O IOR e a questão moral

Tanto para esclarecer: não há por aqui nenhuma cruzada anti-católica, não fosse pelo facto que na vida há coisas bem mais interessantes. Mas não é difícil circular na internet e encontrar dados curiosos, que obrigam a pensar.

O IOR, por exemplo, o Istituto per le Opere Religiose (Instituto para as Obras de Religião). Considerado por muitos como o “banco do Vaticano”, na verdade é bem mais do que isso: é o organismo que administra todo o património económico da Santa Sé.

Após ter atravessado uma série assinalável de escândalos (Banco Ambrosiano, Enimont, Operação Sofia, Fiorani-Bpi, Anemone-Grandes Obras, reciclagem de dinheiro-Banco di Roma, Vatileaks), finalmente Papa Bento XVI nomeou no dia 15 deste mês Ernest von Freyberg qual novo presidente do concelho de supervisão da instituição.

Uma escolha meditada que, como afirma a Rádio do Vaticano, foi seguida de perto pelo Papa ao longo de todo o percurso. Podemos ler no comunicado da Santa Sé:

Um percurso de alguns meses, meticuloso e articulado, que permitiu avaliar muitos perfis de alto nível profissional e moral, também com a assistência duma agência internacional independente, líder na selecção de altos gestores de empresas.

A mesma Rádio Vaticana acrescenta a seguir algumas notas para melhor realçar o perfil profissional e moral da escolha:

Ernst von Freyberg, alemão, 55 anos, casado, é membro da Ordem dos Cavaleiros de Malta. É co-diretor da Associação de Peregrinação a Lourdes da Arquidiocese de Berlim, fundador e membro do Freyberg Stiftung desde a sua criação em 2009. A Fundação apoia três organizações católicas na França, Alemanha e Áustria, o Schule Freiligrath (Escola de Frankfurt) e oferece bolsas de estudo. É também presidente do Grupo Blohm + Voss activo no processamento e reparação de navios, membro do conselho de supervisão da Flossbach von Storch AG, uma empresa de gestão de activos com sede em Colónia com activos de 8 biliões de Euros. É membro do Conselho Consultivo da Manpower GmbH, uma empresa de serviços de trabalho temporário, com receitas de 600 milhões de Euros e 22 mil funcionários na Alemanha. O advogado von Freyberg, portanto, tem uma vasta experiência em finanças e regulação financeira.

Enfim, não uma pessoa qualquer, a mais idónea para devolver credibilidade a uma instituição seriamente abalada pelos acontecimentos de crónica.

Classe F124 Sachsen

Pena algumas leves inexactidões no comunicado. Nada de grave, que fique claro, apenas pormenores.
Por exemplo: o Grupo Blohm + Voss, do qual von Freyberg é presidente, não é “activo no processamento e reparação de navios”. O Grupo constrói navios. De guerra. Aliás, não fez outra coisa praticamente desde que foi fundado, no final do século XIX.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a produção era dedicada basicamente à construção de submarinos (98 para ser precisos), contratorpedeiro (6) e cruzadores pesados (2).
Foi dos estaleiros da Blohm + Voss que saiu o conhecido couraçado Bismark, tal como muitos submarinos U-Boot e até aviões-caça para a Luftwaffe.

Classe F123 Branderburg

Mas isso interessa até um certo ponto: afinal falamos de coisas longínquas, coisas do passado. Hoje o Grupo Blohm+Voss já não produz couraçados. Hoje a Blohm+Voss produz:

  • a fragata Aradu, classe Meko 360, vendida à Nigéria (1981)
  • a fragata Almirante Brown, classe Meko 360, Turquia (1987)
  • a fragata Vasco da Gama, classe Meko 200, Portugal (1991)
  • a fragata Hydra, classe Meko 200, Grécia (1992)
  • a fragata Branderburg, classe F123 Branderburg, Alemanha (1992)
  • a fragata Sachsen, classe F124, Alemanha (2002)
  • os submarinos classe U-209 (vários Países, desde 1974 até 2009)
Classe Meko 360

Actualmente faz parte dum consórcio para a construção de 4 fragatas destinadas à Marinha Militar da Alemanha. E sim, depois constrói também navios civis.

Nada de grave, ora essa: parece bastante normal construir armas de destruição e ao mesmo tempo gerir as riquezas da Santa Sé, a questão moral não passa por aí.

Depois, como afirmado, o processo foi seguido de perto pelo mesmo Vigário de Cristo, o que é uma garantia.

Era só para ser preciso, só isso.

Ipse dixit.

Fontes: Radio Vaticana, Wikipedia (versão italiana), Wikipedia (versão inglesa)

2 Replies to “O IOR e a questão moral”

  1. O bom de ler os artigos do ii e que você ri, igual aos textos da Laura Botelho.

    Ferreira.

  2. Olá Max: o distinto senhor, alvo desse post, também é co-responsável pelo infame desmanche dos navios nas praias de Alang, alvo de um projeto fotográfico de Sebastião Salgado, que expôs aos humanos, com olhos de ver, mais essa vergonha das pessoas bem nascidas, bem vividas e bem aquinhoadas, resumidamente, gente de bem. "A mão de obra de Alang é formada por um exército de trabalhadores maltrapilhos armados de marretas e maçaricos, machados, serras manuais, e muito improviso, e esforço físico. O vilarejo de Alang, que fica a cerca de 300 quilômetros de Bombaim, nem sequer aparece direito nos mapas, mas responde sozinho pelo desmanche de metade de todos os navios mercantes e de guerra que saem de circulação em todo o mundo.
    Os navios que são vendidos aos sucateiros de Alang, fazem sua viagem com o nome de “destino final”, nas praias de Alang, segundo dados foram desmontados só no ano passado mais de 400 grandes navios, com um faturamento bruto estimado em mais de meio bilhão de dólares, um terço dos quais é lucro líquido. Um excelente negócio. O que transformou esse canto perdido numa espécie de campo batalha em forma de ferro-velho, foi a miséria e os salários de fome pagos na Índia. E também porque regras de segurança do trabalho e de proteção do meio ambiente tornam esse tipo de atividade cara demais nos países desenvolvidos. Já no sucatão indiano, um exército de mais de 40.000 trabalhadores migrantes se amontoa na favela erguida junto às carcaças, trabalhando de pés descalços por salário mensal médio equivalente a 75 dólares."(adrenaline.uol.com.br)Abraços

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