Argentina: até a Democracia, ida e volta

Há quarenta anos atrás, no dia 24 de Março de 1976, iniciava-se na Argentina o terrorismo de Estado
que iria apagar toda uma geração de jovens intelectuais capazes de mudar a fisionomia do País. Trinta mil jovens foram simplesmente “desaparecidos”.

As causas devem ser encontradas nas mentes dos executivos das corpotations americanas e europeias que queriam eliminar o surgimento e o propagar-se da consciência social entre os argentinos; o desaparecimento era visto como inevitável pela Igreja Católica, assustada com o fenómeno do clero sul-americano que destacava a inconsistência entre a chamada mensagem do Evangelho e a opressão sofrida pelas franjas sociais menos privilegiadas.

Os seguidores da Teologia da Libertação pensavam que a saída da opressão iria curar as sociedades do Continente, no auge da desordem social; e os movimentos terceiromundistas foram considerados uma perigosa heresia por parte da hierarquia católica. Por esta razão, a Igreja pediu às forças armadas para cancelar os tais movimentos e substituiu-los com as fiéis estruturas da Opus Dei nascida dentro do regime de Franco. Não é uma teoria da conspiração, há documentos judiciais que confirmam isso.

Os militares argentinos são os que deram substância ao “desaparecimento” dos que dificultavam o plano e a lógica utilitária do Capitalismo: fisicamente removeram todos os que ponham em perigo o projecto. Fizeram desaparecer quem pretendia mudar o modo de vida e substituí-lo com algo inspirado aos princípios autenticamente cristãos. Na Argentina, o “desaparecimento” não acabou com o fim da ditadura mas continua ainda nas mentes daqueles que querem reescrever a História, fazendo de conta  que o “desaparecimento” nunca aconteceu ou quase.

Mas não apenas o “desaparecimento” não acabou como algo sinistro está de volta.

Macri e as Madres da Plaza de Maio

Poucos dias depois da tomada de posse do novo Presidente argentino, Mauricio Macri, o advogado Guillermo Fanego denunciou a fundadora da Madres de Plaza de Mayo, Hebe de Bonafini, para “incitação à violência colectiva”. A de Bonafini é acusada de ter chamado as pessoas para uma marcha contra as políticas neoliberais do Presidente Macri.

Mas a manifestação é apenas o casus belli: na realidade, o choque entre o movimento das Madres da Plaza de Mayo e a Presidência argentina é provocado pelos julgamentos contra os torturadores e os assassinos do terrorismo de Estado que, entre ’76 e ’83, provocaram trinta mil vítimas. Processos que a imprensa argentina, quase inteiramente ao lado de Macri, quer acabar definindo-os “vingança privada”; claro que isso garantiria a impunidade aos culpados.

Na madrugada do passado 31 de Dezembro algumas pessoas invadiram a rádio Madres de Plaza de Mayo, atingindo o operador presente no estudo. E o sinal de que as constantes ameaças de morte recebidas por Hebe de Bonafini não são apenas uma covardia ao telefone.
H.D. Bonafini:

Dicen que me van a degollar

A associação de jornalistas, Comunicadores de Argentina, disse que o ataque “não pode ser separado de outros eventos iniciados com o triunfo das forças agora no governo”, tal como o ataque ao jornal cibernético Pagina12 e outras ameaças contra jornalistas e publicitários, culpados “de difundir informaciones y opiniones que no son del gusto del nuevo gobierno“.

El Proceso e a Guerra Suja

H. Kissinger com R. Videla

Voltemos atrás. Como foi possível chegar aos Desaparecidos?

Como vimos, os realizadores do golpe de Estado eram oriundo da Argentina mas também de outros Países, como os EUA. Entre os anos ’50 e ’70, a economia do País cresceu de forma assinalável e a pobreza diminuiu; todavia, a Democracia continuou a apresentar-se instável, com os militares que tinham tomado o poder várias vezes, nomeadamente nos períodos de 1955-1958, 1962-1964 e 1966-1973., 

Em 1973 houve eleições e Juan Domingo Perón foi eleito Presidente, mas a tensão entre as camadas dos cidadãos não se acalmaram, pelo contrário A Argentina deslizou para o caos com as acções de vários grupos armados (Montoneros, Peronistas, Tripla A, Ejército Revolucionario del Pueblo, etc.), as ingerências da Maçonaria e aquelas vindas do estrangeiro. A morte do mesmo Perón, em 1974, não ajudou: foi substituído pela vice-Presidente, que era também a terceira esposa de Perón Isabel Martínez, sem todavia conseguir restabelecer uma economia que agora se apresentava em ruína.

No dia 24 de Março de 1976, uma junta militar chefiada pelo general Jorge Rafael Videla tomou o poder e logo a seguir iniciou o Proceso de Reorganización Nacional, também conhecido simplesmente como El Proceso. As primeiras decisões da junta esclareceram qual teria sido a atitude dos militares: introdução da pena de morte, abolição dos direitos civis, Parlamento e partidos políticos dissolvidos, Corte Suprema nas mãos da junta; dissolvidos também sindicados, organizações universitárias e culturais; aplicação da censura em todos os órgãos de informação.

Isabel Martínez de Perón

A campanha repressiva atingiu o seu clímax entre 1976 e 1979 e foi realizada em segredo, fora de qualquer controle legal, por uma série de forças especiais e unidades “anti-subversivas” constituídas pelas forças armadas e pela Polícia Federal; tudo de acordo com os programas previstos pela junta militar argentina do chamado processo de “reorganização nacional”, chefiado pelo já citado general Jorge Rafael Videla e os seus sucessores, general Roberto Eduardo Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone.

Foi caracterizado por uma maciça violação dos direitos humanos e civis (privação da liberdade, sem processo judicial, detenção em locais secretos controlados pelas forças armadas, torturas, assassinatos e desaparecimentos); durante este período, além das milhares de pessoas presas, houve também cerca de 2.300 assassinatos políticos e 30.000 pessoas desapareceram (os desaparecidos), das quais cerca de 9.000 oficialmente confirmadas pela Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas.

Durante a Guerra Suja (como foi baptizado este período), a tortura foi aplicada de forma sistemática e consistente nas esquadras da polícia, nas prisões e nos vários centros de detenção ilegais. De acordo com os dados fornecidos após o fim da ditadura, entre as torturas figuravam:

  • choques eléctricos de alta tensão, especialmente nas partes delicadas do corpo (órgãos genitais, mamilos, orelhas, gengivas)
  • queimaduras de cigarros ou de pequenos lança-chamas (com chamas cerca de 30 centímetros)
  • quebra dalguns ossos do corpo, geralmente pés ou mãos
  • ferimentos dos pés com alfinetes ou objectos cortantes
  • espancamento (com sacos de areia para não deixar vestígios visíveis)
  • imersão da cara em excrementos até asfixia
  • torturas realizadas em presencia de familiares, combinadas com estupros e espancamentos
Paulo VI com E. Massera (junta militar)

Mas estas eram apenas algumas das várias possibilidades: o “repertório” era enriquecido com as técnicas introduzidas pelos ex-nazistas ou mercenários franceses, acostumados à tortura durante a guerra da Argélia.

Quem não morria durante as proibitivas condições da prisão, muitas vezes era enviado para os vuelos de la muerte: após uma injecção de tiopentato de sódio, que tinha como objectivo atordoar as vítimas, estas eram carregadas em camiões e, sucessivamente, em aviões dos quais eram atirados para as águas de Rio de la Plata (zona de Bahía de Samborombón), numa operação que durava um hora e meia.

Por fim, após a pressão internacional e a derrota na Guerra das
Malvinas/Falkland, o regime militar foi obrigado a marcar eleições
democráticas para o dia 10 de Dezembro de 1983. A fase de transição para
um regime propriamente democrático não foi simples, mas o governo de
Nestor Kirchner anulou as amnistias promulgadas pelo anterior Presidente
Carlos Memen: o general Videla foi julgado e recebeu duas penas
perpétuas; mesmas condenação para outros membros da junta militar, como
Leopoldo Galtieri e Roberto Viola; 15 anos de prisão também para Reynaldo Bignone, pena perpétua para Emilio Massera.

Mas era tarde demais para os Desaparecidos.

Las Golondrinas

Para acabar, um vídeo da grupo Invisible, do álbum El jardín de los presentes. O disco obteve sucesso imediato, tornando-se quase dum dia para outro um clássico do rock argentino, e por uma razão muito simples: é grande música.

Em particular, Las Golondrinas de Plaza de Maio é uma canção muito conhecida no País: a voz, após ter iniciado com um tom quase de sussurro, explode evocando as golondrinas (as andorinhas) solo vuelan en libertad (“só voam em liberdade”), lembrando de forma inevitável a ditadura; o álbum foi apresentado no dia 6 de Agosto de 1976, apenas 4 meses após o golpe militar.

Ipse dixit.

Fontes: Página12, (1 e 2), CBA24, Acórdão de Condenação do general Guillermo Suarez Mason, o general Santiago Omar Riveros e outros para crimes contra cidadãos italianos na República da Argentina (ficheiro Pdf, Italiano)

3 Replies to “Argentina: até a Democracia, ida e volta”

  1. Tenho um especial respeito pelas "locas de Mayo" porque "acá donde vivo no las tengo yo". Quisera que o povo brasileiro tivesse essa mesma garra, esse mesmo conhecimento a cerca dos acontecimentos históricos da sua nação e, ao invés de termos uma Comissão de meia verdade, teríamos como "nuestros hermanos argentinos" torturadores e seus mandantes na cadeia e/ou justiçados, todos (as). Ao contrário, tratamos aqui no Brasil muito mal a nossa história. Tão mal que toda uma geração de defensores da ditadura, de testemunhas de defesa de torturadores são hoje os parlamentares que o mundo assistiu boquiaberto derramar produtos de latrina numa pseudo democracia, que nem democracia "civilizada" tem sido, haja visto a midia e o judiciário que aqui vicejam, as relações escravocratas que tradicionalmente operam na sociedade, a educação do povo que nunca se realizou.Max, tu que gostas dessas histórias, experimenta colher informações sobre a vida dos nossos parlamentares na faixa das nossas idades…e também dos seus filhos e parentes que lá estão também! Encontrarás uma gama de denunciantes, alcaguetas, cúmplices, patrocinadores e que tais. Curiosamente entre políticos encarcerados e entre os que daqui a pouco serão, ex guerrilheiros, gente que apoiou a resistência…uma das nuances que para mim provam inequivocamente que o golpe enquanto tal no Brasil se explicitou agora, mas tem sido uma constante na vida brasileira. Isto distingue de nós os "hermanos". Lá "cuando hay golpe hay resistencia, y cuando no hay golpe, tanpoco se aplasta o desaparece la resistencia"

  2. Recomendo aos leitores do blog que assistam ao documentário "A Hora dos Fornos" (La Hora de los Hornos) de 1968, que traça um retrato da política e economia da Argentina.

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