Cospaia: provas técnicas de anarquismo

Um artigo de História seria uma grande seca, não é?

Por isso, vamos escrever algo acerca dum possível futuro. Neste caso, o futuro passa-se na Italia, no ano 1441.

Ok, dito assim parece uma coisa do passado, mas tenha paciência o Leitor: mais à frente tudo ficará mais claro, prometido.

Em Fevereiro de 1441, o papa Eugénio IV, concedeu ao território da República de Firenze a aldeia de Sansepolcro. A fronteira entre Sansepolcro e o território papal foi estabelecida ao longo dum pequeno rio cujo nome era simplesmente Rio (“rio” em italiano significa “pequeno rio”). Os delegados da República de Firenze interpretaram o nome “Rio” com o significado de “pequeno rio”, que individuaram num pequeno curso de água que ficava a 500 metros de distância do primeiro, em direcção Norte. Isso criou uma espécie de terra de ninguém no meio do qual ficava a aldeia de Cospaia.

Os habitantes de Cospaia viram-se assim livres do poder papal e daquele de Firenze e logo declararam a independência. Esta foi reconhecida alguns anos mais tarde e, por inacreditável que possa parecer, continuou ao longo dos sucessivos 400 anos.

O que torna especial a República de Cospaia?
Em primeiro lugar as dimensões: Cospaia era pequena mesmo, 330 hectares (mais ou menos: a área de 350 campos de futebol).

Depois os habitantes: pouco mais do que 250 almas, quase todas analfabetas. Também a bandeira não era grande coisa: um rectângulo, divido diagonalmente em duas cores, preto e branco.

Mas há algo bem mais interessante. A única lei da República era, e sempre foi, apenas uma: perpetua et firma libertas, que podemos traduzir com “Liberdade permanente e duradoura”, escrita na porta de acesso da Igreja da Annunziata (que ainda existe).

Em Cospaia não existiam guardas, exércitos ou prisões. A liberdade das pessoas e das mercadorias era total e tal manteve-se ao longo dos quatro séculos, sem alterações. Nada de taxas ou impostos. Doutro lado, não era utilizada moeda alguma (a não ser o dinheiro estrangeiro), sendo a troca a prática mais comum.

As decisões eram tomadas pelo Conselho dos Anciãos e dos Chefes de famílias, que se reunia na sede da Congregação (até 1613) e na já citada Igreja (até 1826):  às reuniões do Conselho participava também o padre da paróquia de San Lorenzo, na qualidade de “presidente” (talvez por ser a única pessoa não analfabeta), cargo partilhado com um membro da família Valenti (a mais importante da aldeia).

Podemos pensar numa aldeia primitiva e pobre: qual realidade poderia ter uma aldeia anárquica (do grego ἀν-ἀρχή, “ausência dum governador”)?
Na verdade as coisas não eram tão más.
Aliás: Cospaia começou a prosperar.

Em primeiro lugar, Cospaia manteve boas relações com as cidades vizinhas: San Giustino e Sansepolcro, o que permitiu a utilização dos serviços de moagem dos cereais e a assistência médica. A economia das famílias (na prática, todas ligadas às actividades agrícolas) melhorou, pois tudo o que era produzido ficava disponível pela alimentação ou a troca (como dito: nada de taxas/impostos).

Mas a grande mudança aconteceu cerca de um século depois.

No ano de 1574, o cardeal Niccolò Tornabuoni, Núncio Apostólico em Paris, enviou ao seu neto, o abade Alfonso bispo de Sansepolcro, as sementes de uma planta medicinal recentemente entrada em uso na França: o tabaco. Em breve, o cultivo do tabaco tornou-se a actividade principal da minúscula República, onde até foi construída uma pequena barragem para facilitar o processo de irrigação.

O tabaco fez a fortuna dos habitantes, que podiam cultivar o produto e oferece-lo no mercado com preços muitos favoráveis (sempre por via da falta de taxas e impostos).

A independência acabou em 1826, após a tempestade napoleónica: o projecto da nova Europa não previa a República de Cospaia que assim voltou a ser ocupada pelas forças do Papa. 

O que sobra é a experiência duma comunidade que, segundo as ideias da nossa sociedade, nem poderia ter existido: nada de leis, nada de Democracia, nada de dinheiro, nada de taxas ou impostos. Só Liberdade.
E durou 400 anos.

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia (versão italiana), Repubblica di Cospaia

Panorama de Cospaia: imagem de Pier Luigi Rossi

7 Replies to “Cospaia: provas técnicas de anarquismo”

  1. Olha! Max, amei o artigo deu-me outra vez uma réstia de esperança no ser humano, sim se não nos apertarem muito,nós conseguimos ser gente (cooperadores,alegres,criativos)tomara que muitos virem gente e grata pelo artigo

  2. Puxa vida, Max: e tu não me mostras um lugar destes…não existe mais, mas eu teria o consolo de ter visitado um espaço onde a geografia albergou gente que eu chamo de normal mesmo, gente que mereceu viver e ser feliz. Como desapareceu pelos idos de 1800, quem sabe alguma memória de cotidiano poderia ter sido colhida, algum resquício de coisas escritas ou desenhadas, senão pela população local, por algum visitante mais lúcido e deixada na igreja…sabe-se lá. Gosto demais destas provas técnicas de cotidiano anarquista, especialmente das que conheço, nenhuma tão longeva, a não ser se considerarmos anárquicas as comunidades primitivas de certos grupos indígenas, aborígenes ou perdidos da África. E realmente muitos deles os considero anárquicos na vida e no pensamento, não aquela doutrina anarquista, desenvolvida teoricamente na Europa, uma doutrina política contra e adversa ao marxismo, e demais socialismos, mas o puro anarquismo sem pretensões, sendo vivido em sua pureza. Abraços

    1. Lololololol…Maria!

      Olha, a verdade verdadinha é que, por incrível que pareça, descobri esta república só nesta semana! Achas que nos livros de escola é citada Cospaia? Mais: como sabes, gosto de história, fartei-me de lê-los, em particular os italianos, por óbvias razões. E Cospaia nunca apareceu. Para mim, encontrar este lugar com esta história foi uma grande surpresa.

      Tenho a estranha impressão que este exemplo de anarquismo aplicado seja bem pouco difundido, até escondido. Mas posso estar enganado, claro, se calhar é só distracção…

      Grande abraço!!!

  3. Pena hoje em dia não haver lugares como este.
    Imagine-se um lugar sem policias, politicos, fiscais das finanças, ladrões, solicitadores de execução, agentes da Emel, etc., etc., etc., etc., e … etc.

    Krowler

  4. Sim, 400 anos de liberdade, parece-me que a maioriia das pessoas em Portugal (e em quase todo o Ocidente rico) passam anos e anos, ou talvez toda a vida, sem ter acesso a 400 horas de verdadeira liberdade…

  5. Max,

    Como diz um amigo meu, até para nascer é preciso ter sorte…e é bem verdade, desde o lugar em que se nasce, passando pela época e acabando nos pais em si.
    Existir um lugar como esse na actualidade, de certeza que é o sonho de muitos, e ficaria lotado num abrir e fechar de olhos.

    E pensar que durou aproximadamente 400 anos, tens a certeza que foi no nosso planeta?

    Abraço,
    Zarco

  6. Sem o anarquismo e o existencialismo não há salvação, eis uma prova! Parabéns pela matéria, por essa e outras que continuarei seguindo teu blog. Abraço

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