Três Spread

Há mais de um ano, no blog apareceu um artigo dedicado ao spread. Para os mais nostálgicos, este é o link: Sprite? Não, Spread. E parabéns pelo título.

Hoje vamos aprofundar mais o discurso.

Spread é um termo agora familiar nos noticiários europeus, não apenas económicos: de facto, está intimamente ligado à actual crise, mas o funcionamentos é igual em qualquer País.

O spread do banco

Em primeiro lugar: spread é uma palavra inglesa cujo significado é “oscilação” ou “diferença”; é utilizado para indicar mesmo isso, a diferença entre os interesses que um banco paga para obter o dinheiro e os interesses que o mesmo banco aplica uma vez emprestado o dinheiro (em boa verdade, o termo “interesses” não é o mais apropriado neste contexto mas rende a ideia).

Por exemplo: Nuno subscreve um mútuo para comprar um novo carro e o banco avisa “Olha lá, meu caro Nuno, eu aplico um spread de 1,5%”. Nuno não percebe e pergunta “E que eu tenho a ver com isso?”. Coitado do Nuno, não entende que 1,5 % é o interesse que ele irá pagar ao banco, dinheiro que sai do bolso dele.
Mas porque o banco afirma cobrar um spread de 1,5%? Simplesmente porque o banco adquiriu o dinheiro do mútuo com um interesse de 2% (este é o custo do dinheiro, estabelecido pelo Banco Central); portanto, o bom Nuno pagará 3,50% de “interesses” sobre o mútuo: 2% o custo do dinheiro mais 1,5% o spread cobrado pelo banco.

O spread, portanto, não deve ser confundido com os interesses do mútuo: representa apenas o ganho do banco.

Acabou? Não.
Porque até aqui falámos dum tipo de spread, quando nos noticiários e na política o assunto é bem diferente. E aqui o discurso é um pouco mais complicado.

O spread dos Títulos de Estado

Desde quando existe aquela maravilha chamada “Euro”, os Estados da Zona Euro já não emitem dinheiro (apenas as moedas metálicas), tarefa agora do mágico BCE (o Banco Central Europeu). Banco central que apesar das afirmações, representa um corpo completamente independente da política e dos governo. Em algumas páginas de internet o BCE é definido quase como um sociedade de capitais: isso não é correcto, não existem “acções” nem estatutos nesse sentido. Mas é verdade que o controle do BCE, o controle real e não formal, não pertence aos sábios da União Europeia: quem manda no BCE são os bancos privados (ver artigo Matryoshka).

O BCE emite dinheiro para os bancos por meio de empréstimos. Se um Estado precisar de dinheiro, deve ir a um banco e pedir um empréstimo. Em troca do dinheiro, deixa Títulos de Estado, que produzem alguns interesses.

Agora, o princípio fundamental que rege o desempenho de todos os títulos financeiros é o seguinte: quanto mais um título for seguro, quanto menos juros renderá; por outro lado, quanto maior o risco, quanto maior serão os interesses, indispensáveis para convencer os compradores.

Assim, todos os Estados da feliz Zona Euro são obrigados a pedir a esmola aos bancos: esta esmola acontece sob-forma dum leilão no qual podem participar como compradores apenas alguns bancos privados, os privilegiados (Primary Dealers).

O raciocínio é simples: o banco privado quer um Título seguro? Então compra um Título alemão, pois Berlim com certeza não irá falir. Todavia, o banco deverá contentar-se: dado que o risco com os Títulos alemães é baixo, os interesses percebidos serão baixos também, podemos dizer 3%.
O banco quer ganhar mais? Então compra um Título espanhol: existe um certo risco de falência, portanto os interesses serão maiores, 8%..
O banco quer ganhar ainda mais? Compra um Título de alto risco, o Título de Portugal. E arrisca ganhar bem 15% (ou perder tudo, claro).
Se depois o banco tem dinheiro para deitar no lixo, compra Títulos gregos, assim, tanto para espalhar bom humor.

Neste caso, o spread é a diferença de rendimento entre os Títulos do Estado. Por exemplo, a diferença entre o rendimento dos Títulos da Alemanha (3%) e os Títulos de Portugal (15%): spread 12%. Este é o spread acerca do qual falam os jornais.

Algumas observações

Ate aqui tudo claro. Mas podemos reflectir acerca do assunto.

  1. Primeira observação: não existe nenhuma razão pela qual os Estados têm que endividar-se. Este é um mecanismo psicótico criado com a introdução do Euro. E faz ainda menos sentido que um Estado soberano tenha que endividar-se com empresas privadas para sobreviver. Pois lembramos que os bancos privados são empresas de privados.
  2. A seguir. O Euro não é uma moeda soberana dum Estado: é uma moeda que circula sob forma de dívida com interesses. Os Estados têm que endividar-se para obter o Euro e pagam também juros sobre esta dívida. Pior: o Euro é uma moeda criada por um Banco Central controlado por privados. Afirmar que o Euro é uma moeda privada não anda tão longe da realidade.
  3. Mais: a unificação monetária, que em teoria deveria ter eliminado as diferenças entre os vários Países, aumentou significativamente esta diferenças. Hoje a Alemanha pode financiar-se com juros bem mais baixos do que todos os outros Países: sendo os seus Títulos considerados “seguros”, pagam juros muito baixos. Pelo contrário, um País como Portugal tem que sangrar cada vez chegada a altura de pedir um empréstimo. Nesta óptica, o Euro faliu redondamente: introduziu um bug, uma falha no sistema, pelo que os Países mais fracos terão que endividar-se cada vez mais apenas para conseguir pagar as contas, enquanto os Países mais ricos terão uma maior disponibilidade. 
  4. Outro ponto: neste sistema são os privados que julgam os Estados. Com o sistema dos leilões dos Títulos de Estado, são os investidores internacionais (na maior parte dos casos, bancos estrangeiros), que julgam um Estados-nação. São eles que, com o mecanismo dos spread, compram mais ou menos Títulos e condenam um País ao sofrimento, à austeridade. Este aspecto tem um que de particularmente perverso: um punhado de empresas privadas, que têm como fim o lucro, julgam mediante a aquisição de Títulos de Estado ou com as notas das agências de rating centenas de milhões de cidadãos e ditam as regras para o futuro deles também. Surreal.

Já falámos das agências de rating. Mais uma vez é bom lembrar que são empresas privadas, cujos objectivo é o lucro. O fim delas não é “fazer informação” mas “obter lucros com a informação”. Coisa bem diferente. E os donos das agências (Moody´s, Fitch’s, Standard and Poor’s) são investidores também: o termo “conflito de interesses” pode sugerir alguma coisa?

O spread da riqueza

Para acabar, há depois um outro spread, do qual se fala de maneira não suficiente: é um spread em constante crescimento, muito mais preocupante do que os Títulos de Estado. É a diferença entre quem tem dinheiro e quem não tem dinheiro. Também este é um spread.

Segundo os dados do Credit Suisse de 2011, 8, 7% da população mundial detém 82, 1% da riqueza global e o restante 91,3% beneficia apenas de 17,9% da riqueza. Quando se fala dos Estados Unidos, onde 1% da população detém 99% da riqueza, talvez não fosse mal lembrar que os dados globais não são tão diferentes.

Há uma casta de banqueiros e altos funcionários que premiam os próprios fracassos e incompetências (e muitas vezes desonestidade também) com recompensas vertiginosas.

Por exemplo, Lloyd Blankfein, número um da Goldman Sachs, encerrou o ano 2010 com um salário de 19 milhões de Dólares. E pouco importa se no mesmo ano a Goldman Sachs teve que usufruir do dinheiro público para evitara falência, o prémio não pode ser discutido.

As estatísticas do Financial Times, em Junho de 2012, mostram que os banqueiros mais importantes do mundo têm visto os seus salários crescer quase 12% em uma base anual. Aquele que enriqueceu mais foi Jamie Dimon, número um da JP Morgan, apesar do banco ter revelado uma perda (devida à operações erradas) de 2 biliões de Dólares: o salário de Dimon subiu 11% até alcançar 23,1 milhões de Dólares.

O segundo mais “enriquecido” foi Bob Diamond, do Barclays, com 20,1 milhões de Dólares; e Barclays este ano ficou envolvida no escândalo Libor (manipulação das taxas de juro), uma caixa de Pandora que provavelmente irá ser tapada à força, pois as consequências duma investigação e um julgamento sério poderiam ser catastróficas (implicam roubo, usura, evasão fiscal, manipulação do mercado) não apenas para Barclays.

Neste contexto, é interessante notar como os ordenados não tenham nenhum relacionamento com o sucesso na empresa: pelo contrário, como observado, os que ganham mais e que até viram subir o salário são os top managers de empresas que recentemente pioraram os próprios resultados ou têm problemas com a justiça.

Tudo isso enquanto num País como Portugal o ordenado mínimo nem chega aos 500 Euros e num País não em crise, como o Brasil, ultrapassa de pouco os 600 Reais (238 Euros).

Não seria mal começar a pensar em reduzir o spread entre os ordenados de quem é pago (demais) para provocar prejuízos e quem é pago (pouco) para trabalhar.

Ipse dixit.

Relacionados:
Sprite? Não, spread
Títúlos de Estado: Primary Dealers
Matryoshka
As notas do BCE
O caso da taxas Libor: semprehttps://informacaoincorrecta.com/2012/02/24/o-caso-das-taxas-libor-sempre-os-mesmos/ os mesmos

Fontes: NoCensura, Stampa Libera, Wikipedia (versão inglesa)

3 Replies to “Três Spread”

  1. "Não seria mal começar a pensar em reduzir o spread entre os ordenados de quem é pago (demais) para provocar prejuízos e quem é pago (pouco) para trabalhar."

    Pois, garantidamente não seria mal pensado, mas isso seria mudar…

    Abraço
    Rita M.

  2. Bom, em Portugal já começaram a reduzir os ordenados, é já um começo. Reduzes aqui, reduzes aí, cedo ou tarde será reduzido o spread também.

    Temos que ser positivos 🙂

    Grande abraço para Rita!

  3. Nem mais, temos de ser positivos 🙂
    Ainda assim, palpita-me que a redução do spread por cá vai mesmo demorar o seu tempo.

    Abraço
    Rita M.

Obrigado por participar na discussão!

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