As “novas” guerras americanas: Somália

Um artigo publicado no New York Times explica a maneira como hoje em dia os EUA travam as guerras: o exemplo é aquele da Somália mas, como observado pelos autores do artigo, o mesmo modus operandi é também aplicado em outros lugares. Trata-se da evolução da técnica de intervenção não oficial praticada há décadas.

A guerra americana na Somália começa no ano de 1991, com a Operação Restore Hope, oficialmente uma intervenção das Nações Unidas, de facto uma intervenção de Washington com os relativos aliados. As razões do inicial envolvimento dos EUA podem ser encontradas também (mas não só) no controle das concessões de petróleo: enquanto a Somália não tinha reservas comprovadas de petróleo, poderia haver ouro negro ao largo das costas.

Pouco antes do Presidente Mohamed Siad Barre (pró-EUA) ser derrubado em 1991, quase dois terços do território do País tinham sido “vendidos” como concessões de petróleo para as empresas Conoco, Amoco, Chevron e Phillips.

A Conoco até emprestou o seu complexo corporativo ena capital, Mogadíscio, para funcionar como embaixada dos EUA; e poucos dias antes dos fuzileiros navais desembarcarem, o enviado especial da primeira administração de George W. Bush utilizou a estrutura da companhia petrolifera como seu quartel-general temporário.

Sucessivamente houve intervenções americanas no País para combater o fenómeno da pirataria e, nos últimos tempos (desde 2006), para travar o avanço dos radicais islâmicos.

A situação na Somália neste período foi e ainda é de puro caos, com violência contra os civis, crimes de guerra, até genocídios provocados pelo choque entre os guerrilheiros islâmicos, as tribos dirigidas pelos Senhores da Guerra e as tropas governamentais, aquelas da Etiópia (que decidiu intervir directamente no conflito do País vizinho) e da União Africana.

É neste contexto que os EUA decidiram retirar oficialmente as suas tropas para iniciar uma guerra “diferente”. Como afirma o New York Times:

No último ano, o governo Obama intensificou a guerra clandestina na Somália, utilizando tropas para operações especiais, ataques aéreos, contractors e alianças com empresários privados africanos, numa campanha de escalation contra os militantes islâmicos no País anárquico que tornou-se o Corno de África.

Pois. Não é difícil entender como um País possa tornar-se “anárquico” após 25 anos de intervenções militares vindas do exterior. Mas continuemos.

A Somália é um exemplo daqueles “Estados falidos” que os Estados Unidos estão agora a fazer nascer onde é que passem. A definição de “Estado falhado” é o meio para justificar qualquer intervenção, qualquer envolvimento e esse modelo é aplicável em todo o mundo:

A campanha da Somália é um projecto sobre como fazer a guerra que o Presidente Obama tem abraçado e deixará para o seu sucessor. É um modelo que os Estados Unidos agora usam em todo o Médio Oriente e Norte da África – da Síria à Líbia – apesar de toda a adversão declarada pelo Presidente para colocar as “botas americanas no terreno” em zonas de guerra ao redor do mundo. Só este ano, os Estados Unidos lideraram ataques aéreos em sete Países diferentes e actuaram com Operações Especiais em muitos outros.

Fala-se aqui daquelas guerras que não estão escritas nos livros, aquelas que não precisam de aprovação do Congresso uma vez que têm um impacto (nos Estados Unidos) bastante limitado.

Os meios de comunicação estão praticamente excluídos de tais notícias, não há comunicados oficiais e os jornalistas nem pensas de pôr o nariz em certas questões. O dinheiro vem das contas secretas da CIA, das Forças Especiais ou de algum País amigo dos EUA, como a Arábia Saudita.

Esta metodologia permite evitar problemas como aquele de Guantanamo: ninguém vai debater quais são os métodos de “persuasão” utilizados durante os interrogatórios, dado que os prisioneiros desaparecem nas prisões de alguns Senhor da Guerra local, do assunto nem se fala.

A cada ano existem entre 200 e 300 Operações Especiais dos soldados norte-americanos que trabalham ao lado dos soldados da Somália e de outros Países africanos como Quénia e Uganda e têm uma frequência de quase uma dúzia de incursões por mês, segundo as declarações de altos funcionários militares americanos. Estas operações são uma combinação de incursões terrestres e ataques aéreos [drones, ndt].

A equipe Seal 6 da Marinha está fortemente envolvida em muitas dessas operações.

Quando terminar as operações em terra, as tropas americanas que trabalham com as forças somalis muitas vezes interrogam os prisioneiros nas instalações temporárias, como a de Puntland, um estado no norte da Somália, antes que os detidos sejam transferidos para prisões somalis para uma detenção definitiva, novamente de acordo com o que as autoridades militares dos EUA relatam.

Portanto: intervenções cirúrgicas, circunscritas, semi-clandestinas, que necessitam de pouco dinheiro de forma que o Congresso nem seja envolvido e que a opinião pública seja mantida fora de tais questões. Isso permite um uso indiscriminado da força, com intervenções que não são questionadas nem nas finalidades nem nos métodos utilizados.

Num ataque aéreo no mês passado, foram mortos mais de uma dúzia de soldados do governo somali – soldados aliados dos americanos – que lutavam contra o Shabab [grupos de islamistas radicais da Somália, ndt].

Os colegas dos soldados somalis mortos afirmam que os americanos foram enganados pelos clãs rivais, e que a intelligence tinha sido desviada, realçando assim a complexidade da guerra nas sombras travada na Somália.

A situação na Somália é terrivelmente complexa; os “jogadores” envolvidos são muitos, as respectivas posições por vezes são fluidas, mas “erros” como aquele aqui relatado não são investigados nem punidos: porque trata-se de operações semi-clandestinas e também porque a responsabilidade é um conceito muito limitado quando no terreno forem utilizados soldados não regulares. Fala-se portanto de mercenários, que nos Estados Unidos são chamados com o termo de contractors (literalmente “empreiteiros”), sem dúvida menos sombrio:

Numa antiga base aérea russa em Baledogle, cerca de 70 milhas da capital somali Mogadíscio, fuzileiros navais americanos e contractors [mercenários pagos pelos EUA, ndt] estão a trabalhar para construir uma unidade militar somali para lutar contra os Shabab em todo o País. Os soldados para esta unidade militar, que é chamada Danab – o que significa relâmpago na Somália – são recrutados entre os funcionários da Bancroft Global Development, uma empresa com sede em Washington, que há anos trabalha com o Departamento de Estado para treinar as tropas da União Africana e para usá-las em operações militares na Somália.

Michael Stock, o fundador da empresa, diz que os recrutas da Danab receberam formação básica numa estrutura em Mogadíscio antes de ser enviados para Baledogle, onde passam todos pelo treino dos Marines. Finalmente, os novos combatentes somalis são acompanhados em missão pelos conselheiros da Bancroft.

No centro: Michael Stock

As justificações utilizadas por este tipo de operação são as do costume: combater o terrorismo, a necessidade moral de eliminar um regime brutal, parar o fundamentalismo religioso. Na verdade, este padrão que é possível observar na Somália é o mesmo aplicado na Líbia, na Síria, na Ucrânia.

Trata-se da evolução da técnica utilizada pelos EUA no passado, ao longo de década, em todos os cantos do mundo (Ásia, América do Sul): onde antes havia “conselheiro militares”, hoje há os mercenários, soldados privados que tratam de tudo, das informações necessárias aos treinos das tropas locais.

Desta forma, as tropas regulares dos EUA minimizam a sua presença e podem ser envolvidas à distância, por exemplo utilizando os drones. Geralmente é a CIA, juntamente com o exército EUA, responsável ​​por fornecer o poder de fogo quando necessário, isso enquanto o Departamento de Estado trata da gestão diplomática.

O que mudou nos últimos anos é o nível da força empregue: tem um maior impacto no território atacado, é utilizada de forma ainda mais descarada e envolve cada vez mais empresas privadas. Isso apesar dos escassos resultados até hoje obtidos: é muito difícil ganhar essas guerras, sobretudo utilizando apenas forças terrestres. O que é alcançado, isso sim, é a desestabilização de inteiros Países, o que já por si pode constituir um objectivo suficiente. Doutro lado, falamos duma industria, aquela da guerra, que não pode ser alimentada com a paz.

 

Ipse dixit.

Fontes: Moon of Alabama, The New York Times

5 Replies to “As “novas” guerras americanas: Somália”

  1. Quando mencionastes Ucrânia, com certeza não continuastes listando BrazilCom z)para não melindrar tantos corações brasileiros que aqui em II depositam seus comentários.
    Houve tempo que se dizia que o Haiti era aqui, e era, sendo que brevemente também voltará a ser.Mas aí a miséria deu uma trégua e…kaputz, se está a construir por aqui, por obra dos de sempre tanto de fora como de dentro, uma enorme Ucrânia, ou seja, um Estado falhado ou falido, onde o pouco que era do Brasil será do Brazil e, com essa mudança de propriedade, que propriedade continua sendo, mas privada, privadíssima, qualquer benefício para as maiorias evapora sob o manto do arrocho (aí chamado austeridade), e com um adendo especial que é todo mundo quieto, calado porque os meios de comunicações gestam a suposta realidade, e o poder judiciário dispõe a seu belo prazer com espionagem intensiva, corrupção, delação, prisão e mais os etcs. O caldo de cultura reinante é do ódio fraticida do mais baixo ao alto nível de poder, os juros são os mais altos do mundo, tanto quanto a queda vertiginosa da economia, o caos político, a delinquência acadêmica e o analfabetismo político. Bom, para variar, a maioria dos compatriotas e estrangeiros não sabem nem querem saber que estamos em guerra. Estamos e perdendo feio.

    1. Correto Maria. Há muito tempo que eu não temia tanto pelo futuro do Brasil e de nossos filhos. Fanáticos religiosos controlando partido politico e colocando seus pseudo-benfeitores no poder. Vejo o mais alto grau da justiça do país, ( STF) com juízes associados com partidos políticos e principalmente, uma sede voraz de vingança, pelo tempo em que não puderam gravar suas garras nas riquezas nacionais, daqueles que ficaram afastados do poder e retornaram através de um golpe sujo.

    2. Pois é Maria, e o que me dói mais é que emtre os vários políticos brasileiros, não há um só que veja essa possibilidade, risco real e imediato.

Obrigado por participar na discussão!

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