Querido Leitor,
desta vez, tal como prometido, vamos falar de David Ricardo.
Mas antes uma pergunta: lembra-se o Leitor da ideia do “orçamento equilibrado”? O Leitor português sabe disso: fomos informados de que, se o Estado gastar 100 para nós, cidadãos e empresas, e se estes pagarem 100 de impostos, o orçamento está equilibrado e o País todo renasce como novo.
Um conceito que é espalhado aqui, neste cantinho à beira mar plantado, mas também no resto da Europa.
Um conceito que é uma idiotice integral, porque alguém deveria ter a gentileza de explicar como as pessoas e as empresas podem viver (comprar, investir…) recebendo 100 e devolvendo tudo com taxas e impostos. Poderia funcionar se cidadãos e empresas pudessem encontrar o dinheiro na horta: mas isso não acontece porque só o Estado, em teoria, emite dinheiro (repito: em teoria, pois já vimos que assim não é).
Mas o que tem tudo isso a ver com Ricardo?
O facto é que tinha sido mesmo ele, o bom Ricardo, a entender a coisa já no 1800. Também Ricardo era inglês e viveu na mesma altura de Malthus (como “E quem é este Malthus agora? Ó Leitor, vimos isso no capítulo anterior, ora essa…) e o simpático David chega na cena e diz para o colega: “Você disse um monte de bobagens, porque todo o dinheiro que os seus parasitas irão pagar aos comerciantes na compra dos bens e do trabalho, em seguida será devolvido sob forma de taxas e impostos pagos aos mesmos parasitas, dado que estes têm o poder de tributar-nos até a morte e são proprietários de todos os imóveis. Os comerciantes poderia muito bem queimar todos os bens que produzem e nada mudaria para eles no seu estúpido sistema”.
Ricardo disse isso? Sim, mais ou menos. Tenho algumas dúvidas acerca do termo “bobagens”, mas o resto foi assim.
Leitor, tenha cuidado aqui com o princípio básico: Ricardo reconhece primeiro que, se o Poder (na altura os nobres parasitas, agora o Estado) gastar 100 para os nossos bens, serviços, trabalho, mas em seguida cobrar o mesmo valor (eis o orçamento equilibrado), a economia vai de pernas para o ar e nós trabalhamos em troca de nada. Ricardo percebeu há 200 anos que um orçamento equilibrado é mortal para os cidadãos e as empresas: é a morte da economia e da sociedade.
Dito isto, porém, Ricardo disse outras coisas e este foi o erro dele. Tivesse parado após a primeira observação, teria ficado bem na fotografia, mas não, começou a falar mais e deu-se um tiro no pé. Aliás, deu-nos um tiro no pé, porque fundou uma escola de pensamento económico que ainda faz estragos hoje em dia.
Vamos simplificar: sabe o Leitor o que for “a economia do milho”? A ideia, sempre de Ricardo, dizia o seguinte: o agricultor que recolhe 100 toneladas de milho deve guardar uma parte da colheita para poder plantar no ano seguinte. O que faz sentido, não é? O agricultor, então, “poupa” uma parte do milho. Essa parte “poupada” será “investida” (plantada) e mais tarde irá render ao agricultor. Assim, Ricardo concluiu que, para fazer investimentos na produção, é necessário antes poupar. No geral, a fórmula pode ser assim resumida: a poupança de hoje gera o investimento futuro.
É também impossível que um privado possa poupar antes de outro indivíduo ter-lhe dado algum dinheiro. Então, é óbvio que antes deve haver o investimento (estatal ou privado) e só depois a poupança. Dúvidas? Experimente o Leitor poupar o dinheiro que não tem e depois tente investi-lo. Isso reverte de 180 graus a ideia de Ricardo e a fórmula certa é: o investimento de hoje gera a poupança futura.
Tudo isso parece lógico, até óbvio. Mesmo assim…
Mesmo assim os economistas de hoje estão convencidos de que seja normal ter a mesma atitude do camponês de 200 anos atrás, especialmente por parte do Estado. O que significa isso? Que de acordo com eles, todos os que tratam de dinheiro, especialmente os Estados, devem antes poupar e só depois gastar/investir. E estão convencidos de que aquele investimento irá gerar riqueza e emprego futuros para o País.
De facto, hoje, no mundo moderno, toda a teoria económica que rege as nossas vidas roga aquela idiotice da “economia do milho”. Resultado? Conseguem convencer todos, governos incluídos, a fechar os cordões da bolsa e pôr o dinheiro de lado para investir/gastar amanhã.
Consequências? Não há investimentos, não há criação de riqueza, não há emprego. Esta é a austeridade, este é o “orçamento equilibrado”. Pelo contrário: com a poupança forçada, o dinheiro fica nas caves e não permite o funcionamento da economia.
Dito de outra forma:
- Ao Estado é dito para reduzir os gastos e acumular um surplus (poupança) de dinheiro (nas caves, no sentido figurado), para poder investir amanhã. Mas ao fazer isso, não apenas o Estado dá 100 e tira 100, que, como explicado, já é um desastre para os cidadãos e as empresas; mas também começa a dar 100 e tirar 150 em impostos para poder criar o tal surplus. Riqueza? Retoma? Emprego? Não é aqui.
- Os cidadãos são encorajados a poupar mais dinheiro sob forma de seguros, produtos financeiros de qualquer tipo (com os quais as financeiras depois especulam) e o resultado é que todo o dinheiro fica paralisado em “caves” virtuais (se o Leitor viver no Chipre, o buraco virtual até consegue fazer desaparecer parte das poupanças, pequeno milagre todo europeu). Mas aquele dinheiro parado significa bens, serviços, casas, carros, alimentos que não serão vendidos. Isto, como disse Malthus, deprime a “demanda agregada” e põe a economia de pernas para o ar (depois chega o FMI e observa “esquisito, a austeridade não funciona…”). Nada de despesas, sobretudo nada de investimentos, o presente e o futuro hipotecados.
Em ambos os casos, a economia desmorona, e esses dois pontos são um bonito presente que o simpático Ricardo deixou para a posteridade. Que somos nós.
Acabou? Acabou.
E da próxima vez? Da próxima vez: Marx. Nada mais, nada menos…
Ipse dixit.
Relacionados:
Breve mas interessante história da economia – Parte I
Breve mas interessante história da economia – Parte II
Fontes: Paolo Barnard, Wikipedia
Olá Max: " Que de acordo com eles, todos os que tratam de dinheiro, especialmente os Estados, devem antes poupar e só depois gastar/investir." Mesmo correndo o risco de dizer besteira, eu fico pensando que este raciocínio e consequente prática, é muito conveniente para a economia deste mundinho que vivemos porque faz o bolo crescer (como dizia Delfim Neto, mago da economia brasileira em tempos de ditadura civil-militar aqui)para depois ser distribuído. Só que o populacho acreditava,e os banqueiros e financistas, especuladores em geral enchiam os bolsos, ou seja, a famigerada distribuição futura só alcançava uma pequena parte dos interessados, mas era voluntariamente surgida dos bolsos de todos.
Resta saber a quem o Ricardo "servia" quando dizia a primeira coisa e quando dizia a segunda e mais. Enganam-se aqueles que pensam que as ideias/teorias são ingênuas, e fruto da atividade especulativa dos inteligentes, nas diversas áreas do pensamento. Porque os verdadeiramente inteligentes/capazes de ideias geniais, que ajudem a sociedade como um todo, dificilmente se tornam conhecidos e referência científica. Abraços
Portugal e a zona Euro estão nesta altura transformados num grande campo de milho.
E os resultados estão à vista sob a forma de maçarocas.
É a maçaroca do desemprego
É a maçaroca da recessão
É a maçaroca das falências
É a ultima delas, a maçaroca do confisco das poupanças dos cidadãos.
Definitivamente, os 'liders' europeus sabem muito bem o que andam a fazer.
As declarações do Olli Rehn, lider do euro-grupo, proferidas ontem merecem a maçaroca de ouro.
Dizia então a figura: 'o dinheiro depositado nos bancos comporta um risco que os cidadãos terão de assumir' … depois levou nas orelhas e veio desdizer o que tinha dito.
Por isso a maçaroca de ouro da semana goes to: Olli Rehn.
A entrega do prémio foi seguida de um forte aplauso dos especuladores financeiros.
abraço
Krowler
Está a dar demasiada ênfase à moeda. Esta vale apenas aquilo que pode comprar. O importante na economia é o conjunto de bens e serviços que dispõe. A relação entre investimento e poupança é igual quer a economia seja monetária ou não.
Para o Banco Central introduzir dinheiro na economia tem de o emprestar ao Estado ou a bancos comerciais. Este dinheiro será, por exemplo, utilizado para pagar salários de funcionários públicos ou para financiar projetos. Este último caso pode ser considerado investimento (conforme o caso), mas também tem por base a poupança, porque, se se mantiver tudo constante, neste momento, o valor da moeda foi diluído, portanto as poupanças efetuadas na economia até então foram diminuídas por esta nova injeção de moeda, que as "capturou"; ou seja, houve inflação.
Olá Maria, eu penso que o que se passava é que o grupo com poder pegava em ideias verdadeiramente inteligentes e as distorcia, mantendo o halo do génio que servia de propaganda à ideia. Jesus Cristo e a igreja católica, Aristoteles e a ciência da idade média, etc. Eu penso que nos tempos presentes há uma verdadeira barragem às ideias originais, como que uma endoutrinazação de todo o pensamento.
Olá Max, se eu percebi um estado com orçamento equilibrado demite-se da função de investidor. O investidor será quem vai moldar a sociedade futura. Assim esse poder passa para os bancos privatos pois eles sim podem criar dinheiro a partir de nada.