudo no mesmo dia, automaticamente.

Saio da loja, feliz com a minha escova de dentes e o 56º cartão de “descontos e inúmeras outras vantagens”. É tempo de festejar. Telepizza é uma empresa espanhola que faz pizzas. Não são grande coisa, mas sempre melhor de que Pizza Hut, com aquelas pizzas altas 10 centímetros. Ok, seja Telepizza que também fica aqui perto. Olho o menu: escolhido. “Quero uma pizza Mexicana, mas sem milho”. É assim: o milho irrita-me porque é adocicado. Se quero uma pizza doce então encomendo uma pizza doce, eu quero uma pizza salgada e picante. É um meu direito, também previsto pela Constituição. Talvez, não tenho a certeza. Mas deveria ser previsto, especialmente quando estão em jogo o milho ou o outro grande inimigo das pizzas: o ananás.

A funcionária, 20 anos e uma grande paixão pelo seu trabalho, visível no rosto totalmente inexpressivo, responde: “Então pode ficar com uma pizza Crispy Bacon”. Eu não quero a Crispy Bacon, quero uma pizza Mexicana. A Crispy Bacon leva o pimento? Não, então não quero. “Mas não dá” diz a funcionária que vira o ecrã para mim: “Vê? Ao retirar o milho automaticamente é retirado o pimento”. De facto o computador é demoníaco: retira o milho e o pimento também. Alternativa: Crispy Bacon. Ainda? Não quero uma Crispy Bacon. “Não consigo” diz desconsoladamente a funcionária. Estamos num impasse: a automação tomou o controle da realidade, a eterna luta do homem contra a máquina. E não há nada a fazer: a máquina ganha, não temos nenhuma possibilidade. Ou talvez sim, talvez haja ainda uma pequena faísca de esperança algures…

“Desculpe, não pode dizer ao seu colega para preparar uma pizza Mexicana sem milho?”. O rosto da funcionária ilumina-se: foi feita luz! Da escuridão surgiu a genialidade tipicamente humana contra a qual a máquina (ainda) nada pode!

Acabo a pizza Mexicana sem milho enquanto espreito a televisão que explica a razão pela qual os novos aviões da Boeing caem como moscas. Culpa dum software. Talvez o cockpit tentou tirar uma foto aos caninos dos pilotos. Ou talvez foi um dos passageiros que pediu uma pizza sem milho. Tempos esquisitos estes.

 

Ipse dixit.

One Reply to “Por qual razão os aviões da Boeing caem”

  1. Airbus: Hey, I am putting a new engine on A320 and I call this wonder NEO.
    Boeing: I am doing better and putting a new engine on 737. I call this masterpiece MAX.
    Boeing’s engineer 1: We have a problem. These new engines are larger than the previous ones. No adequate ground clearance.
    Boeing’s engineer 2: Easy. Mount them higher and farther forward on the wings.
    Boeing’s engineer 3: No, we will have a destabilizing effect , especially at lower speeds during high-banked…
    Boeing’s engineer 2: Don’t worry. We have an app, sorry system, for that. It is called MCAS.
    Boeing’s engineer 4: Good. Let’s give training to pilots about this new system.
    Boeing people 1: No, we promised airlines to minimize the costs of pilot retraining.
    Boeing people 2: He is right. They will not buy MAX if there is costly and time-consuming training.
    Boeing’s engineer 4: Oh. At least, let’s make them know about it.
    Boeing people 1: Yeah, somebody prepare a briefing.
    Boeing people 2: HOORAY. Here is a shiny presentation for the customer.
    Boeing’s engineer 4: This is insane.
    Boeing people 1: Relax. We don’t hide anything. Everything is written in maintenance manuals.
    Boeing Engineer 5: Knock knock
    FAA: Who’s there?
    Boeing Engineer 5: Boeing ODA.
    FAA: ODA who?
    Boeing Engineer 5: ODA who does self-certification and whose engineers sign off on their own work on behalf of you.
    FAA: Here is your certificate. Now, go away. I am listening ” I don’t care, I love it” song.
    Boeing Engineer 6: Hey guys, here is the certificate from FAA.
    European Regulators: Good job.
    Brazilian Regulator: I don’t like you and I don’t like FAA. I require that pilots be made familiar with the change.
    Boeing: Whatever. I married your old girlfriend.
    After the accidents
    FAA: The investigation has just begun and to date we have not been provided data to draw any conclusions or take any actions but we stopped listening to that song. I ensure you that we will ground 737 MAXs just as soon as one crashes in the US.
    ——–
    I am not saying that this is what happened. Reality is more complicated than fiction. I am saying that it is all Airbus’s fault. They started this rat race.

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