O futuro do império americano

Alfred McCoy é um dos melhores historiadores dos Estados Unidos. Prémios e reconhecimentos não faltaram ao longo da sua longa carreira: não é conhecido ao grande público porque os historiadores não gozam de notoriedade e porque as suas pesquisas sempre foram profundas e incómodas. Quando se publica um livro como The Politics of Heroin in Southeast Asia, no qual são documentadas as interacções entre CIA e cartéis de droga asiáticos (Filipinas, Afeganistão, Laos, China, Cambodja, Tailândia, etc.) e as máfias ocidentais (The French Connection), abdica-se automaticamente do grande sucesso. Se a isso juntarmos um livro que explica as razões pelas quais o poder norte-americano é destinado a desaparecer em breve, como é feito em In the Shadows of the American Century: The Rise and Decline of US Global Power, então é normal que o nome de McCoy fique conhecido apenas entre os especialistas.

O jornalista Nick Turse (The New York Times, Los Angeles Times) entrevistou McCoy pelo mais antigo mensal dos Estados Unidos, The Nation.

O futuro do império americano

Você conquistou a notoriedade há 45 anos, quando formou-se e partiu para uma zona de guerra com a intenção de explorar as ligações entre as operações secretas da CIA, o comércio de heroína e a guerra no Vietnam. Já esteve ao redor do mundo, sobreviveu a uma emboscada no Laos e foi alvo do governo dos EUA. Como fez isso e por qual razão fez isso?

O “como” é simples. Simplesmente segui um comando militar de um lado do planeta para o outro, de Hong Kong para Saigon, Bangkok, Rangoon e Paris, circum-navegando a Terra numa viagem de descobertas que muda a vida. O “porquê” é mais complexo. Fui levado a entender a dinâmica política de uma guerra que estava a destruir três Países no sudeste da Ásia e dividindo o meu.

Seguindo os rastos da heroína do Vietnam do Sul, onde mais de um terço dos soldados norte-americanos eram consumidores regulares, até as montanhas do Laos, onde era cultivada a papoula do ópio, tenho testemunhado a guerra secreta travada pelo “Exército Clandestino” da CIA que consistia em 30.000 milicianos locais e na maior campanha de bombardeio aéreo na história militar, organizada pela Força Aérea dos EUA. Enquanto eu caminhava naquelas terras altas, longe das estradas asfaltadas e até mesmo da eletricidade, se eu olhasse para cima via o céu completamente coberto pelas trilhas brancas geradas pelos incontáveis ​​aviões americanos envolvidos nos bombardeios.

Um ano depois, quando o manuscrito estava prestes a ser imprimido, o gestor das operações secretas da CIA queria encontrar o meu editor, pedindo-lhe para não imprimi-lo. Como resultado da negação, a vingança começou: telefones sob controle, visitas das autoridades fiscais, fontes silenciadas, uma vida inteira passada através da peneira. Quando o livro foi concluído, descobri o poder louco desse sistema clandestino, a alma pulsante do Império que devastava uma nação do outro lado do planeta e penetrava na vida privada dos lares americanos.

Depois de todos estes anos, propõe um novo livro que, para ser precisos,  é publicado pela editora que fundei com Tom Engelhardt de TomDispatch e que é intitulado “Nas Sombras do Século Americano: A ascensão e o declínio do poder global dos EUA”. Óptimo título e óptima história. Pode explicar?

Os EUA não são apenas o império mais poderoso e próspero da história humana, mas também o menos estudado e o menos compreendido. Durante a Guerra Fria, a URSS denunciou os EUA como imperialistas, de modo que os historiadores americanos adoptaram a ideia da “Excepcionalidade Americana”: os EUA podem ser líderes mundiais, até mesmo super-potência, mas nunca um Império, diziam.

Depois do 11 de Setembro e da desastrosa intervenção no Iraque, observadores de qualquer sector adoptaram o termo “Império” para perguntar se a hegemonia de Washington não estava em declínio. De repente, analisar o Império Americano já não era apenas discussão de sala de estar académica. Todos esses anos de negação do poder global dos EUA levaram a um debate público “treinado”. Os americanos estiveram no topo do mundo por tanto tempo que não conseguiam mais lembrar como haviam aí chegado.

Então, depois de passar uma década a trabalhar de perto com uma rede de 140 historiadores em quatro continentes para corrigir essa visão e comparar os EUA com outros impérios, decidi colocar, limpos da linguagem académica, todos os resultados da análise neste livro. Um guia único e sucinto sobre o crescimento e o declínio da potência global dos EUA.

Os EUA serão o próximo Império a cair? Quem vai tomar o lugar deles?

Certamente somos testemunhas do fim do império americano mas não da forma de governação mundial. Se lermos entre as linhas das manchetes dos jornais dos últimos 18 meses, notamos que estão a aumentar os sinais de que a dominação global de Washington está a entrar em colapso como resultado de uma série de factores que muitas vezes acompanham cada declínio imperial. O National Intelligence Council, o órgão analítico mais importante de Washington, só faz previsões preocupantes: a hegemonia dos EUA terminará em 2030. Mas não dizem quem a substituirá.

Correndo o risco de adicionar-me à longa lista de historiadores que estão em desgraça ao utilizar o passado para prever o futuro, é assim que decidi jogar a minha credibilidade: aposto tudo na China e nos seus programas de infra-estrutura de custo estelar que vai fazer da Eurásia uma super-potência económica; mas sem esquecer os biliões para desenvolver e dominar a África e uma crescente força militar que quebra o cerco de Washington na Ásia e empurra a Marinha dos EUA em direcção de Guam ou de Havaí.

Os cépticos pode falar de temas como o envelhecimento da população, cada vez mais inquieta, da economia muitas vezes instável ou das tecnologias que ainda não sabem utilizar da melhor forma, tudo isso para pintá-la como um tigre de papel que nunca ultrapassará os EUA. Mas esquecem o ponto mais importante: a crescente integração económica de Ásia, África e Europa para um único “continente”, que tem a China no seu epicentro, as rotas do comércio e do poder geopolítico fluirão longe de Washington e na direcção de Pequim.

No seu novo livro, há um capítulo intitulado “Covert Netherworld” [“Mundo subterrâneo clandestino”, ndt] que trata dos actuais intercâmbios de favores entre sistemas de inteligência desviados e grupos criminosos. De vez em quando recebemos algumas notícias, mas para a maioria esses relacionamentos são desconhecidos. Pode revelar algo?

O “Covert Netherworld” é um conceito útil para nos ajudar a entender o verdadeiro significado das operações clandestinas. Este sistema pode tomar forma em qualquer lugar onde existam organizações capazes de operar além dos limites impostos às sociedades civis, isto é, os serviços secretos e os grupos criminosos. Durante a subida até o mais alto poder, Washington criou uma poderosa rede de serviços de inteligência clandestinos para resolver a contradição central da época: como exercer a hegemonia global no mundo pós-colonial, onde os Estados soberanos são teoricamente imunes a tal interferência.

Enquanto centenas de Estados protegem as fronteiras e impõem impostos a todos os tipos de importações, os grupos criminosos transnacionais nascem e crescem em todos os lugares, controlando efectivamente o tráfico das drogas, 4% do volume dos negócios do comércio mundial. Isso significa muitas pessoas e muito poder fora de todo o controle e ordens dos serviços secretos. Durante a Guerra Fria, a CIA tem manipulado com sucesso este “Covert Netherworld” na África, América Central e Ásia Central, embora actualmente o domínio seja reduzido porque os Talibans estão a controlar o tráfico de heroína para apoiar a luta contra a presença dos EUA.

Você concentrou-se mas ferramentas usadas pelos EUA para fins de poder, como operações militares clandestinas e tortura. Poderia dizer algo sobre o que significam para o nosso País e para as pessoas no estrangeiro?

As operações clandestinas e a tortura são os dois lados da medalha imperial americana, com uma que é frequentemente bem sucedida enquanto a outra não. Depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto 7 impérios europeus deixaram 100 Países livres, a CIA provou ser muito hábil em garantir que esses palácios presidenciais fossem habitados por líderes controlados remotamente. E se as eleições manipulada falhavam, então depois havia golpes, como aconteceu em Laos, Chile e Vietnam do Sul. Enquanto esses golpes asseguraram o objectivo táctico de colocar pessoas de confiança no interior das instituições, muitas vezes condenavam povos do mundo a sofrer longos anos de tirania, privação e violência, veja-se os casos de Chile, Guatemala, Iraque, Egipto, Indonésia ou Filipinas.

Em contrapartida, a tortura demonstrou não produzir que resultados duvidosos. Fosse no Vietnam do Sul na década de ’60, fosse nos Países da América Central nos anos ’80 ou no Iraque depois de 2003, em suma, onde quer que o terrível aura de poder dos Estados Unidos não conseguira intimidar, Washington dedicou-se à tortura e sempre com resultados desastrosos. Contra 41.000 execuções extrajudiciais e inumeráveis ​​torturas no Vietnam do Sul, o Programa Phoenix adoptado pela CIA não conseguiu capturar nem um dos líderes do Viet Cong, fazendo surgir a hipótese de que os serviços de inteligência comunistas faziam o que todos os serviços de inteligência fazem, isto é, arruinar os planos de controle dos EUA entregando apenas pessoas inocentes para as torturas e subvertendo habilmente os esforços.

Desesperados pelos declínio, os impérios em perigo, seja Inglaterra, França ou EUA, recorreram à tortura para restaurar a hegemonia. Só que, como vimos no caso de Abu Ghraib, o uso dessas práticas bárbaras desacredita ainda mais a liderança, tanto em casa como no exterior, o que só serve para acelerar ainda mais o declínio.

Você realçou os segredos do governo durante toda a sua vida adulta. Agora quero que você me dê respostas rápidas sobre a era Trump. Qual a sua opinião sobre o poder do chamado Deep State [“Estado Profundo”, ndt]?

Conceitos vagos aromatizados com paranóia é o prato do dia para a alternativa de Direita que gosta de jantar em Breitbart News [local de extrema-direita considerado misógino, xenófobo e racista, mesmo pelos conservadores, ndt]. Exactamente como o termo “império” foi tornado insensato pela propaganda ideológica, assim aconteceu com a expressão Deep State. Em vez de evocar uma vaga força escura, acho que é mais útil analisar como os serviços secretos operam como parte da burocracia dum governo, com tempos e disposições específicas.

Ataques cibernéticos nos EUA e guerra cibernética americana no exterior?

É discutível que o controle da Agência de Segurança Nacional (NSA) sobre chefes estrangeiros específicos de Estado e dos seus milhões de cidadãos seja uma ferramenta de custo razoável para exercer o poder global, apesar das revelações de Edward Snowden sobre a espionagem da NSA fizeram subir os custos políticos. Com uma velocidade surpreendente, o “submundo secreto” agora está a mover-se através da Internet, por exemplo, com trolls Russos e da Europa Oriental que gozam de protecção em troca do hacking de sítios inimigos.

Influência russa nas últimas eleições americanas?

A espionagem cibernética é uma afiada faca de dois gumes, como indicado pelas manipulações russas nas eleições de 2016: um claro sinal do declínio do poder global de Washington. Um poder hegemónico manipula as eleições de outras nações; uma super-potência declinante é manipulada.

Afirma que o poder dos EUA está em claro declínio. Qual é a causa?

Resposta curta: tendências nefastas no longo prazo, as que assombram cada potência mundial já não jovem, agravadas pelo recente surgimento de adversários credíveis como a China. Não só é provável que a economia chinesa supere os EUA em 2030, mas já passou a deter quase metade das patentes do mundo, a mais formidável série de supercomputadores e a melhor juventude com formação adequada para lançar a China na liderança militar, industrial e tecnológica até 2030. Como qualquer outro académico americano, eu também tenho alunos chineses que frequentam as minhas aulas: são muito bons e incensáveis, lembram-me a geração de meu pai, aquela que criou o Império Americano. E mesmo se Pequim tivesse que tropeçar por causa da falta de crescimento económico ou uma vaga de descontentamento popular, existem dezenas de potências emergentes que estão a trabalhar para construir um mundo multipolar para além de qualquer pretensão hegemónica.

Qual o efeito da presidência de Trump no declínio dos EUA?

Nem que fosse dirigida por um realizador perverso, Trump está sistematicamente a destruir os pilares que sustentavam o poder global dos EUA ao longo dos últimos 70 anos. Desde o fim do Segunda Guerra Mundial, Washington controlou o continente euro-asiático como uma sua fortaleza. Mas agora Trump está a enfraquecer a aliança da Nato no Ocidente e prejudicar as relações com quatro aliados-chave que têm vista para o Pacífico: Japão, Coreia do Sul, Filipinas e Austrália.

Trump destrói a continuidade da liderança de Washington quando sai dos acordos climáticos de Paris e cancela os acordos nucleares com o Irão. Desta forma, alguns aliados preciosos são aniquilados. Durante décadas, os EUA alavancaram acordos comerciais para ampliar o seu domínio. Em vez disso, Trump cancelou a Trans Pacific Partnership como seu primeiro presente ao mundo. Ele poderia fazer o mesmo com o NAFTA e os acordos de livre comércio com a Coreia do Sul.

Acerca da segurança, as palavras de Trump poderiam ser um grande erro que poderia desencadear uma tempestade militar na Península Coreana. A tendência de Trump para acções militares unilaterais lembra-me o primeiro-ministro Anthony Eden, que com a estúpida invasão do Canal de Suez, em 1956, deixou claro que o velho leão britânico tinha-se tornado um animal de circo desdentado que, imediatamente após o desastre, teria saltado perante qualquer ordem de Washington.

No final do livro, oferece diferentes cenários sobre o declínio dos EUA. São avaliações detalhadas de inteligência que oferecem uma visão verdadeira (e em muitos aspectos assustadora) dos possíveis fins do Império Americano. Sem entrar em muitos detalhes, poderia dizer o que espera para a próxima década?

Mesmo o império mais poderoso se torna surpreendentemente frágil e vulnerável de repente devido a causas imprevisíveis. Quem teria imaginado que o império britânico, que havia colonizado meio planeta por mais de 200 anos, teria desmoronado em menos de 20? Ou que o império francês, que controlava 10% da humanidade, seria dissolvido numa década? Ou que o granítico bloco soviético teria desmoronado em apenas dois anos?

Portanto, imaginei quatro cenários diferentes para o fim do poder global dos EUA por volta de 2030, na alegação de que os eventos actuais se combinem de maneira imprevisível. Num nível mais optimista, as marés do poder geopolítico fluem em direcção a Pequim, as forças militares americanas se retiram da Eurásia e Washington torna-se apenas uma das várias super-potências mundiais. A versão norte-americana do supracitado Sir Eden é menos optimista: Trump ou um seu estúpido sucessor fazem o possível para iniciar uma acção militar semelhante à de Suez, que destaca os limites do poder americano. Ou poderia haver a Terceira Guerra Mundial com a China, guerra que os EUA, de acordo com as previsões do Pentágono, poderiam não vencer.

Se tudo falhar, os custos assustadores da mudança climática, que ninguém em Washington conseguiu quantificar, vão forçar a desviar cerca de 5% do PIB agora gasto na Defesa para a restauração ambiental. O destino de todo império moderno é, mais ou menos, uma questão de 5%. Durante a década de 1950, a Grã-Bretanha liquidou o seu vasto império desviando 5% para programas sociais, descobrindo que a última aventura imperial de Suez tinha levado a moeda à beira do precipício. É razoável supor que as mudanças climáticas farão o mesmo com os EUA em 2040, forçando-os a abandonar as bases no exterior para reconstruir o País.

 

Ipse dixit.

Fonte: The Nation

One Reply to “O futuro do império americano”

  1. Que beleza de entrevista, Max! Gostaria de considerar que o segredo tem a sua complementariedade no consequente desconhecimento das massas populares. A importância da investigação é preencher lacunas essenciais mesmo no panorama da invisibilidade promovida pelo poder. O poder ancora-se na “liberdade e na democracia”, conceitos viciados e torcidos. Deixa na invisibilidade os interesses econômicos de minorias que presidem o “espetáculo”. Mas o que fica e que eu chamo de lacunas do invisível são a multiplicidade das estratégias utilizadas, além da invasão, da responsabilidade para defender, do corredor humanitário, da mudança de regime, são as constantes espionagens, e outras atividades secretas para a intermitente concentração de poder no âmbito da suposta normalidade. A estratégia visível é a guerra às drogas e à corrupção Aí o autor entrevistado realça não só a ação dos serviços secretos a margem das instituições como a tortura como estratégias chave, suas consequências em casos específicos e as contra estratégias em andamento que ameaçam a solidez da atual super potência imperial. Se o autor conhecesse o país onde vivo saberia como são assertivas suas considerações.
    Às vezes eu me pergunto porque não há guerra civil nos EUA agora. De certo é um país de zumbis, mas em todo lugar de doentes, há também os de mentalidade saudável. Considero que as massas populares de lá não tenham a mentalidade escrava que predomina aqui. Também considero lá a plena vigência do Estado policial, mas ainda assim me pergunto, e receberia de bom grado a opinião do Max e dos comentaristas a respeito. Até que ponto os impérios podem ser derrotados de dentro para fora?

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